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Acordo de não persecução penal

7 de novembro de 2023

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Reflexões críticas sob a perspectiva de seu descumprimento

Há poucas décadas, a justiça consensual penal aportou em países integrantes do civil law, como o Brasil, sob a roupagem de via alternativa ao sistema meramente persecutório-punitivo. Nesse contexto, mais recentemente, o acordo de não persecução penal (ANPP) apresentou-se como instrumento com potencial desencarcerador e de intervenção mínima penal.

Pesquisa publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)1 revela que há uma prevalência da medida de prestação pecuniária dentre as fixadas em ANPP, seja de forma isolada ou cumulativa com outras e que apenas em 28% dos casos houve cumprimento imediato da medida imposta. Em geral, o parcelamento existe. E, justamente por ser comum que sua execução se protraia pelo tempo, o ANPP é passível de descumprimento, fato do qual decorrem consequências expressamente previstas em lei e, também, efeitos implícitos que podem impactar direta e perniciosamente em direitos públicos subjetivos do autor do fato criminoso.

Este artigo pretende problematizar as consequências possivelmente decorrentes do descumprimento do ANPP, e, ainda, contribuir com proposições que minimizem os reflexos subjetivos deletérios de eventual inadimplência no cumprimento do acordo.

Reflexões sobre as consequências do descumprimento do ANPP

Como em todo negócio jurídico, o inadimplemento das condições fixadas em sede de ANPP enseja efeitos jurídicos, seja essa mora involuntária ou deliberada.

A respeito, observa-se, inicialmente, que as condições legais previstas como de possível pactuação em sede de ANPP referem-se a obrigações de fazer com valor econômico subjacente facilmente estimável. Nisso, a prestação de serviços comunitários não destoa das demais, uma vez que também comporta um custo estimável à luz de atividades laborais análogas e remuneradas pelo mercado.

Assim, o eventual descumprimento dessas condições pelo imputado tem como primeira consequência um prejuízo negocial que pode ser monetariamente estimado. E esse caráter financeiro não é estranho à justiça penal, seja ela negocial ou retributiva. Pena de multa e prestação pecuniária fixada alternativamente à privação de liberdade possuem caráter sancionatório, a par de se tratarem de obrigações tipicamente financeiras.

Não obstante essa evidente conversibilidade em pecúnia, o texto legal2 e o MPF3 atribuem impactos processuais ao descumprimento do ANPP que reverberam em direitos fundamentais do imputado. São eles: deflagração da ação penal e utilização da confissão formal e circunstanciada do investigado como suporte probatório para endossar a denúncia.

Aqui, cumpre recordar que o descumprimento negocial pode ser involuntário. Inúmeras situações fáticas rotineiramente impactam sobre os negócios jurídicos, onerando extraordinariamente o cumprimento de obrigações originalmente suportáveis pela parte contratante. Exemplos corriqueiros são incapacidades laborais supervenientes e alteração de condições financeiras por fatores como desemprego e impactos inflacionários. Em relação ao ANPP, não é diferente.

Rebus sic stantibus, é admissível que o descumprimento deliberado do acordo enseje a deflagração da ação penal, porque o imputado voluntariamente aderiu ao ANPP, cônscio de suas consequências. Por outro lado, quando o adimplemento do acordo for impactado por situações supervenientes e adversas a que o cumpridor não deu causa, a aplicação das regras dos parágrafos 10 e 11 do art. 28-A do Código de Processo Penal implicaria em persecução com matizes de abusividade.

Zaffaroni4, ao questionar a legitimidade do sistema penal, passa a adotar modelo de culpabilidade centrado na vulnerabilidade do sujeito atingido pela seletividade penal. Para este estudo, importa considerar o estado de vulnerabilidade do descumpridor involuntário de ANPP, sob pena de que o sistema penal incida em discriminação indireta em relação aos indivíduos pobres e negros, historicamente atingidos pela seletividade penal.

Se há um nítido cariz pecuniário nas prestações legalmente previstas para o ANPP, é evidente que os baixos estratos sociais serão aqueles com maior dificuldade de cumprir ao acordado. Titulares de múltiplas vulnerabilidades, como as decorrentes da pobreza e do racismo estrutural que lhe solapa oportunidades de ascensão social, a população marginal é a mais carente de políticas públicas, inclusive aquelas despenalizadoras e desencarceradoras.

No espectro de crimes de menor lesividade e de cunho estritamente patrimonial, como aqueles a que se destina a possibilidade legal de ANPP, dispensam-
se lentes para a percepção de que o descumprimento involuntário pode ser mais comum dentro do grupo de cumpridores pobres e negros. E, aprofundando a crítica, é certo que essa possibilidade mais acentuada de mora dentre os indivíduos de baixos estratos sociais acaba por redundar em efeito perverso: a deflagração de ação penal pós descumprimento atingirá marcadamente tais descumpridores, alimentando o círculo vicioso da seletividade penal.

A despeito de outras soluções plausíveis, essas reflexões conduzem à propositura de modificação legislativa, para estender ao descumprimento involuntário do ANPP a possibilidade de: extinção por adimplemento significativo ou conversão das condições acordadas em dívida ativa, com todos os consectários do regime de execução fiscal, inclusive, e principalmente, a prescrição intercorrente. Proposição essa intermediária entre a via abolicionista e a da deflagração automática da persecução penal pela simples mora negocial.

A par disso, importam, ainda, outras reflexões críticas sobre a consequência prevista para o descumprimento do ANPP: o oferecimento de denúncia estribada na confissão formal e circunstanciada da prática criminal pelo imputado. Seja o descumprimento voluntário ou não, a utilização da confissão obtida na ambiência negocial pode contaminar o elevado standard probatório que o devido processo penal exige e lacerar o princípio da presunção de inocência.

Após a constitucionalização do Processo Penal brasileiro, robustecida pela ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos, o princípio da presunção de inocência passou a integrar o ordenamento jurídico com normatividade qualificada e reserva de imutabilidade próprios do regime constitucional em que inserto. Ressurte destacar que esse princípio é compreendido com múltiplas e indissociáveis dimensões: como regra probatória (consagrando que a inocência do acusado é presumida); como regra de tratamento (garantindo o estado de inocência do acusado durante o processo); e como norma de julgamento (relacionada à definição e suficiência do standard probatório conforme a fase decisória).

Diante dessas dimensões indissociáveis do princípio de presunção de inocência, não há como acolher a confissão formal e circunstanciada do investigado, prestada em ambiência negocial, como suporte probatório para a denúncia. Aqui, cabem breves parênteses: a própria propositura do ANPP exige a presença de substrato fático-probatório mínimo de materialidade e autoria delitivas, condição também necessária à oferta de denúncia. Logo, incorporar a confissão obtida durante as tratativas para o ANPP a esse suporte probatório já existente carrega a indelével pecha inquisitorial e vício da desnecessidade.

Mais consentâneo com as garantias do devido processo penal a ser deflagrado por eventual descumprimento deliberado do ANPP seria o isolamento integral do acordo, com autuação independente e arquivável seja qual for o desfecho negocial (adimplemento ou descumprimento).

Conclusão

Conclui-se que, sob a perspectiva de seu descumprimento, o ANPP merece debate e ajustes normativos, para não ensejar retrocessos inquisitoriais, o espessamento da seletividade penal e a perpetuação das discriminações que, ainda e lamentavelmente, decorrem do sistema de Justiça Penal brasileiro.

Notas______________________________

Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/lancamento-levantamento. Acesso em 19/9/2023

Código de Processo Penal, art. 28-A, §§ 10 e 11.

Enunciado 27 – interpretativo da Lei Anticrime (CNPG e GNCCRIM).

Zaffaroni, Eugenio Raúl. “Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal”. Rio de Janeiro: Revan, 1991, 6a edição, agosto de 2021. P. 303.

Sobre o conceito de discriminação indireta, imprescindível a leitura da obra de Roger Raupp Rios: “Direito da antidiscriminação: Discriminação direta, indireta e ações afirmativas”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. P. 117.