Edição

A paixão por Quixote

5 de agosto de 2004

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Que a narrativa do engenhoso fidalgo de La Mancha é cativante, todos sabem. O que poucos conhecem, no entanto, são os recursos que a obra detém no sentido de realimentar em seus leitores, em diferentes épocas da história da humanidade, uma verdadeira “paixão” pela história e pelas personagens que empreendem uma longa andança pela Espanha, no limiar dos séculos XVI e XVII. Um cavaleiro e seu escudeiro que, em busca de aventuras, vão travando uma longa amizade pautada pela lealdade entre o louco ou o ingênuo sonhador e seu fiel, desastrado e também perspicaz escudeiro. Amizade esta considerada como uma das mais bem representadas em toda a literatura.

Admirar as gravuras da exposição “O Quixote ilustrado”, promovida pelo Instituto Cervantes do Rio de Janeiro com o apoio da Conselheria de Cooperação e Cultura da Embaixada da Espanha, no Centro Cultural Justiça Federal, e ler suas legendas retiradas de trechos da obra maior de Cervantes proporciona aos seus leitores o prazer de relembrar as aventuras de Dom Quixote e seu leal amigo Sancho Pança. A exposição apresenta o que de melhor se produziu na ilustração espanhola relativa a uma das grandes obras do chamado “Século de Ouro”. Até o final do século XVIII, as edições ilustradas do Quixote eram produzidas em outros países da Europa e com interpretações equivocadas sobre a geografia espanhola, seu vestuário, construções e, principalmente, sobre seu personagem título, que em várias ocasiões recebeu a caricatura do tipo ridículo. Acadêmicos, ilustradores, gravuristas e editores do rico período do Iluminismo espanhol (terceira parte do século XVIII e princípio do XIX), com o apoio de sua elite intelectualizada, desejavam republicar os melhores livros espanhóis para restaurar o prestígio da literatura e artes nacionais e, no caso, a obra de Cervantes ocupou atenção especial.

As gravuras que temos o orgulho de abrigar no Rio de Janeiro mostram, através das passagens do livro às quais fazem referência, o cuidado e a riqueza de detalhes de artistas completamente envolvidos com a obra e com o desejo de fazê-la ainda maior e mais (re)conhecida. A visita às excelentes galerias do Centro Cultural Justiça Federal não está voltada apenas aos leitores do Quixote mas também aos que ainda não experimentaram o prazer que emana deste texto. Não resta dúvida de que as preciosas ilustrações da obra acabam despertando o desejo da leitura (como alguns diziam no dia de sua inauguração), tanto para os iniciantes quanto para os iniciados, convidando, de modo irresistível, a uma volta ao texto cervantino.

“O bacharel foi procurar o tabelião e dali a pouco voltou trazendo-o e a Sancho Pança também; e este, que já sabia pelo bacharel o estado em que seu amo se achava, topando a ama e a sobrinha chorosas, começou igual-mente a soluçar e a derramar lágrimas. Acabou-se a confissão, e saiu o cura dizendo:

– Deveras morre, e está deveras com siso Alonso Quijano, o Bom; e podemos entrar, para ele ditar o seu testamento.

Estas novas fizeram rebentar de novo as lágrimas dos olhos, e mil profundos suspiros dos peitos da ama, da sobrinha e de Sancho Pança, seu bom escudeiro; porque, realmente, como já se disse, Dom Quixote, ou enquanto se chamou a seco Alonso Quijano, ou enquanto usou o nome de Dom Quixote de la Mancha, sempre se mostrou homem de aprazível condição e de agradável trato; e por isso, não só era muito querido dos da sua casa, mas de todos quantos o conheciam. Veio o tabelião com os outros, e depois de ter feito o cabeçalho do testamento, e depois de Dom Quixote haver tratado da sua alma, com todas as circunstâncias cristãs que se requerem, quando chegou às deixas disse:

– Item, é minha vontade, que de certos dinheiros que tem em seu poder Sancho Pança, a quem na minha loucura fiz meu escudeiro, se lhe não faça cargo nem se lhe peçam contas; mas que, se sobrar algum, depois dele se ter pago do que lhe devo, com ele fique; bem pouco será, mas que lhe faça bom proveito; e se, assim como, estando eu louco, fui parte que se lhe desse o governo de uma ilha, pudesse agora, que estou em meu juízo, dar-lhe o de um reino, dar-lho-ia, porque a singeleza da sua condição e a fidelidade do seu trato assim o merecem.”