A Missão criadora da Jurisprudência – A Revolução Copérnica da Súmula de Efeito Vinculante
14 de julho de 2011
René Ariel Dotti Professor titular de direito penal da UFPR
(Artigo originalmente publicado na edição 95, 06/2008)
Em sessão considerada histórica pelo ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal aprovou a 4ª ‘súmula de efeito vinculante’, sobre a restrição de uso do salário mínimo como fator de indexação. Poucos dias após, surgiram a 5ª e a 6ª súmulas.
Independentemente da avaliação do seu conteúdo, nasce um possível e promissor meio para garantir a celeridade de tramitação de muitos processos com razoável duração, como determina a lei fundamental.
Atualmente, as salas de trabalho dos magistrados nos fóruns das grandes cidades, em tribunais estaduais ou federais de Justiça, exibem as cargas oceânicas de processos que invadem as mesas e deságuam nas estantes, nos armários e em outros espaços físicos, para manter os litígios concentrados em papéis costurados com milhares de metros de fios de esperança. No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal os depósitos são muito maiores. Nos gabinetes dos ministros os feitos disputam espaços com livros, cadeiras, mesas e outros móveis que se alternam para receber – dia mais dia! – novos autos a imitar a lenda trágica de Sísifo, condenado no Inferno a rodar continuamente uma grande pedra roliça da raiz de um monte até o alto dele, de onde logo tornava a cair.
Mas, além de incorporar a missão espiritual do seu ofício, da compreensão familiar, do apoio de assessores e outros funcionários, da solidariedade de amigos e de cumprir fielmente os três preceitos fundamentais do Direito Romano, atribuídos a Ulpiano – honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar os outros, dar a cada um o que é seu) –, qual é o estímulo para o juiz se libertar da rotina asfixiante quando é acossado durante o dia pelos papéis e à noite é perseguido pela autocobrança do que falta decidir?
Interpretando a fábula de Sísifo, Albert Camus deixou-o no sopé da montanha: “Cada um dos grãos dessa pedra, cada brilho mineral dessa montanha imersa em trevas forma por si só um mundo. A própria luta em direção aos cimos é bastante para preencher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.
André Maurois avaliou a influência dessa obra sobre os jovens franceses, quando apareceu, em 1942, durante a resistência. Nunca o mundo parecera tão absurdo com a tragédia da guerra, a ocupação e o predomínio da violência e da injustiça. Sísifo seria a pessoa humana que no princípio do século conseguiu levar a rocha até o alto da montanha. O conflito mundial fizera cair a pedra sobre os escombros, sem força nem coragem. Então, aquela voz jovem se ergueu e falou: “Sim, é assim mesmo; sim, o mundo é absurdo; não, não há nada a esperar dos deuses. E, no entanto, face a esse implacável destino, importava tomar consciência dele, desprezá-lo e, na medida do possível, transformá-lo. Compreende-se que essa voz tenha sido escutada. Era isso ou nada” (de Proust a Camus).
A ‘súmula de efeito vinculante’ deverá acabar com a litigiosidade incontida do Poder Público, costumeiro litigante de má-fé e inventor do calote dos precatórios; deverá reduzir imensamente o número de processos do interesse de bancos e companhias seguradoras; deverá abrir frinchas na paliçada dos recursos especial e extraordinário, de íngremes e tortuosos acessos; deverá, também, reservar pautas para conhecer e julgar inúmeros casos com a centelha de humanidade que eles contêm.
A excelsa Corte brasileira, testando e aprovando a prática das súmulas, poderá conferir à jurisprudência a segurança jurídica e o vigor didático próprios da boa legislação.
Poderá, enfim, mudar o eixo de rotação da vida de muitos juízos e tribunais de infinitas causas, e acabar com a provação bíblica de seus membros, seqüestrados da liberdade do trabalho e da felicidade de alma.
René Ariel Dotti
Professor Titular de Direito Penal da UFPR