Apontamentos sobre o efeito suspensivo dos recursos e o projeto do novo CPC

23 de junho de 2013

Desembargador da Seção de Direito Público do TJSP Professor assistente da Escola Paulista da Magistratura (EPM)

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Há alguns anos, em artigo intitulado “A falácia das reformas”, publicado no jornal Notícias Forenses, defendi a posição de que nem todas as novidades introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro trouxeram aos aplicadores do Direito coisas boas. Na verdade, muitas dessas inovações foram explicitamente ruins.

Ao Judiciário, em especial, tem sido confiada a dura missão de interpretar e reinterpretar as constantes mudanças da legislação, muitas vezes tendo que alterar posicionamentos jurisprudenciais já consolidados. E nem sempre tais alterações trazem benefícios, não apenas ao referido universo dos aplicadores do Direito, mas à própria sociedade, ao próprio interesse público, destinatários últimos dessas supostas “melhorias” introduzidas pelas reformas.

No presente momento, o que se tem em mira é o Projeto 166, em discussão nas Casas do Poder Legislativo, que traz a lume um novo Código de Processo Civil, com diversas alterações ao sistema do Código atualmente em vigor. Chama a atenção o disposto no art. 949 do Projeto, que dispõe que os recursos, salvo disposição legal em sentido diverso, não impedirão a eficácia da decisão, que poderá ser suspensa pelo relator se demonstrada a probabilidade de provimento do recurso, ou, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou difícil reparação, observado o art. 968. Tal pedido de efeito suspensivo do recurso será dirigido ao tribunal, em petição autônoma, que terá prioridade na distribuição e tornará prevento o relator. Outrossim, o § 3º dispõe que quando se tratar de pedido de efeito suspensivo a recurso de apelação, o protocolo da petição a que se refere o § 2º impede a eficácia da sentença até que seja apreciado pelo relator, e o parágrafo 4º diz que é irrecorrível a decisão do relator que conceder o efeito suspensivo.

O que se verifica da redação de tal dispositivo, inicialmente, é que aparenta ser intenção do legislador o processamento mais célere dos feitos cíveis, impondo aos aplicadores do Direito a inexistência de efeito suspensivo no que toca aos recursos em geral, com o fim de dar maior efetividade aos julgados de primeiro grau. Tal novidade é saudada com entusiasmo por alguns doutrinadores. Parece, contudo, que a discussão da questão impõe maior cautela, na medida em que, introduzida tal qual está na vida prática de incontáveis aplicadores do Direito, corre-se o risco de criar incidente processual de considerável gravidade, que trará à baila justamente o efeito reverso daquele pretendido; ou seja, mais lentidão no processamento dos recursos, com consequências imprevisíveis.

A redação do art. 949 do Projeto do Código de Processo Civil traz várias inovações. Na primeira, encontrada no caput do dispositivo em questão, diz-se que os recursos, salvo disposição legal em contrário, não impedem a eficácia da decisão. Ou seja; não há mais efeito suspensivo, o que é, atualmente, a regra em termos de efeitos dos recursos, na área cível. Já a possível disposição legal em contrário é encontrada no parágrafo primeiro do mencionado artigo, em que se deposita nas mãos do Relator do recurso – ainda não interposto – o ônus de decidir se o mesmo terá efeito suspensivo ou não.

Sob o sistema atualmente em vigor, a recorribilidade deflui, dentre outros requisitos, da aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição. Destarte, sobrevindo decisão nos autos de processo que a parte entenda lhe ter sido lesivo, poderá, lançando mão de seu direito de recorrer, com base em tal princípio, levar a sua pretensão ao Tribunal competente, buscando a reforma da decisão que entenda lhe ter sido prejudicial. O que se indaga, agora, ante o texto do art. 949, caput, do Projeto do novo Código de Processo Civil, e do parágrafo primeiro do mesmo artigo, é: qual advogado, tendo sido julgada improcedente a ação por ele proposta (ou contra seu cliente ajuizada), com base no já mencionado requisito da lesividade da mencionada decisão, ao interpor recurso de apelação para a Corte competente, deixará de apresentar a mencionada petição, dirigida ao Relator, para o fim de obter o efeito suspensivo para o seu recurso, que lhe é negado?! É de se supor, com a devida vênia, que apenas advogados extremamente desleixados ou despreparados iriam incidir em tal conduta.

A conclusão a que se chega é a de que, em verdade, o dispositivo em questão irá criar novo incidente processual, de grandes e graves consequências para as Cortes brasileiras, em especial aquelas mais atulhadas de recursos. Visando defender o seu constituinte dos deletérios efeitos de uma sentença que lhe foi lesiva e cuja exequibilidade tornou-se imediata, nos termos do caput do art. 949 do Projeto, o advogado minimamente combativo e consciente de seus deveres como procurador irá lançar mão da referida “petição autônoma”. Indaga-se: como irá o advogado convencer o Relator prevento de que seu cliente não deve sofrer as agruras de uma execução imediata da sentença que contra o mesmo pende? A resposta parece-nos simples: não será uma singela “petição autônoma” que será encaminhada ao Relator, mas sim um pedido provavelmente acompanhado de cópias de boa parte do processo, à guisa do que, nos dias atuais, ocorre com o recurso de agravo de instrumento, sendo o magistrado de segundo grau, por consequência, onerado, antes mesmo de tomar consciência da existência do feito, com um calhamaço de papéis que lhe será encaminhado pela distribuição dos Tribunais para exame do pedido de concessão do referido efeito suspensivo. Os otimistas poderão argumentar que tal incidente não terá a gravidade prevista, e que os benefícios que poderão advir à administração da Justiça serão maiores do que as novas dores de cabeça que a novidade contida no Projeto irá trazer aos julgadores. Pode ser, realmente, que, em Tribunais mais novos, de Estados com população menor e com menos carga de trabalho, o impacto da inovação seja efetivamente de pequena monta, o que também nos parece difícil prever.

Pois bem; imagine-se, contudo, um Tribunal como o do Estado de São Paulo, em que são distribuídos, diariamente, algo em torno de 400 (quatrocentos) a 500 (quinhentos) recursos de apelação, apenas, sem que se entre na seara de distribuições de outros recursos, como os agravos de instrumento (em números semelhantes), os agravos regimentais, os embargos infringentes, as medidas cautelares e os mandados de segurança originários, entre outros incidentes. É de se supor, pelo raciocínio acima desenvolvido, que haverá um número igualmente colossal de “petições autônomas”, acompanhadas de pilhas de papéis, dirigidas aos já assoberbados Relatores, para a análise do singelo pedido de “concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação” – efeito este, repita-se, já outorgado, na maioria dos casos, pelo próprio CPC atualmente em vigor…!

Tal procedimento acarretará, como previsível efeito colateral, o abarrotamento dos Cartórios do Tribunal, que já tem problemas extremamente sérios para administrar a carência de espaços disponíveis para a acomodação dos feitos já existentes. De outra banda, não se pode olvidar que as referidas “petições autônomas”, com a “papelada autônoma” que as acompanhará, deverão ficar armazenadas em algum lugar, mesmo depois de analisados os pedidos pelo Relator, concedendo este ou não o almejado efeito suspensivo. Outrossim, pergunta-se: como o incidente em questão é resolvido por mera “petição autônoma”, deverá a parte contrária remanescer alheia a tal procedimento? Não violará o princípio do contraditório semelhante processamento do incidente, ao dar-se ou negar-se efeito suspensivo ao recurso de apelação sem que se possibilite ao advogado do ex adverso manifestar-se, através de outra “petição autônoma”, igualmente acompanhada de um formidável calhamaço de papéis, em que este tente demonstrar que não é o caso de se conceder o efeito suspensivo ao recurso que seu oponente intenta obter…?!

Há outro senão. O § 4º do art. 949 do Projeto aduz que, concedido o efeito suspensivo ao recurso de apelação, tal decisão é irrecorrível. Ou seja; se a parte contrária, beneficiada que foi com a sentença de primeiro grau, ver frustrado o seu intento de proceder à sua imediata execução, na medida em que o Relator concedeu o efeito suspensivo ao recurso, não poderá recorrer de tal decisão, pois a letra da lei expressamente o proíbe. Deverá, então, permanecer inerte o advogado da parte vencedora, aguardando pacientemente que o recurso suba à Corte, seja processado e julgado? Como deverá proceder tal causídico? Na medida em que a lei processual nova nega-lhe o direito de recorrer da decisão do Relator que concedeu o efeito suspensivo ao recurso, deverá, para obstar tal procedimento, impetrar mandado de segurança contra tal decisão.

O que se tem a partir de então? Um novo incidente processual, de proporções inimagináveis…! Ou seja; o que nasceu com o objetivo de tornar mais célere a execução do julgado poderá não chegar ao seu objetivo. Recorde-se de que, até pouco mais de quinze anos atrás, o recurso de agravo de instrumento não tinha efeito suspensivo – e alguns advogados, visando obter o referido efeito para tais recursos, lançavam mão do expediente de impetrar mandado de segurança contra ato do juiz de primeiro grau, para que a Corte competente outorgasse o referido efeito suspensivo ao agravo. A conclusão é a de que, com a nova redação do art. 949 do Projeto do novo CPC, ter-se-á uma sentença com imediata exequibilidade, cercada de um sem-número de incidentes processuais referentes à mesma, resultando, em verdade, no emperramento do procedimento, ao invés de sua celerização.

É de se concluir, destarte, que seria recomendável, tendo-se em vista o fato de que ainda se está a discutir o projeto nas Casas do Poder Legislativo, que se procedesse à pura e simples supressão de tal dispositivo do texto do Projeto, mantendo-se o processamento do recurso de apelação sob o seu formato atual, com a concessão do efeito suspensivo ao mesmo ope legis, mantendo-se, outrossim, as exceções necessárias, como previstas ainda no texto do CPC atualmente em vigor. Não nos parece haver vexame algum em reconhecer-se, em especial na atual fase de discussão, ante argumentos cartesianamente simples, que indiquem ser o novo formato não indicado para os fins propostos, que é o caso de manter-se o sistema do Código ainda vigente, ao qual a comunidade dos aplicadores da lei já está acostumada, sem a introdução de novidades que tem grande possibilidade de não dar certo.