Apontamentos do Direito do Trabalho no Brasil pós-pandemia

24 de maio de 2022

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O cenário econômico e social do Brasil, em estado periclitante desde meados da década passada, tornou-se catastrófico após a decretação da pandemia de covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020. As empresas no geral e principalmente aquelas voltadas para a economia ainda não propriamente digital, sofreram uma queda brusca em seus negócios. 

Sob efeito da pandemia, o Brasil perdeu quase 600 mil empregadores no intervalo de dois anos, segundo apontam os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). E quando uma empresa fecha as portas, a renda de mais de uma pessoa (chefe e funcionários) é necessariamente afetada. No segundo trimestre de 2019, antes da crise sanitária, o País reunia 4,369 milhões de empregadores. Esse número representa a maior marca para o intervalo de abril a junho na série histórica, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) disponíveis desde 2012.

Assim, devido à pandemia, o número passou a cair em 2020, até atingir 3,788 milhões no segundo trimestre de 2021. O resultado mais recente, se comparado a igual período de 2019, corresponde a uma baixa de 13,3% — ou 581,3 mil empregadores a menos em dois anos. Essa redução, em termos percentuais, foi melhor apenas quando comparada com a categoria dos trabalhadores domésticos, cuja queda foi de 18,3%.

A necessidade de se adotarem medidas sanitárias visando impedir a propagação do vírus afetou trabalhadores, empresas e empregos. Com isso, a população mundial, em maior ou menor grau, teve que se adaptar a uma nova rotina, incorporando a fórceps o ensino a distância, as interações sociais via web, o teletrabalho e novas formas de prestação de serviços.

Levando-se em conta a enorme e brusca alteração das relações laborais, foram editadas de afogadilho diversas iniciativas legislativas, visando impedir ou reduzir os impactos econômicos da crise sanitária. As medidas provisórias no 927/2020 e no 936/2020 inicialmente foram promulgadas visando assegurar os postos dos empregos formais, sendo essa última consolidada na Lei no 14.020/2020.

O fato é que a pandemia acelerou inúmeras transformações globais preexistentes, inclusive as relações de trabalho oriundas da 4a Revolução Industrial, conhecida como Indústria 4.0. Em meio ao caos na economia, o fechamento de empresas e demissões em massa, a condição de isolamento fez com que grande parte das conexões pessoais e de trabalho se dessem pelo meio virtual. Nesse contexto, as relações de trabalho à distância que antes existiam de forma tímida passaram a ser a principal forma de comunicação nos ambientes de trabalho e salvaguarda de inúmeros negócios e empregos.

Embora o instituto do teletrabalho já estivesse previsto em nosso ordenamento jurídico desde 2011, tendo sido efetivamente positivado em 2017, a sua exacerbada utilização passou a ocorrer durante a pandemia, sendo um verdadeiro marco histórico nas relações de trabalho. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), antes da pandemia, apenas 3% de trabalho à distância era realizado, sendo que após março de 2020, as relações virtuais atingiram em torno de 30%, o que significa um alcance de 23 milhões de pessoas em teletrabalho na América Latina e no Caribe. Com a realização de trabalho à distância em larga escala, podemos afirmar que o futuro do trabalho foi antecipado explicitamente.

O teletrabalho pressupõe a realização do trabalho à distância através da utilização de meios tecnológicos (Consolidação das Leis do Trabalho/ CLT, art.75-A a 75-E), diferenciando-se do home office, o qual não requer a utilização de meios tecnológicos.

A partir da utilização do teletrabalho por milhões de empregados de forma repentina, verificou-se que a situação de emergência trazida pelo isolamento social não estava prevista na legislação, de forma que diversas determinações normativas não poderiam ser aplicadas. Mostrou-se inaplicável a imposição de prazo para que se alterasse a modalidade presencial pelo teletrabalho em no mínimo 15 dias, com correspondente registro em aditivo contratual. Ainda, mostrou-se inviável o cumprimento das disposições relativas à responsabilidade das despesas com equipamentos tecnológicos, infraestrutura do serviço remoto, os quais deveriam ser previstas em contrato escrito (Art. 75-D).

Não é demais lembrar que a parcela da população que passou a laborar através de meios tecnológicos possuem habilidades notadamente mais elevadas, aplicando-se nas atividades gerenciais e administrativas, não representando a maior parte da população brasileira, a qual em sua maioria não dispõe de aparelhos eletrônicos, habilidade ou condições para se inserir no mercado de trabalho em transformação.

Como consequência direta do aumento da informalidade em praticamente todos os setores da economia, a prestação de serviços pelas plataformas digitais multiplicou-se exponencialmente, naquilo que veio a ser denominado como uma nova modalidade de trabalho, a uberização da mão de obra.

Diversamente da economia tradicional, em que é clara a relação jurídica estabelecida entre empregador e empregado, ou entre contratante e terceirizado, as plataformas digitais disponibilizam aos prestadores de serviços a possibilidade de serem contratados direta e pontualmente pelos clientes, utilizando ambos os lados a mesma ferramenta tecnológica: o aplicativo. Em decorrência, inúmeras questões desafiadoras que tangenciam essa nova forma de trabalho passaram a ser levantadas, especialmente quanto à possível infração à dignidade da pessoa humana do empregado, tão cara à classe trabalhadora.

Diante da inexistência de legislação própria, esses prestadores têm ficado à margem da sociedade do trabalho. Os requisitos do art. 3o da CLT (que determinam o vínculo de emprego) não se apresentam de forma translúcida, principalmente ante a ausência de subordinação dos prestadores de serviços ao cliente (ou mesmo às plataformas digitais). A nova relação jurídica, posto que nova e absolutamente disseminada, urge por normatização.

Nesse contexto, algumas decisões judiciais passaram a reconhecer o vínculo de emprego, não entre os trabalhadores e os clientes finais, mas entre os primeiros e as plataformas digitais. Por outro lado, outras decisões enxergaram que a nova relação jurídica se enquadrava como uma forma clássica de trabalho autônomo. Exemplificando, processos que discutem a existência ou não de vínculo de emprego entre a Uber e os motoristas começaram a ser julgados em turmas do Tribunal do Superior do Trabalho (TST) em 2020. Em dezembro do ano passado, a 3a Turma formou maioria pelo entendimento de que existe relação de emprego. Essa foi a primeira decisão de uma turma do TST a favor do reconhecimento de vínculo de emprego. Na 4a e 5a turmas do TST, os pedidos de motoristas haviam sido negados. 

As decisões judiciais estão longe de se ajustar a essa extraordinária demanda, havendo uma enorme lacuna a ser preenchida pelo ordenamento jurídico, visando equilibrar as necessidades de milhões de trabalhadores informais em situação de absoluta vulnerabilidade. Porém, ao mesmo tempo, foi justamente a facilidade na contratação e o preço acessível dos serviços que permitiu a ocupação de milhões de prestadores, principalmente nos aplicativos de entrega de mercadorias, no auge da crise. E essas posições conflitantes dos tribunais brasileira evidenciam que a ausência de regulação gera enorme insegurança jurídica, o que impacta na vida de milhares de cidadãos da classe trabalhadora. A toda evidência, o objetivo de uma nova regulação não pode ser a inviabilidade dos serviços de intermediação, o que geraria o extermínio de uma necessária fonte de renda, mas sim estabelecer patamares mínimos de proteção social aos prestadores, hoje legados à própria sorte.

Além do teletrabalho e da “uberização” como apontamentos relevantes no Direito do Trabalho pós-pandêmico no Brasil, não se pode deixar de pontuar o notável retrocesso social no tange a igualdade de gênero. As mulheres foram indiscutivelmente as prejudicadas nas relações laborais. Muitos dos postos de trabalho que mais empregavam mulheres foram extintos, como restaurantes, salões de cabeleireiros, serviços domésticos, etc. Ao mesmo tempo, os afazeres domésticos recaíram, em sua maior parte, sobre os ombros das mulheres. Além disso, as pesquisas mostram que o índice de violência doméstica aumentou espantosamente com o isolamento social. Há uma absoluta urgência por ações afirmativas que tragam novamente as mulheres para o mercado de trabalho. 

E, nesse contexto, há subgrupos ainda mais vulneráveis, como o das mulheres afrodescendentes.

O Direito do Trabalho, como um microssistema da experiência jurídico-social da

sociedade brasileira, depara-se com desafios gigantescos, requerendo urgentemente novas soluções. A devastação atingida pela pandemia deve servir de motor para uma incontestável ruptura com o modelo tradicional das relações do trabalho, trazendo-se novas experiências eivadas de consciência social, pluralismo e inclusão.

Nota________________________

1 Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-poramostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=destaques>; acessado em: 8/3/2021.