Edição 119
Aspectos relevantes do interrogatório
30 de junho de 2010
Adalto Disa Tristão Desembargador do TJES
A visão probatória, predominante do processo penal à época da promulgação do CPP, encontra-se ultrapassada. A Constituição Federal de 1988, que consagrou as diversas garantias inerentes a um processo acusatório, sobretudo assegurou expressamente o direito ao silêncio, em seu art. 5o, LXIII, a presença do defensor no interrogatório, garantiu a autodefesa e a obrigatoriedade da defesa técnica, apontando para uma mudança de paradigma no Processo Penal, enxergando o interrogatório como meio de defesa.
O Código de Processo Penal previu o interrogatório a partir do art. 185, e estabelece uma ordem que deve ser seguida em sua condução, disposta nos artigos 187 e 188 do CPP, todavia não estabeleceu uma ritualização específica para este ato.
Como o interrogatório visa possibilitar ao Magistrado um contato direto com o acusado, podendo, não apenas através de suas palavras, mas também através de sua expressão, antes de tudo oportunizar-lhe a defesa, e, em segundo plano, fornecer ao Juiz elementos relevantes que possam influenciar no julgamento, acredito que deixar o ato à livre discrição do Magistrado, respeitados obviamente os limites legais, seja a melhor forma de se atingir o objetivo a que se propõe o interrogatório.
Tive a oportunidade de discorrer com maior profundidade sobre o tema em trabalho de minha lavra “O interrogatório como meio de defesa – Enfoque Constitucional e Processual Penal”, no qual procurei conceituar o tema da seguinte maneira: “Interrogatório judicial é o ato processual, personalíssimo, presidido pelo Juiz Criminal, realizado através de perguntas dirigidas ao acusado, objetivando a coleta de dados acerca do fato delituoso e que oportuniza ao acusado apresentar a sua versão dos fatos que lhe estão sendo imputados, defendendo-se deles, caso queira.”[1]
O interrogatório é ato que possui como características: ato personalíssimo, judicialidade, oralidade, publicidade, individualidade e probidade.
O direito ao silêncio está ligado ao princípio da não autoincriminação, com previsão expressa na Constituição da República. Logo, o réu pode optar por não responder determinadas perguntas da Autoridade, judicial ou policial, que o incriminem.
O interrogatório inaugurava a fase de instrução na audiência perante o Conselho de Sentença, nos julgamentos diante do Tribunal do Júri.
Talvez uma das mais profundas alterações seja a prevista no novel art. 474 do CPP, ou seja, o deslocamento do interrogatório do acusado do primeiro para o último ato da instrução na audiência, semelhante ao modo como já era adotado no procedimento dos Juizados Especiais Criminais.
A instrução processual se iniciava com o interrogatório do acusado, que nada mais é que um resquício do sistema inquisitório, cujo objetivo central era obter a confissão do acusado, considerada rainha soberana das provas, e que praticamente colocava fim ao processo, não sendo necessário ao julgador-acusador perscrutar em profundidade os demais meios de prova, nem relativizar o valor probante deste meio de convicção.
Os parágrafos primeiro e segundo do citado artigo estabelecem que o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado, e que os jurados formularão perguntas por intermédio do juiz presidente.
A essência da novidade deste dispositivo é a relativização do princípio da presidencialidade do Magistrado na condução da audiência.
Deve o juiz ficar atento e chamar atenção para que o julgamento siga sempre de forma imparcial, evitando qualquer tipo de manifestação antecipada do jurado que quiser fazer perguntas ao acusado.
Finalmente, o parágrafo terceiro do art. 474 do CPP passa a dispor expressamente sobre a utilização de algemas na audiência de julgamento perante o Tribunal do Júri.
Entendo agora que, com este dispositivo, a utilização de algemas pelo acusado deve passar a ser medida de exceção, somente sendo aplicada em casos excepcionais, e devendo ser bem fundamentada pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri. Este é o espírito de que se imbuiu o legislador ao efetuar esta alteração conforme o próprio dispôs na exposição de motivos desta lei: “Em plenário dá-se tratamento humanitário ao acusado, proibindo, como regra, o uso de algemas.”[2]
O Código de Processo Penal, no artigo 284, disciplina o uso da força. Disposição semelhante traz o Código de Processo Penal Militar, em seu artigo 234, §1o.
Se por um lado o réu apresentar-se algemado para o interrogatório não configura nenhuma afronta ao Estado de Inocência, também a exposição simbólica do réu portando este apetrecho deve ser evitada, quando não se revele necessário, salvo nos casos excepcionais, na forma da Súmula Vinculante no 11 do STF: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
De fato, a autoridade que decidir utilizar as algemas deverá justificar por escrito, sob risco de responsabilidade funcional. Deverá ser adotado nas delegacias um livro de ocorrência onde serão registradas as justificativas.
Já o Magistrado deverá fazer constar do termo as devidas justificativas, podendo constar inclusive a manifestação do Ministério Público, bem como do agente policial que acompanha o denunciado.
Outro aspecto relevante diz respeito ao interrogatório por videoconferência. A adoção deste novo tipo de procedimento significa uma quebra de paradigma, eis que um dos pontos de maior tensão a respeito do tema seja a colisão entre celeridade processual e presença física do Juiz na audiência do interrogatório.
Desta forma, o interrogatório de criminosos perigosos, ligados ao crime organizado, à criminalidade transnacional, ou para os interrogatórios de acusados que necessitem da mobilização de um grande aparato policial poderiam ter fim, utilizando-se desta valiosa ferramenta.
Neste sentido, no mês de janeiro de 2009, foi aprovada a Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009. Em sua essência, o projeto alterou o §1o e acrescentou mais outros 8 parágrafos ao art. 185, acrescentou o § 3o ao art. 222, e criou o art. 222-A no Código de Processo Penal.
Deve este ser realizado somente em caráter excepcional, desde que caracterizada uma das situações previstas em um dos incisos do mesmo § 2o. São elas: prevenção à segurança pública; inviabilização da participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; impedimento da influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; ou, finalmente, gravíssima questão de ordem pública.
Cabe salientar, neste mister, que a Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa) prevê o interrogatório, em seu artigo 45, como ato facultativo.
Já nos interrogatórios realizados pelas CPI’s, indiciados e testemunhas possuem o direito de se fazerem acompanhar por advogado, todavia não é obrigatório.
Nos Juizados Especiais Criminais o interrogatório já era realizado como último ato da instrução processual antes do advento da reforma do processo penal, reforçando sua índole defensiva, fazendo com que a doutrina considerasse esse o sentido a ser seguido pela norma que estabelecia o procedimento ordinário.
Em relação à pessoa jurídica no banco dos réus, grande celeuma se deu na doutrina, relativa a quem seria a pessoa a representar o réu, já que “o interrogatório no processo penal brasileiro é todo ele voltado para a pessoa física”[3]. Revisitando as características que compõem o interrogatório, temos que este é ato personalíssimo, não admitindo representação, substituição nem sucessão, não podendo nem mesmo o defensor do acusado prestar o interrogatório mediante mandato.
A melhor solução para o caso seria a indicação do representante legal da pessoa jurídica para ser sujeito do interrogatório, este entendimento é o que melhor se harmoniza com a nova disciplina do interrogatório proposta pela Lei 10.792/2003.
Já no Tribunal Penal Internacional, o Estatuto de Roma prevê garantias ao interrogado como o direito ao ‘nemo tenetur se detegere’ (não produzir provas contra si mesmo), e em decorrência também ao direito ao silêncio, ao direito de ser assistido por advogado, bem como de ser interrogado em língua que compreenda, podendo para tanto serem utilizados tradutores. A confissão deve ser corroborada pelos demais meios de prova constante do processo e a presunção de inocência também é prevista.
No Capítulo VI, que trata do julgamento, no artigo 67, que trata dos direitos do arguido, do Estatuto de Roma, encontram-se as disposições referentes ao interrogatório no âmbito do Tribunal Penal Internacional.
Em linhas gerais, são essas as breves considerações sobre o tema.