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A Transação Penal como ato da denominada Jurisdição Voluntária

5 de fevereiro de 2000

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Introdução

O advento da Lei nº 9.099/95, que, dentre outras medidas, atendendo ao comando constitucional (art. 98, I), instituiu e disciplinou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, proporcionou imensa euforia, atraindo os novos institutos despenalizadores não só as atenções dos operadores do direito mas, sobretudo, as esperanças de que um “novo processo penal” se inaugurava a partir daquele momento. E, induvidosamente, uma das maiores inovações trazidas pelo referido diploma legal foi justamente a denominada transação penal, cujas vantagens, entre várias, consistiriam na simplificação da resposta repressiva e, sobretudo, na considerável diminuição do número de procedimentos a cargo do juiz criminal, que finalmente poderia debruçar-se sobre a criminalidade de alta lesividade social, sobre as condutas realmente graves.

A razão de ser do instituto ora analisado prende-se, intimamente, à adoção do princípio da obrigatoriedade em nosso sistema. Como não se ignora, sempre se discutiu, sobretudo em sede doutrinária, o alcance de tal princípio da ação penal pública.  Havendo indícios quanto à autoria e à existência do delito, presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, estaria o Promotor de Justiça obrigado ao oferecimento de denúncia, sempre? Alguma mitigação  seria concebível nesta matéria?  De forma inovadora, autores da estatura de Euclides Custódio da Silveira e José Frederico Marques sempre advogaram, partindo da redação adotada pelo art. 28 do Código de Processo Penal (Art. 28. Se órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”),  a possibilidade de o Parquet, por razões de política criminal e sobretudo naquelas infrações “de bagatela”, deixar de oferecer a denúncia, atendendo, assim,  ao fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil). Argumentava-se que a base legal de tal entendimento repousava na imprecisa expressão “razões invocadas” utilizada pelo legislador no sobredito art. 28. Nas palavras do próprio Frederico Marques, “… não dizendo a lei processual que razões são essas, nada impede que o Ministério Público invoque motivos de oportunidade condizentes com o que exige o bem comum.”

A tese, no entanto, não sensibilizou a comunidade jurídica. Na criminalidade de bagatela e naquelas hipóteses em que prescrição retroativa já se mostrava provável mesmo antes do oferecimento da denuncia – a chamada prescrição pela pena ideal – preferiram os Tribunais, e a própria doutrina, trabalhar com outros argumentos (atipicidade ou falta de interesse de agir), deixando incólume o princípio da legalidade, consagrado pelo art. 24 da Lei de Ritos.

Tal quadro, hoje não temos nenhuma dúvida a esse respeito, sofreu drástica alteração com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 98, ao admitir a transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo, disponibilizou ao Ministério Público, mesmo naquelas hipóteses em que o oferecimento da denúncia já se apresente possível, caminho despenalizador  no qual o consenso ganha extraordinário valor. Agora, possível será, presentes os requisitos previstos na Lei nº 9.099/95 (parágrafo 2º do art. 76), que antes de inaugurada a persecução criminal em juízo, se busque a satisfação da pretensão sancionatória do Estado por caminho menos gravoso ao autor da conduta criminosa, impondo-se-lhe penalidade pecuniária ou restritiva de direitos da qual não resultarão os efeitos próprios da condenação criminal. Mitiga-se, assim, o princípio da obrigatoriedade, até então inflexível, merecendo destaque, a esse respeito, a lição, dentre outros, do Professor e Procurador de Justiça aposentado Júlio Fabbrini Mirabete, in verbis:

“Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, é hipótese de discricionariedade limitada, ou regrada, ou regulada, cabendo ao Ministério Público a atuação discricionária de fazer a proposta, nos casos em que a lei o permite, de exercitar o direito subjetivo de punir do Estado com a aplicação de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo sem denúncia e instauração de processo. Essa discricionariedade é atribuição pelo ordenamento jurídico de uma margem de escolha ao Ministério Público, que poderá deixar de exigir a prestação jurisdicional para a concretização do ius puniendi do estado. Trata-se de opção válida por estar adequada à legalidade, no denominado espaço de consenso, vinculado à pequena e média criminalidade, e não ao espaço de conflito, referente à criminalidade grave.” (ob. cit., pág. 81) – g.n.

Breves considerações sobre a disciplina legal da transação penal

O instituto da transação penal viu-se disciplinado pelo art. 76 da Lei nº 9.099/95, cuja redação é a seguinte:

Art. 76 – Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º – Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º – Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3º – Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º – Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

§ 5º – Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º – A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

Pelo regramento da Lei, lavrado o termo circunstanciado pela Autoridade Policial (art. 69), que deverá ser imediatamente encaminhado ao Juizado Especial, o primeiro momento da fase pré-processual inicia-se com a audiência preliminar de conciliação, prevista no art. 72, momento adequado tanto para a eventual composição dos danos civis entre o autor do fato e a vítima, quanto para a própria formulação e aceitação da proposta de transação penal. Esta última, cabível unicamente em se tratando de ação penal de iniciativa pública, consistirá na possível aplicação imediata de sanção pecuniária ou restritiva de direitos, devidamente especificada pelo Parquet.

Na forma imposta pelo parágrafo 3º do dispositivo acima transcrito, o autor do fato deve ser assistido por advogado ou defensor público, condição de validade da transação penal. Aceita a proposição pelo autor do fato e seu advogado, que poderão inclusive formular contra-propostas ao Parquet com o objetivo, por exemplo, de diminuir a quantidade da pena pecuniária ou  a duração e a forma de cumprimento da sanção restritiva de direitos, o transacionado é submetido à apreciação do Poder Judiciário (par. 3º), a quem cabe a aplicação da sanção (par. 4º), se presentes os requisitos de que cuida o par. 2º.

A homologação da transação, de  acordo com a expressa dicção legal (par. 4º), não importará na caracterização de reincidência nem constará de anotações criminais (par. 4º), registrando-se a aplicação da penalidade apenas com vistas  a impedir que o autor do fato, no período de 5 (cinco) anos, se veja novamente alcançado pela medida benéfica.

Por último, da decisão que deixa de homologar a transação, ou daquela em que o juiz aplica a sanção de forma absolutamente contrária ao entabulado entre o autor do fato e o Ministério Público, cabe o recurso que a lei, no par. 5º do art. 76, denomina de apelação, irresignação que será apreciada pelas Turmas Recursais do próprio Juizado Especial Criminal (art. 82).

De tal disciplina, sumariamente exposta, surgem algumas sérias indagações, muitas das quais, concessa maxima venia, enfrentadas de forma artificial por alguns. Dentre inúmeras, podemos destacar as seguintes:  1) utilizando-se a Lei da expressão “pena” (art. 76, caput), qual a natureza jurídica da decisão que aplica a medida sancionatória? tem ela natureza condenatória?; 2) sendo condenatória, importaria a sua aceitação pelo autor do fato na conseqüente aceitação de culpa (nulla poena sine culpa)?; 3)  o procedimento instituído para a aplicação da sanção penal observa os princípios reitores da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV da C.F./88) ou, de forma mais ampla, o próprio devido processo legal (art. 5º, LIV, da C.F./88)?  Passemos ao tema.

O fenômeno da constitucionalização do processo: análise do instituto  à luz dos princípios constitucionais

O perfeito conhecimento de determinado ordenamento ou sistema jurídico, como não se ignora, é tarefa intimamente ligada à precisa apreensão de seus  princípios reitores. São os princípios as regras gerais que, irradiando-se por todo o sistema, conformarão, não só a atividade do aplicador do direito, mas também, em momento logicamente anterior, a própria elaboração da norma jurídica. Informam e conformam, inspiram e dão o preciso contorno, constituindo-se nos “enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber.” E, no campo da principiologia, o texto constitucional de 1988, seguindo a tendência de todos os países democráticos e atento aos documentos internacionais, é pródigo em consagrar um rol bastante diversificado, informativo dos mais variados ramos do direito, sobretudo o processual penal.

Aliás, como de há muito constatado pela doutrina, talvez seja o Direito Processual o que maiores reflexos receba do Direito Constitucional. Fala-se mesmo na existência de um verdadeiro Direito Processual Constitucional, não como disciplina cientificamente autônoma, mas, antes, como o campo do estudo jurídico no qual torna-se possível a identificação das regras constitucionais que informam a ciência processual.

O fenômeno da constitucionalização do processo não é novo. Na doutrina pátria, conforme nos informa José Frederico Marques, os clássicos Paula Batista, Pimenta Bueno  e João Mendes Júnior já manifestavam clara percepção do fenômeno. Entre os estrangeiros, Kelsen, Couture e Liebman. Resumindo tudo o que se pode dizer sobre o tema, com a elegância de estilo que marca os seus escritos, e ressaltando o papel de fonte material do processo exercido pela constituição, afirma Frederico Marques que: “A lei ordinária  precisa moldar seus imperativos segundo as diretrizes políticas da Lei Maior. Nos preceitos programáticos da Constituição, e em seu substrato ideológico, deita raízes o Direito Processual para plasmar o seu procedimento. Não é qualquer processo que pode ter esse nome, como lembra COUTURE, mas tão-só aquele que em consonância com os dogmas da democracia e as garantias aos direitos do homem, estruture as formas do juízo assegurando o respeito às liberdades individuais e aos direitos proclamados pela Constituição.”

Pois bem. O estudo do constitucionalismo universal demonstra  que  aquilo que hoje a quase totalidade dos textos constitucionais concebem como devido processo, leito no qual vão repousar diversos outros princípios fundantes (v.g., ampla defesa e contraditório, igualdade, publicidade, juiz natural, duplo grau de jurisdição, presunção de não-culpabilidade etc), é fruto de lenta evolução política. Concebido inicialmente pela Magna Carta de 1215 como imposição dos barões feudais ao Rei João Sem Terra, foi encontrar no Direito Constitucional Americano o seu mais espetacular desenvolvimento, findando por alcançar, não só previsão expressa na Constituição daquele País (Emenda V – “Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, corram nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando sem serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigada a depor contra si própria em processo criminal ou ser privada da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular; a propriedade privada não será desapropriada para uso público sem justa indenização.”), como também uma aplicação bastante ampla por parte da Suprema Corte Americana, chegando alguns autores a afirmar que o hoje tão invocado princípio da razoabilidade  nada mais é do que a evolução do ancião due process of law.

Embora, de acordo com o próprio texto constitucional, não tenha o referido princípio incidência exclusivamente no campo  do direito processual penal, é induvidoso que é aqui que  a necessidade do processo justo encontrará maior campo de atuação, responsável que será pelo equilíbrio entre as antagônicas pretensões de liberdade e de punição, aquela titularizada por todos os indivíduos e esta pelo Estado. Funcionará o referido princípio, assim, como um verdadeiro “certificado de qualidade”  na imposição da pena, ritual  que o próprio Estado reconhece como necessário e justo. É neste sentido, desenganadamente,  que se fala no processso como verdadeira “necessidade jurídica” (nulla poena sine iudicium).

Retornando ao questionamento a respeito da observância, ou não, do devido processo legal por ocasião da transação penal, esboçada no último parágrafo do tópico anterior,  tem-se que o atual estágio da doutrina a esse respeito é de incompreensível conformismo com a afirmação, a nosso ver errônea, de que a medida despenalizadora em comento, fundando-se na autonomia da vontade e por encontrar expressa previsão no texto constitucional, dispensaria a adoção do “devido processo legal clássico”, admitindo os autores de forma surpreendentemente majoritária a aplicação de sanção penal sem o exercício do contraditório amplo e sem o reconhecimento ou a assunção de culpa (nulla poena sine culpa). Argumenta-se que ao prever a assistência de advogado teria o legislador garantindo a ampla defesa e que o due process of law seria o previsto na própria Lei nº 9.099/95, a qual, estabelecendo  a necessidade de homologação do acordo pelo Poder Judiciário, teria emprestado  legitimidade ao instituto.

Tal modo de interpretação da Lei demonstra imenso fascínio com os resultados práticos da transação e do próprio Juizado Especial. Fala-se, então, na desburocratização e celeridade da prestação jurisdicional, na democratização do Poder Judiciário e na “deformalização” das controvérsias. Imagina-se que com a instalação dos Juizados, um enorme número de feitos deixarão de merecer a apreciação por parte dos juízes criminais, que poderão, enfim, debruçar-se sobre casos mais graves e complexos. Ou seja, empresta-se à Lei, utopicamente, o exagerado papel de causar uma revolução jamais vista no sistema processual penal brasileiro, dando-se franca ênfase ao enfoque utilitarista dos novos institutos.

Dos poucos que até hoje resolveram insurgir-se contra a opinião comum, vamos encontrar no professor Miguel Reale Júnior um dos mais candentes críticos da Lei. No trabalho intitulado “Pena sem Processo”, publicado pela editora Malheiros numa pequena coletânea de textos sobre os Juizados Especiais, afirma o renomado jurista, sem rebuços, que ao afastar-se dos princípios da ampla defesa e do contraditório e ao estabelecer a imposição de pena sem o reconhecimento de culpa, teria o art. 76 incorrido no vício da  inconstitucionalidade. Pelo valor da argumentação e pretendendo ser fiel às idéias do autor, pede-se vênia para transcrever um pequeno trecho do trabalho: Sem que haja opinio delict, e, portanto, inexigindo-se a existência de convicção da viabilidade de propositura da ação penal, sem a fixação precisa de uma acusação, sem elementos embasadores de legitimidade de movimentação da jurisdição penal, e, portanto, sem legítimo interesse de agir, o promotor pode propor um acordo pelo qual o autuado concorda em ser apenado sem processo. E, diga-se, é um acordo tolo.

Qual a vantagem de fazer este acordo? A vantagem evidente é livrar a justiça penal de um processo. Mas para isso não era necessário adotar-se a aplicação de pena sem processo. A cegueira jurídica decorre do afã de se permitir a celeridade, alçada a valor supremo.”

Ou seja, em homenagem à tão sonhada celeridade processual, afastam-se regras constitucionais, fruto de séculos de amadurecimento político, colocando-se o valor  justiça em segundo, quiçá terceiro plano.

O argumento de que a transação penal foi autorizada pela própria Constituição, o que tornaria  legítima a mitigação do devido processo legal,  é evidentemente artificial. A esse respeito, é de se indagar, como o faz o referido Professor Reale, se a mesma Constituição, que consagra os direitos individuais como cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º, IV), só pelo fato de ter admitido a transação penal nas chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo, estaria permitindo o afastamento das garantias da ampla defesa e do contraditório. Daqui, surgiria uma outra necessária pergunta: os direitos individuais não podem sofrer limitações por parte da própria Constituição? É evidente que sim. Só que, como facilmente se depreende, quando o legislador constituinte desejou mitigar ou excepcionar direitos ou garantias individuais, ele o fez de forma expressa: O direito à vida sofreu restrições no art. 5º, XLVII, a, que admitiu a pena de morte em tempo de guerra; também o direito à liberdade, ao possibilitar o legislador a sua restrição através de medidas cautelares (art. 5º, LXI), inclusive vedando a liberdade provisória em algumas hipóteses (art. XLIII); igualmente, o direito à intimidade e à vida privada sofreu poderosa mitigação através da admissibilidade de interceptação  das conversações telefônicas (art. 5º, XII); idem, quanto ao sigilo de correspondência e ao direito de reunião durante o estado de defesa (art. 136, par. 1º, I); também a propriedade, que pode ser desapropriada por necessidade pública ou interesse social (art. 5º, XXIV) etc.

Um outro aspecto merece ser considerado. Da forma como a doutrina vencedora vem interpretando o instituto, importa a transação penal na imposição de sanção penal sem o reconhecimento de culpa pelo autor do fato, circunstância que viola flagrantemente a regra inafastável do nulla poena sine culpa, alçada, entre nós, a status constitucional (art. 5º, LVII). Recorreremos, mais uma vez, às mordazes críticas do autor já tantas vezes citado: “O direito à não consideração prévia de culpabilidade, incisivamente inscrito na Declaração dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas de 1948, está consagrado em nossa Constituição e exige, para ser respeitado, que a imposição de pena tão-só decorra de sentença na qual se reconheça a culpabilidade, em decisão motivada.

Ora, com estes dados absolutamente fluidos, inseguros, mesquinhos, que se apresentam ao promotor pelo auto circunstanciado, autoriza-se propor ao réu, no calor do fato, uma transação, na qual ele transaciona com a sua liberdade.

Funcionando a culpa penal como verdadeira condição sine qua non e também como  parâmetro ao próprio dimensionamento da sanção (arts. 29 e 59 do Código Penal), não seria lógico nem jurídico que se admitisse que, com relação às infrações mais graves, o binômio culpa-pena ganhasse integral aplicação e, no campo das infrações penais de menor lesividade social, por razões meramente utilitaristas, restasse afastado o princípio  do nulla poena sine culpa. O retrocesso seria inegável, dando margem a que, no futuro, outras zonas de criminalidade  também fossem encontrar fundamentos outros para a aplicação da sanção criminal.

Também não convence a argumentação no sentido de que a autonomia da vontade, um dos pilares do direito privado, legitimaria a desnecessidade do reconhecimento de culpa. Aqui, pela precisão da abordagem, merece destaque a observação do Professor David Teixeira de Azevedo, in verbis: “Traz-se em apoio o princípio da autonomia da vontade. Perde-se, contudo, de vista ser da essência de um direito fundamental sua irrenunciabilidade. Ora, como acentuou acertadamente no painel promovido pelo Instituto Manoel Pedro Pimentel o Prof. Miguel Reale Júnior, se o princípio da autonomia da vontade cede em face de setores normativos e regulamentares da vida social, como, por exemplo, a relação de consumo, o direito obrigacional, em que deve preservar-se a base econômica do contrato e a equivalência contratual, não há porque prevalecer diante dos direitos e garantias individuais. A bem ver, a Constituição como núcleo de princípios, fundantes do Estado e asseguradores dos direitos e garantias individuais e sociais, não pode tolerar a tamanha contradição que é, em nome da dita autonomia – que lança profundas raízes no princípio da legalidade -, relevarem-se direitos de qualidade, natureza e status de fundamentais, porque ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei. Não se cuida de renunciar uma faculdade ou prerrogativa atribuída por lei, mas se trata da possibilidade de abrir-se mão de um rol de diretos, imantados em princípios constitucionais, cujo interesse não é particular deste ou daquele membro da comunhão, mas sustenta o próprio Estado democrático.” (os grifos são nossos.)

Ou seja, estaria a Lei nº 9.099/95 na contramão do direito privado, onde cada vez mais a autonomia da vontade vem perdendo terreno?

Da natureza jurídica da transação penal

Nos estudos a respeito da atuação jurisdicional do Estado, ganha força, atualmente,  a assertiva de que é a pretensão, entendida como a exigên de, visto que, não raro, o réu confessa irrestritamente os fatos narrados pelo acusador e não se haverá de falar, por tal motivo, na inexistência de processo. Em resumo e como conseqüência intuitiva: só haverá atividade jurisdicional onde houver pretensão veiculada pelo legitimado.

E, justamente esta última assertiva, somada às considerações a respeito da análise do instituto da transação  à luz dos princípios constitucionais, é que nos capacita a afirmar que a transação penal não apresenta as características básicas da atividade jurisdicional, visto que, por seu intermédio, sob pena de violação de todo o sistema constitucional, não veicula o Estado qualquer pretensão punitiva. Esta última, para ver-se satisfeita,  exige a estrita obediência ao devido processo legal, que encontrará no reconhecimento da culpa a base para a imposição da sanção (nulla poena sine culpa).

A esta altura, uma indagação: se a transação penal  viola os princípios constitucionais acima apontados, o único resultado interpretativo a que se pode chegar a respeito do art. 76 da Lei nº 9.099/95 é o da sua inconstitucionalidade? A resposta seria positiva numa perspectiva jurisdicional. Do contrário, a análise do instituto sob o enfoque não jurisdicional nos conduz a resultado diverso. Qual, afinal, a natureza jurídica da transação?

Como não se ignora, sem prejuízo  à célebre teoria da tripartição dos poderes do Estado (rectius: funções legislativa, jurisdicional e administrativa) concebida, dentre outros, por Montesquieu,  as especulações levadas a cabo pela Ciência Política demonstram que a referida divisão, hoje, obedece muito mais a critérios de preponderância do que  de exclusividade. É dizer, também o Judiciário, anomalamente, administra e estabelece normas gerais e abstratas (v.g., os regimentos internos dos tribunais); o legislativo julga (art. 52, I e II, da CF/88) e administra; o Executivo, igualmente, legisla sob o ponto de vista material e aplica a lei abstrata à solução de conflitos de interesses por intermédio dos procedimentos administrativos. De comum entre as três funções tem-se a circunstância de que todas elas emanam da própria soberania enfeixada pelo Estado. A distingui-las, diversos traços que a doutrina, hoje, consegue apontar de forma relativamente tranqüila.

Passando objetivamente ao ponto que nos interessa, e sem nos olvidarmos de que é o poder  de, imperativa e definitivamente,  solucionar os conflitos surgidos no meio social a marca mais característica da atividade jurisdicional, merece destaque a  assertiva no sentido de que “A jurisdição é uma das funções da magistratura, mas que outras existem, a ela afetas, a que se deve dar a denominação de funções judiciárias. Atribuição jurisdicional e atribuição judiciária são, assim, espécies diversas da atividade funcional que exerce o Poder Judiciário: aquela é função principal e a que o distingue dos demais poderes, no plano material; a última pode ser secundária ou anômala, e só no plano subjetivo ou orgânico se diversifica das que tocam ao legislativo e ao executivo.”.

Exemplos eloqüentes dos chamados atos judiciários em sentido estrito, no processo penal, vamos encontrar na atuação do juiz durante o inquérito (v.g., arts. 10, par. 3º, e 23 do C.P.P,  muito embora seja duvidosa a recepção de tais  dispositivos pelo atual texto constitucional – art. 129, I) e, sobretudo, no controle estabelecido no art. 28 do Código de Processo Penal. Também a jurisdição voluntária representa precioso exemplo do que aqui se afirma e a ela, especificamente, dedicaremos, a partir de agora, a nossa atenção.

Após discorrer longamente sobre as diversas teorias nacionais e estrangeiras sobre o tema, esmerando-se em distinguir e correlacionar as funções soberanamente exercidas pelo Estado e, em especial, pelo Poder Judiciário, o Professor Frederico Marques  apresenta  as seguintes características da jurisdição voluntária:

1)natureza administrativa, do ponto de vista material, e ato judiciário, do ponto de vista subjetivo;

2)função preventiva;

3)natureza constitutiva.

Noutra passagem, enfrentando a tormentosa distinção entre atividade jurisdicional e  a jurisdição voluntária, afirma o mesmo autor que: “Os traços funcionais de cada um dessas atividades, inconfundíveis e heterogêneos, aparecem, no tocante à jurisdição voluntária, com os seguintes caracteres: antes de mais nada, é atividade resultante de negócio jurídico em que se exige um ato do Estado, para que o negócio se realize ou complete. Como conseqüência, a atuação estatal é aí substancialmente constitutiva, devendo acrescentar-se que a lei a exige com o fim de prevenir lesões ou lides futuras, como bem salienta CARNELUTTI.”

Modernamente, após demonstrar, como acima destacado, que a nota característica do processo é a pretensão e não, como classicamente sempre se afirmou, a lide, afirma Afrânio Silva Jardim, in verbis: “Ademais, com este posicionamento teórico sobre a pretensão, julgamos resolver, ao menos em parte, a tormentosa questão de bem delimitar a chamada jurisdição voluntária.

Se a base indispensável do processo não é mais o conflito de interesses ou lide, a sua detectação, por vezes altamente controvertida, passa a ser absolutamente despicienda. Só será procedimento de jurisdição voluntária aquele que não contiver uma pretensão.

Em outras palavras, não havendo de um sujeito de direito a exigência que seu determinado interesse se sobreponha em face de outro, não temos processo, mas tão-somente jurisdição voluntária.”

E é justamente baseados nesta última assertiva que podemos afirmar que a transação penal não apresenta senão as características de um procedimento de jurisdição voluntária, pois, aqui, ao contrário do que ocorre na jurisdição contenciosa criminal, não exige o Estado a subordinação da liberdade ao seu interesse punitivo (pretensão punitiva). É dizer, da transação penal não pode resultar, ao menos que se violem a máxima do nulla poena sine culpa e os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, qualquer modalidade de sanção criminal.

Retornando às características da chamada jurisdição voluntária, numa análise comparativa com as da  jurisdição contenciosa (veiculação de uma pretensão, existência de um litígio, substitutividade da atuação do juiz, produção de coisa julgada, existência de uma relação processual), têm-se as seguintes :

1) Existência de um negócio jurídico, a cujo respeito a lei prevê a participação integrativa (não-substitutiva) do juiz;

2)Inexistência de lide, ou, para alguns, inexistência de pretensão, entendida esta como  a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio;

3 )inexistem partes;

4) a existência de mero procedimento;

5)Não- incidência dos efeitos da coisa julgada.

Ora, bem analisada a transação penal, numa postura interpretativa “conforme a constituição”, chega-se à conclusão de que ela preenche todas as características da jurisdição voluntária, acima  apontadas. Senão vejamos:

a) Na transação penal, não se tem nada além de verdadeiro negócio jurídico bilateral entre o autor do fato e o Parquet , mediante o qual o Estado abre mão, desde que cumprido o  transacionado, do exercício da pretensão punitiva abstratamente prevista no tipo penal, o que é benéfico ao autor da conduta. Em contraposição, este último aceita a imposição imediata de uma sanção administrativa (multa ou restrição de direitos), circunstância que satisfaz plenamente aos interesses preventivos e pacificadores do Estado;

b) Tal negócio jurídico tem a sua validade condicionada à chancela judicial (art. 76, par. 3º), já se vendo que a atuação do Magistrado é meramente integrativa;

c) Não há a veiculação de qualquer pretensão punitiva por parte do Estado, visto que da transação não pode resultar sanção penal. Se não há pretensão, não há que se falar em jurisdição;

d)Não há partes no sentido estrito, usando  o legislador da correta expressão “autor do fato” e não “réu”. Também não haverá qualquer conflito de interesse, visto que a medida administrativa imposta é fruto do chamado “espaço de consenso”;

e) Também não há que se falar em relação processual, mas, antes, na existência de mero procedimento de índole voluntária;

Por último, não há a imutabilidade própria da atividade jurisdicional em virtude de ser a transação penal um momento pré-processual, de natureza administrativa, que antecede a imputação.

De pronto, deve-se rechaçar o aparente óbice à aceitação da tese em virtude de ser a jurisdição voluntária verdadeira “administração pública de interesses privados”. A esse respeito, conforme nos informa Frederico Marques, “CRISTOFOLINI, ao tratar da jurisdição voluntária, manifestou a opinião de que a tutela administrativa pode também recair sôbre interesses públicos, pois nem sempre (embora na maioria das vêzes assim não aconteça) os direitos individuais tutelados pela administração, na jurisdição voluntária, têm caráter privado. É o que acontece entre nós, nos casos de naturalização, onde a jurisdição voluntária se exerce em função de um direito subjetivo eminentemente público, qual seja a aquisição da cidadania brasileira (infra: par. 28, nº 16)”

Também não representa qualquer óbice o fato de se ter o legislador  utilizado, no caput e parágrafos do art. 76,  da expressão “pena” (restritiva de direitos ou multa). Aqui, basta que se interprete o referido termo no sentido de “sanção” (restritiva de direito e pecuniária), devendo ser ressaltado que, ontologicamente, nenhuma distinção há entre as sanções criminal e administrativa.

Da mesma forma, não impressiona o ter o legislador denominado de “sentença” a decisão que aplica  a medida, até porque, já de muito, o Código de Processo Penal chama de “sentença” a pronúncia (art. 408, par. 1º), sabendo-se que a natureza de tal decisão é a de verdadeira interlocutória.

O mesmo se diga com relação à previsão  de um recurso (par. 5º do art. 76) a ser julgado pelas Turmas Recursais, que em nada altera a natureza graciosa do instituto. A esse respeito, novamente nos esclarece o Professor Frederico Marques no sentido de que: “Não nos parece acertada a afirmativa de CHIOVENDA de que, se o ato do juiz fôr impugnado, a jurisdição voluntária se transformará em contenciosa. Se a impugnação consistir em recurso a órgãos judiciários de categoria superior, haverá tão-sòmente um prolongamento da jurisdição voluntária ao tribunal encarregado de conhecer do recurso. Os órgãos judiciários de grau superior desenvolvem função inteiramente idêntica à do juiz inferior e, dessa forma, exercerão uma atividade de jurisdição voluntária em conseqüência da devolução à instância  do conhecimento integral da questão.”

É também importante ressaltar que o ponto de vista aqui sustentado, vale dizer, a compatibilidade entre a jurisdição voluntária e o processo penal, não constitui nenhuma novidade, nem tampouco passou despercebido da análise, embora  sob outros enfoques, de nossa melhor doutrina.

Diga-se, outrossim, que a própria Lei nº 9.099/95, tratando dos Juizados Especiais Cíveis, serviu-se da jurisdição voluntária como forma de alcançar a conciliação entre os interessados, ao estabelecer no art. 57: “Art. 57. O acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial.”. A diferença fundamental é que, ao contrário do que ocorre na seara cível, a homologação da transação penal não dará nascimento a um título executivo, até porque, descumprido o acordo administrativo, ressurge, às inteiras, o caminho clássico do processo penal, único legitimado à aplicação da sanção penal.

Conclusão: os resultados da aceitação da tese

Ao longo do desenvolvimento da tese ora sugerida, vimos nos questionando a respeito das conseqüências concretas da aceitação da transação como um momento não jurisdicional, do qual decorre uma sanção administrativa, convencidos de que as elucubrações teóricas devem encontrar na possibilidade de aplicação prática o seu coroamento. E, neste ponto, estamos certos de que os resultados da tese alcançam e representam todos os objetivos perseguidos pela Carta Política de 1988, ao prever a possibilidade de transação nas hipóteses de infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I). Vamos a eles.

Primeiro relevantíssimo resultado – relevantíssimo sobretudo num momento em que a importância das regras constitucionais finalmente vem sendo reconhecida em  nosso País – é a de se chegar a um resultado interpretativo através do qual se preservam os postulados básicos adotados pela Constituição e, ao mesmo tempo, se confere validade ao texto infraconstitucional. Conquanto acertadas as críticas de que nos valemos tantas vezes no presente trabalho, sobretudo as referente à violação dos princípios do devido processo legal e do nulla poena sine culpa, o certo é que todas elas, enfocando o instituto sob uma perspectiva jurisdicional, conduzem ao radicalismo da inconstitucionalidade. E tal resultado afasta-se dos postulados da “interpretação conforme a constituição”,  o que só se obtém quando se parte da premissa segundo a qual, se uma determinada norma admite duas ou mais interpretações, deve-se prestigiar aquela que a compatibilize com o texto constitucional.

A esse respeito, insta acentuar que a aceitação do instituto sob um enfoque não jurisdicional nos permite reconhecer a plena compatibilidade entre a disciplina imprimida pelo legislador (art. 76) e os princípios constitucionais. É dizer, se da transação, assim concebida, não decorre senão uma sanção de cunho administrativo, o procedimento traçado na Lei (sucinta descrição do fato no termo circunstanciado, audiência preliminar de conciliação na qual deve estar presente o advogado, homologação judicial do acordo, em que serão analisados os requisitos legais, possibilidade de impugnação da decisão que aplica  a sanção etc) atende plenamente ao “devido processo legal voluntário”. Aqui, sim , possível  será o reconhecimento de um “devido processo legal mitigado”, “não-clássico”. Socorre-nos, mais uma vez, o Professor Frederico Marques quando sustenta, com acerto, que: “Na jurisdição voluntária, não há lide, e sim um negócio jurídico que depende de um ato administrativo que o complete e integre. Desta maneira, é evidente que o juiz não precisa desenvolver sua atividade vinculado às formas processuais, porquanto não há litígio que exija aquelas garantias que são inerentes ao processo e que deste são inseparáveis, como, por exemplo, as que decorrem do princípio do contraditório.

No procedimento voluntário, o que há são formas destinadas à melhor realização da atividade público-administrativa pelo juiz. Os atos que se sucedem nesse procedimento não se acham disciplinados com o mesmo formalismo da relação processual pois, aí, a forma não tem aquele caráter indeclinável que se imprime a certos atos processuais.”

Em resumo, chega-se  a resultado inteiramente compatível com o sistema, trabalhando-se com uma categoria jurídica bastante conhecida.

Também merece ser dito que todos os objetivos que tanto fascinam os comentaristas da Lei, vale dizer, a não-imposição de pena privativa de liberdade, a rápida solução e “deformalização” das controvérsias, a revitalização das vias conciliatórias, a desburocratização e o “desafogamento” do Poder Judiciário, são igualmente alcançados, só que de modo a reduzir tais escopos utilitaristas ao seu campo próprio, o da seara administrativa da jurisdição voluntária.

Por outro lado, a tormentosa questão a respeito das conseqüências do descumprimento da transação vai encontrar fácil solução no enfoque não jurisdicional, uma vez que, não se estando diante de uma sentença condenatória nem tampouco do instituto da coisa julgada, o único caminho possível à aplicação da sanção penal será o do processo, inaugurado pela denúncia. A execução da “pena” torna-se impossível por violação das regras constitucionais já tantas vezes apontadas, acarretando o descumprimento do transacionado o exercício da pretensão punitiva, até então suspensa. Tal solução, inclusive, empresta seriedade ao acordo firmado, acentuando a importância do chamado “espaço de consenso”.

Ademais, a transação penal, assim concebida, afina-se com a tendência atual na busca de soluções diferentes das oferecidas pelo Direito Criminal à chamada criminalidade de menor potencial ofensivo. Com efeito, as respostas  sancionatórias até então concebidas vêm-se mostrando extremamente ineficazes, sendo raro, extremamente raro,  que a criminalidade menor mereça a intervenção jurídica do Estado, o que acarreta a sensação de impunidade e o próprio aumento da criminalidade. Só que, neste passo, ao invés de escolher o caminho da “descriminalização” ou só o do direito administrativo penal, preferiu o legislador brasileiro, precipuamente, a via processual, concebendo, como bem percebido por Afrânio Silva Jardim, uma “engenharia” diferente.

Antes da veiculação da pretensão punitiva pelo caminho clássico do processo, com as bençãos da própria Constituição (art. 98, I), erigiu-se uma via alternativa e anterior, de índole administrativa, na qual, se alcançado o consenso, atingem-se, a um só tempo, tanto a pacificação social quanto a prevenção perseguida por todo e qualquer preceito sancionatório. E é isso, afinal, o que se busca, pouco importando para o Estado qual deva ser o caminho por ele trilhado para alcançar tais objetivos, até porque,  como modernamente se reconhece, não há diferenças ontológicas entre a sanção penal e administrativa. O que se alteram, profundamente, são o iter a ser seguido nas duas hipóteses, sendo  o processo penal naturalmente mais “degradante”, e a drasticidade decorrente da própria sanção penal, representada pela possível privação da liberdade, além dos seus efeitos sociais bem mais deletérios. Por conseguinte, somente se frustrada a via pré-processual pela discordância manifestada pelo autor do fato ou mesmo pelo descumprimento da transação, surgirá, com todas as suas peculiaridades, inclusive garantistas, o caminho verdadeiramente jurisdicional, do qual, só então, poderá advir a aplicação da sanção penal.