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Cartéis e Consumidor

30 de novembro de 2008

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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O mercado como estrutura dinâmica do capita­lismo, sempre esteve suscetível a crises econô­micas, muitas vezes localizadas, mas, modernamente, de extenso alcance internacional, devido ao processo de globalização das relações comerciais e industriais. Inicialmente, ainda na virada dos anos de 1900, as iniciativas jurídicas pioneiras (Sherman Act), para evitar essa sobrecarga leviatânica que provocava a sucumbência dos concorrentes e submetia os consumidores, voltaram-se inicialmente para evitar a concentração de empresas, ou, mais especificamente, as fusões e incorporações, o que permitiu que a literatura sobre a matéria ficasse denominada de “leis” antitruste, na exata tradução de se impedir a dominação de mercado por oligopólios e monopólios.
Paralelamente, mesmo em períodos antecedentes às primeiras “leis” antitruste, a legislação foi sendo suplementada por políticas e iniciativas jurídicas destinadas a inviabilizar a formação de cartéis, não propriamente os irmãos gêmeos dos oligopólios e monopólios, mas agrupamentos temporários de empresas que visavam através de combinações artificiais, mas de profundos efeitos no mercado, pôr preços ou definir a composição de produtos e serviços, de tal forma que entre si mais se assemelhassem do que se dessemelhassem, confundindo o consumidor e tumultuando o mercado. Os cartéis, de qualquer forma, na evolução da legislação internacional e inclusive brasileira, tomaram uma característica infrativa, que em muitas ocasiões alcança efeitos significativos de criminalidade.
No Brasil, as Constituições mais recentes, principalmente a partir de 1946, depois de algumas frustradas tentativas legislativas, evoluíram para regulamentar e proibir os abusos do poder econômico, sendo que, todavia, o modelo praticado evoluiu diferentemente dos Estados Unidos, berço desses mecanismos protetivos do mercado depois de experiências isoladas na Inglaterra. A nossa legislação sobre práticas anti-concorrenciais caminhou pari passu com as leis protetivas do consumo do povo, o que permitiu que o Conselho de Administração e Defesa Econômica (Cade) e a Sunab viessem a ser criadas na mesma época. Esses mecanismos vieram a ser complementados pelo aperfeiçoamento autárquico do Cade e pela criação do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) na Secretaria de Direito Econômico (SDE) como órgão da administração direta.
Todavia, as leis brasileiras que sucederam à pioneira Lei nº 4.137/62, especialmente após os anos 90, não desprezaram as leis antitruste, ampliando inclusive o seu alcance teórico e os seus fundamentos econômicos. As políticas de mercado traduzidas não apenas nas práticas comerciais, industriais e de serviço, procurando acompanhar os procedimentos fortalecidos pelos processos de globalização, de certa forma desviaram-se das políticas de repressão às concentrações e fusões, aliás, pelo contrário, estas práticas mais as viabilizaram sem subtrair as competências de governo. Por outro lado, tornou-se imprescindível incentivar políticas de repressão aos cartéis, porque na verdade se os atos de concentração estavam sob observação governamental direta, principalmente através do Cade e das Agências Regulatórias, os cartéis poderiam sobreviver no contexto geral do mercado com graves danos para o consumidor e para a economia.
O ministro da Justiça, Tarso Genro, recentemente, tomou expressiva iniciativa preventiva na área de avaliação dos cartéis na sociedade brasileira, principalmente sua potencial influência sobre remarcação de preços num cenário de presumíveis flutuações de mercado. As sociedades capitalistas tradicionalmente desenvolveram-se a partir de um processo diversificado de acumulação de capitais, determinado, por um lado, pelo processo, nem sempre lógico, da concorrência (os movimentos concorrenciais são centrífugos) e, por outro lado, pelo processo lógico da concentração econômica (o processo de enriquecimento é centrípeto). Estes processos não são entre si absolutamente antinômicos, de tal forma que podemos afirmar que não há concentração sem concorrência, ou seja, concentrar é restringir o espaço de mercado (a concentração é a reversão de movimento centrífugo), mas pode não impedir a concorrência, muito embora possam existir mercados de livre concorrência sem concentração.
Todavia, à medida que os mercados buscam oferecer produtos e serviços de melhor qualidade, tendem a restringir as possibilidades de negociação da concorrente, que, ou melhora o seu padrão de oferta, ou sucumbe diante da pressão concorrencial, falindo ou buscando novos aliados. Esta aliança pode se manifestar através da simples fusão ou incorporação de uma empresa por outra (truste) – política de certa forma predominante no mundo global (diversamente do passado) –, ou através de acordos ou compromissos (que em geral não têm natureza jurídica) para resistir à concorrência (cartéis), mais visíveis nas políticas brasileiras recentes. Neste caso, não necessariamente as concentrações empresariais ocorrem em função da dinâmica do próprio mercado, mas de ajustes ou acordos que as empresas, entre si, estabelecem, para dominar o mercado relevante, ou para limitar ou prejudicar a livre concorrência. Estas são as situações que foram ressaltadas no ‘Dia Nacional do Combate aos Cartéis’, ocorrido no Ministério da Justiça.
Ressalte-se, por isso, que, quando as empresas entre si se coordenam (cartel), para alcançar objetivos concorrenciais abusivos, a concentração deixa de refletir a livre dinâmica do mercado e assume a natureza infrativa indicada como conduta concorrencial ilícita em nossa legislação, sujeita às especiais formas de sanções aplicáveis através de autoridades administrativas ou judiciais – Cade, SDE, Agências Regulatórias, etc. Esta é a razão pela qual podemos distinguir interação de empresas no mercado com objetivos lícitos, e dominação abusiva, como não poderia deixar de ser, com objetivos ilícitos ou excessivos. De qualquer forma, entendemos que, nas circunstâncias cautelares que estamos ultrapassando, estas questões precisam ser aprofundadas, considerando, muito especialmente, as dimensões abertas dos direitos do consumidor, que sofrem os principais e imediatos efeitos da cartelização, principalmente em momentos de flutuação de mercados, mas, muito especialmente, considerar os novos patamares conceituais introduzidos pela experiência européia, marcada pioneiramente pela crise global, e os riscos de efeitos residuais.