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O exercício da Justiça

5 de dezembro de 2003

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Qualquer decisão da Justiça importa num processo de valoração. Para que possa ser correta, devem ser analisados e avaliados fatos passados, presentes e futuros. Sua realização é impossível para o homem, que não tem condições de conhecer perfeitamente o passado e desconhece o futuro. Só domina, muito imperfeitamente a atualidade.

Verdadeira justiça é, portanto, a justiça divina. A justiça humana, por examinar somente uma parte, não pode deixar de ser imperfeita.

São Tomaz de Aquino diz que as virtudes são muito mais extensas e amplas com relação a deus do que com referencia aos homens. Assim, a justiça humana olha para a comunidade e os patrimônios individuais, enquanto que a justiça divina abarca o universo inteiro, podendo comparar-se a  justiça humana com a luz de uma vela, e a divina com o brilho do sol.

O jurista e teólogo português, Rebelin, atribui a Deus justiça supercomutativa, superdistributiva, supralegal e superpunitiva.

Inúmeros são os obstáculos com que se defronta o exercício da Justiça humana. Realmente, o juízo definitivo sobre a justiça de uma situação qualquer só deverá ser ditado no dia do Juízo Final.

Dentro de uma situação jurídica pendente, acontecimentos supervenientes podem exercer certa influência sobre direitos e obrigações dos interessados. O porvir altera o sentido do passado.

A mora de um devedor ou a impossibilidade do cumprimento de uma prestação, por exemplo, produzem repercussões sobre os direitos das partes.

Compreende-se perfeitamente que toda distinção entre situações pendentes e julgadas é forçosamente precária, e as situações jurídicas chamadas definitivas tem sempre um caráter instável.

O princípio de que o porvir altera o sentido do passado é expresso  por alguns autores, mediante o conceito do tempo existencial; o tempo existencial, diferentemente do tepo físico, é uma sucessão linear que vai do passado, através do presente, até o futuro, e constitui uma totalidade em que se acham simultaneamente os três  modos tempo.

As reformas das situações jurídicas concluídas são provocadas por acontecimentos (valorações) supervenientes, que, regra geral, criam uma injustiça também superveniente àquelas –injustiça ex nunc, ou seja, a partir de agora. Se o fato superveniente consiste no  conhecimento superveniente pelo julgador, de algo anterior à decisão, nos achamos em presença de uma injustiça retroativa – injustiça ex tunc, ou seja,  a partir de então.

O juiz ao retribuir direitos e obrigações, encerra a situação jurídica, se não permite sua modificação a não ser em determinados casos. Nesta suposição, a situação jurídica fica pendente com relação a esses casos sujeitos a apreciação posterior, mas conclusa com relação a todos os demais. Daí se vê que a justiça está fracionada.

Um contrato livremente concertado entre as partes, e justo no momento de sua celebração, deve ser cumprido por ambas, ainda que depois ocorram acontecimentos que façam com que uma das partes se arrependa de tê-lo assinado. Em outras palavras, a meditação se o contrato é justo ou não, liga-se às circunstancias existente na data de sua celebração, descartando as que logo sobrevêm. Daí o sentido do brocardo “pacta sunt servanda” – os contratos tem que ser cumpridos.

Kant chama nossa atenção para a hipótese de um criado que não pode pedir a seu amo aumento de salário, previamente estipulado, invocando a diminuição de seu valor aquisitivo. Sem dúvida, a mudança das circunstâncias após a celebração do contrato pode ser tão radical que pareça uma injustiça insuportável obrigar uma das partes a cumprir o contrato. Nesta suposição, se torna em consideração as novas circunstâncias e se permite à parte prejudicada pelos acontecimentos pedir uma modificação do contrato ou sua rescisão. Esta regra é sustentada pela chamada teoria da clausula rebus sic stantibus, ou seja, cláusula do “como estão as coisas”, em virtude da qual a validade de qualquer contrato está subordinada à continuação das circunstâncias  existentes na data de sua celebração, de maneira tal que se estas circunstancias se modificassem de maneira essencial, a parte prejudicada não ficaria obrigada a cumprir o contrato em sua forma primitiva.

Isso só funciona se as novas circunstâncias favorecem uma parte e prejudicam outra, já que s e ambas as partes saem uniformemente prejudicadas ou beneficiadas, haverá entre elas acordo sobre o cancelamento e a manutenção do contrato.

Em alguns casos os Códigos enfocam hipóteses especiais de aplicações da teoria da cláusula rebus sic standibus. Assim, por exemplo, os códigos civis permitem revogar a doação por ingratidão do donatário ou pela existência de filhos supervenientes, do doador.

O método mais enérgico de dar uma situação o caráter de conclusão é a chamada coisa julgada, cujo efeito consiste em que, uma vez que a sentença resulte irrecorrível dentro  do processo em que foi ditada, seu tema não pode ser objeto de uma nova discussão entre as mesmas partes e pela mesma causa. Há, aí, reflexo para o futuro. Não obstante, se em matéria penal se condena uma pessoa por um delito, e logo a legislação diminui a pena deste tipo de delito isento de pena, a pessoa condenada se beneficia por dita mitigação. Há aí, reflexo para o passado.

Se se procede a uma expropriação forçada para dedicar a coisa expropriada a um fim determinado e não se cumpre com esta destinação prometida, cabe manter a expropriação ou conceder à pessoa expropriada a retrocessão, tendo em conta que o objetivo que, naquele momento, justificava a expropriação, já não pode ser invocado.

Injustiças ex tunc se apresentam sobretudo em dois grupos de casos.

No primeiro, tomamos conhecimento, após o ato judicial, de um fato anterior que nos faça com que aquele ato nos pareça injusto desde o início. Mencionamos, por exemplo, a revogação de uma doação, na suposição de estar vivo o filho do donatário, que este considerava morto ao fazer a doação. Inclusive a coisa julgada pode sucumbir ante tal circunstancia. Em matéria penal ocorre o mesmo se condenarmos alguém que depois fica provado que era inocente. Por outro lado, não é permitido modificar a sentença que absolve alguém que logo se prova ser culpado. Em matéria civil pode-se revogar uma sentença firme, se o vencedor a obteve por meio de uma fraude processual.

Mas, o maior problema com que se defrontam os homens que lidam com a justiça é que nenhum ato de justiça é completamente justo enquanto em qualquer rincão do mundo persiste uma injustiça; porque é injusto fazer justiça se não se faz justiça para todos.

O fato de não se poder  praticar atos  perfeitos de justiça não nos deve, entretanto – é claro – nos levar a deixar de praticar atos relativos de justiça, uma vez que maior afronta, em vista da justiça, seria essa omissão.

Um criminoso não pode defender-se sob alegação de que não se puniu um outro. Quando se processava os criminosos de guerra havia os que sustentavam que enquanto não se castigasse a tosos os criminosos de guerra, qualquer que fosse o país a que pertencessem, não er ajusto por na forca qualquer um deles. Já sabemos que este argumento não é correto, visto que nos encontramos com um caso normal do emprego do método de justiça relativa.

Em muitos casos, grupos sociais protestam contra a injustiça que consiste em que o regime faça justiça a outro grupo sem tê-la feito também ao peticionário. A petição de um grupo social, no sentido de que se melhore sua situação, parte quase sempre da situação mais favorável de outro, que se aceita como justa, a fim de mostrar, em vista desta, a injustiça daquela. Inclusive na suposição de que o povo clama pela abolição de privilégios, pedindo, por conseguinte, a redução da outra classe em nível da própria – o nervo do argumento é sempre a força contagiosa da injustiça.

O povo tem por justa sua própria situação, mas essa justiça periga pela injustiça com que se trata um grupo privilegiado.

Além disso, ter-se-á que distinguir se a injustiça, em vista da qual se discute uma justiça relativa, considera um dever-ser ideal aplicado pessoal ou impessoalmente. Se, por exemplo, a justiça relativa de castigar um contrabandista se tem por injusta porque não se castiga outro contrabandista, perfeitamente idêntico, mas muito poderoso – dever-ser aplicado pessoalmente. Ou porque não se consegue descobrir quantos contrabandistas atuam no país – dever-ser ideal aplicado impessoalmente.

Há, também, a imensa área dos crimes e castigos coletivos. Por motivo de um crime cometido por indivíduos pertencentes a uma comunidade contra indivíduos pertencentes a outra, esta última, sem entrar em maiores indagações, castiga qualquer indivíduo da comunidade delinqüente. Esse modo de fazer justiça consiste juridicamente na instituição de represálias. Em tempos de guerra esta instituição é amplamente praticada e se justifica, porque durante a guerra não é possível punir os verdadeiros culpados, que não são acessíveis à ação punitiva da vítima, e esperar o fim da guerra contribuiria para se tornar impossível o castigo dos culpados, já que aumentaria suas possibilidades de ganhá-la.

Às vezes uma comunidade que teme ser agredida trata de garantir-se seqüestrando indivíduos da comunidade suspeita de delinqüir, utilizando-os, pois, como reféns.

Com essas ações a parte agredida se dá por satisfeita, sem chegar à punição do membro individualmente culpado.

Ainda recentemente vimos quando o Irã manteve presos inúmeros diplomatas americanos durante mais de um ano; o Iraque, reteve como reféns milhares de americanos, ingleses, inclusive brasileiros, tentado impedir a expedição punitiva que se desencadeava contra si; Israel possui em suas prisões centenas de iranianos, iraquianos explodiram outro avião americano quando saía de Londres. Nos dois ataques morreram umas seiscentas pessoas.

Tanto nos casos dos reféns como das vítimas mortais, tratava-se de homens, mulheres e crianças, todos inocentes, sem qualquer participação ou responsabilidade nos conflitos entre as partes. Nesses aviões havia inclusive passageiros de países outros, neutros, inteiramente alheios às razões do conflito: paquistaneses, hindus, japoneses, etc.

Da mesma maneira procede o terrorista, quando, devido a um agravo, real ou imaginário, da sociedade, castiga qualquer membro dela. Igualmente o anarquista, que não age contra o delinqüente – que para ele é a sociedade – mas contra um indivíduo relativamente inocente.

Esse mesmo critério de justiça se vê na responsabilidade da pessoa jurídica por danos produzidos por seus órgãos e empregados. O pagamento é feito por todos os sócios e acionistas, podendo chegar até a insolvência e à falência.

Mas, se nessa mesma área da responsabilidade civil, se uma pessoa é obrigada a pagar indenização de danos e prejuízos, para que houvesse verdadeira justiça deveria pagar a indenização pelo dano total produzido, material ou moral, e pagá-lo a qualquer pessoa prejudicada, seja a vítima direta, seja a vítima indireta. No entanto os diferentes direitos limitam a obrigação indenizatória. Quem fere a outro num acidente não responde pela contaminação hospitalar contraída pelo ferido no hospital, nem pelo contágio de outros membros da família, nem pelas coisas que venham a ser furtadas do acidentado no hospital, ou em sua casa, enquanto imobilizado numa cama.

Há delitos cujas conseqüências são tão universais que os culpados nem remotamente podem responder pelos danos causados. Recordemos, por exemplo, o assassinato de Kennedy, em 1963. Era o grande defensor da liberdade e da democracia nas Américas. Foi após o seu desaparecimento que surgiram ditaduras militares em quase todos os países latino-americanos. O homem que o matou, contudo, só cometeu um homicídio.

A justiça penal efetua um corte num fluxo vital, quando se limita a julgar um fato determinado. Não investiga as causas remotas. Não analisa a infinidade de circunstâncias passadas, do ambiente, da herança e do caráter que deram origem ao delito. Programaticamente fala-se de um direito penal que contempla o crime, em oposição a outro que olharia para o criminoso. É certo que o primeiro sabe fazer concessões ao último. Assim, toma em consideração a habitualidade, a reincidência e a reiteração. Também a determinação meramente relativa das penas permite ao juiz tomar em consideração os antecedentes do acusado no momento de individualizar a pena. Finalmente, há que mencionar como instituições o indulto e a anistia.

O relativismo da justiça se vê ainda num conjunto de fatos em que intervêm várias pessoas. Muitas vezes só são responsabilizadas algumas. Alguns personagens ficam isentos de responsabilidade e a carga penal cai apenas sobre alguns. As autoridades não se interessam em perseguir os principais responsáveis, contentando-se em castigar os seus instrumentos. Isso ocorre principalmente no contrabando, tráfico de entorpecentes, tráfico de escravas brancas.

Outras vezes, em relações de trabalho, são despedidos uns empregados grevistas, e outros, não. Ou o empregador despede todos e depois readmite alguns.

Em matéria civil, o detentor de direitos pode escolher, dentre vários co-obrigados, aquele contra quem promoverá a ação ou a execução. Na gestão dos negócios a responsabilidade civil se baseia muitas vezes em circunstancias meramente objetivas (responsabilidade objetiva). O patrão responde, ainda não existindo a culpa in eligendo (culpa ao escolher) de seus empregados. O dono de coisas inanimadas (por exemplo, automóveis) ou de animais responde pelo dano que produzem. No direito Civil romano um contrato era válido, ainda que uma das partes tivesse enganado a outra.

Há recompensas em que se premiam pessoas contemporâneas por injustiças cometidas contra pessoas mortas, pelo fato de se acharem as primeiras vinculadas, de algum modo, às últimas.

Os familiares do morto recebem pensão por causa dos serviços que o mesmo prestou ao Estado. A indenização que a Alemanha pagou a Israel, beneficia os judeus de hoje pelo mal tratamento dado aos judeus da época hitleriana.

Outras vezes uma pessoa viva é castigada por injustiças perpetradas por seus antepassados. Luis XVI pagou na guilhotina pelos estóicos e formulada por Cícerop e Ulpiano, concebe a justiça como uma virtude. Assim, afirma o primeiro que a justiça é “o hábito do espírito mantido por utilidade comum que atribui a cada um o que é seu”; e o segundo sustenta que se trata da constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu”. Já Aristóteles considerou a justiça como o comportamento habitual do justo. Considerando a justiça, no ponto de partida, como virtude, o justo é produzido pelo ato de justiça, e é, por conseguinte, sempre um justo particular. O caminho à compreensão da função da justiça, em seu aspecto relativo, fica assim bloqueado. Não é por casualidade que as únicas estruturas formais da justiça que até agora se conheciam – a justiça se depreende, pois, que em rigor não existe senão a justiça divina. A justiça humana é sempre imperfeita em sua realidade, e só uma idéias reguladora, como ideal.

A justiça de qualquer de nossas resoluções se vicia pelo desenvolvimento incessante do mundo, pelo contágio com qualquer ilícito, no rincão mais distante da terra, pelo progressus as infinitium. Todo ato de justiça humana contém, necessariamente, estes quatro granitos de injustiça. Se quiséssemos excluir a influência retificadora do porvir, haveríamos de cruzar os braços até chegar o fim do mundo; como esta inatividade constituiria a maior das injustiças, tem que se levar a cabo atos de justiça ou injustiça relativas que se isolem pela marcha do mundo. Se desejássemos extirpar todas as injustiças incrustadas no corpo da humanidade, não saberíamos onde começar, e eis-nos aqui paralisados, desprezando o único  caminho possível, consistente em avançar paulatinamente, praticando justiças imperfeitas, visto que nossa razão prática é tão discursiva como a razão teórica.

Nossa incapacidade teórica de prever o futuro, nossa incapacidade prática para desfazer todos os errados, e nossa incapacidade teórico-prática de relacionar um ato com todos os acontecimentos concomitantes, provocados e causais, obstam a que se realize um só ato de justiça completa. A justiça pura é como o ouro puro: requer a amálgama com metais menos nobres para lograr a dureza necessária para suportar a realidade.

Mas esta imperfeição necessária inerente a cada ato de justiça, e que resulta do emprego do método do fracionamento com o qual separamos o futuro, faz-nos emudecer acerca das injustiças que nos rodeiam. Podamos os ramos e nos contentamos em arrancar algumas raízes mais visíveis. Porque essa realidade não deve ser obstáculo para que o homem realize atos de justiça, sob pena de incorrer na injustiça absoluta que consiste na omissão de cometer injustiças relativas.

A Justiça, ainda que relativa, produz segurança jurídica.

Deve-se distinguir, contudo, entre a segurança jurídica  e a ordem. O último é o valor que leva a cabo qualquer regime, por mais injusto que seja, a fim de eliminar, por sua própria Constituição, toda classe de anrquia, que encarna o desvalor da arbitrariedade. A segurança jurídica, ao contrário, se pressupõe a existência de ordem, significa muito mais, toda vez que reclama uma ordem com justiça. A explicação está precisamente em que a segurança jurídica é parte integrante da justiça, e não é senão o resultado do relativismo desta última.

Justiça e segurança jurídica não travam uma batalha como dois elementos hostis, como fogo e água, mas se trata da maré baixa de um só mar: da Justiça.

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