Combate legal à desinformação com esclarecimento conceitual pode ser oportunidade para educação cívica

23 de janeiro de 2023

Professor da Universidade Metodista de São Paulo / Membro da Rede Nacional de Combate à Desinformação

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A disseminação de informações falsas por plataformas digitais tem causado preocupação acentuada nas grandes democracias. Ao atingir massa crítica, aglutinando grupos suficientemente expressivos, influentes e interconectados, as redes sociais rapidamente foram capturadas por atores políticos que encontraram nesse espaço um terreno fértil para difundir informações falsas. Em reação, ecoam os clamores por maior controle das redes, demandando que informações insustentáveis sejam removidas e opiniões incômodas, silenciadas.

Entretanto, a Justiça precisa tomar cuidado para definir com clareza as condutas criminalizadas e suas correspondentes punições. Se os critérios forem claros, o público poderá se beneficiar de um efeito complementar pedagógico, aprendendo os riscos dos comportamentos abusivos nesses espaços digitais. Mas se as intervenções legais forem pouco claras, conceitualmente indefinidas ou com resultados contraditórios diante de casos semelhantes, continuaremos a encontrar atores políticos explorando acusações de arbitrariedade e instabilidade jurídica.

Para entender esses ramos tão distintos no entroncamento entre alternativas jurídicas, é preciso retomar as raízes de fenômenos que aproximam o espaço do debate legal do campo da comunicação.

A primeira raiz desse processo está na midiatização do debate público, em particular nas redes sociais digitais. Cada vez mais facetas da nossa vida social são mediadas por telas on-line, que deixam rastros e aproximam o que antes era distante. Se por um lado há evidente potencial democratizante, garantindo que mais pessoas tenham sua voz ouvida, além de acessar informações e opiniões mais diversificadas, não se pode negar que isso pode colocar em rota de colisão perspectivas divergentes. A linguagem frequentemente pouco cordial nas redes é resultado do tempo limitado de atenção, a incapacidade de reconhecer seres humanos do outro lado da tela, e dos algoritmos que premiam com maior viralização os conteúdos com maior engajamento – normalmente os mais polêmicos, garantia de reações efusivas ou ofensivas.

A outra raiz, um corolário da anterior, envolve a maior visibilidade midiática dos processos judiciais em nossos tempos de conexão ininterrupta. A Justiça brasileira segue tendência global digitalizando seus processos e permitindo o acesso para um público amplo: agora a jurisprudência encontra-se a poucos cliques de distância, e qualquer um pode encontrar o que antes demandava visitas a fóruns ou arquivos especializados. Ao mesmo tempo, a Justiça tem aberto suas engrenagens à visitação do público, em um esforço de transparência. No Brasil, as transmissões de julgamentos por canais on-line ou na TV Justiça foi reforçada por maior protagonismo político de cortes como o Supremo Tribunal Federal, que se envolveu em temas de grande interesse coletivo, incluindo o julgamento de denúncias de corrupção envolvendo autoridades públicas, como no caso do mensalão, até tópicos de relevância e repercussão social, como o reconhecimento da união homoafetiva, da constitucionalidade das ações afirmativas e a gestão pública sobre a pandemia de covid-19.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos já destacava, no texto “Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação”, publicado na Revista Sociologias, em 2005, que a “judicialização dos conflitos políticos que não pode deixar de traduzir-se na politização dos conflitos judiciários”. Esse processo explica como as cortes ganharam protagonismo, levando muitos a conhecerem – e a discutirem – mais a composição do Supremo Tribunal Federal do que a da seleção brasileira de futebol. É um efeito colateral que grupos insatisfeitos com as decisões criem desgaste e critiquem a atuação dos tribunais quando discordem dos resultados, ainda que não se justifiquem ataques ou ameaças contra juízes – tanto nas cortes quanto nos campos.

No mesmo sentido, Virgílio Afonso da Silva, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aponta, no artigo “Deciding without deliberating”, publicado em 2013 no International Journal of Constitutional Law, que a abertura midiática trouxe outro efeito inesperado aos tribunais, reduzindo a possibilidade de deliberação coletiva ou revisão de perspectivas durante processos. Pode parecer contraintuitivo, mas quanto maior a visibilidade midiática, maior o desafio para que os julgadores comuniquem seus argumentos de forma fundamentada e acessível para seus pares e para a sociedade como um todo.

Esse é um desafio, em particular, quando os processos têm como objeto práticas comunicacionais, como argumentei no livro “Censura, Justiça e redemocratização da mídia na redemocratização” (Editora Appris, 2021). Remoções de conteúdo ou regulação midiática podem ser criticadas como censura, se não houver bastante clareza na definição dos limites constitucionais para a liberdade de expressão – o que, evidentemente, é bastante confuso no caso brasileiro, com grande divergência na jurisprudência sobre o tema.

O controle judicial sobre a desinformação é particularmente problemático, pois atrai atenção para o poder do Judiciário para definir limites ao debate coletivo, ao mesmo tempo em que é também alvo de críticas na esfera pública. Desde decisões do Tribunal Superior Eleitoral em 2018, removendo como fake news postagens em redes sociais que eram embasadas no noticiário de grandes veículos, e a polêmica censura da Revista Crusoé, em 2019, até a maior atuação do TSE contra a “desordem informacional” nas eleições de 2022, o Judiciário tem ampliado sua influência no controle de processos midiáticos como uma resposta às demandas por maior combate à desinformação.

Esses casos poderiam ser oportunidades importantes para o Judiciário apresentar de forma clara os embasamentos legais que determinam os limites para a liberdade de expressão. A finalidade pedagógica dessas decisões não se limitaria ao poder de dissuasão, indicando o que não se pode fazer; seria possível também indicar o que é permitido, e por quais motivos se proíbe certas condutas problemáticas – como a propaganda enganosa eleitoral ou a incitação à violência, por exemplo.

Nem sempre essa clareza ficou evidente ao público. O uso de conceitos com tênue definição acadêmica – como a “desordem informacional” – trouxe confusão para parte do público, que tem reclamado de limites sem embasamento específico em textos legais aprovados pelo Legislativo. Evidentemente a doutrina jurídica e a jurisprudência também apresentam potencial para definir novas leituras e expandir ou delimitar direitos, mas nem sempre essa fundamentação é compreensível para o público geral, ou mesmo para os especialistas no campo, que têm divergido sobre os riscos dessa atuação mais incisiva das cortes sobre o controle do debate on-line.

No clássico “Direito e democracia: Entre facticidade e validade” (Editora Tempo Brasileiro, 2010), Jürgen Habermas lembra que as normas só são vistas como legítimas se, além de sua força de imposição, são coletivamente reconhecidas como válidas, ou seja, se são embasadas e racionalmente fundamentadas. É um esforço de dupla delimitação do Judiciário: seu poder encontra limites na sua capacidade de autocontenção e na definição de quais os limites para as condutas aceitáveis e as punições exigidas para seus abusos.

Como tem sido sua tradição, é importante que o Judiciário considere as críticas fundamentadas que se apresentam aos processos recentes que tratam do combate legal à desinformação. Se a sociedade demanda maior clareza na definição dos princípios para delimitar as mensagens passíveis de controle judicial, esse é um debate que precisa ser acompanhado também pelo Judiciário – ou pelo Legislativo, como tem sido feito no debate sobre o Projeto de Lei no 2.630/2020, atualmente enfrentando obstáculos na Câmara dos Deputados. Mas esse não é, evidentemente, um debate que se limita às cortes e ao Congresso: também na esfera pública novas propostas e questionamentos aos limites atuais encontram espaço para discussão. Como Habermas bem lembra, o jurista e o legislador não monologam em suas decisões, nem são elas definitivas: são passíveis de revisão na estrutura legal e de crítica no debate público, um processo dialógico que pode aprimorar os processos de regulação midiática atuais.

Assim, os processos judiciais sobre desinformação poderiam ser também uma forma de pedagogia midiática, pois ensinariam o que não se pode fazer, na esfera pública, e como se pode controlar esses abusos, de formar democrática, na esfera jurídica. Ao mesmo tempo seriam alvo de crítica ou aprimoramento no debate coletivo, cobrando com isso critérios mais claros e correções de processos que precisam ser revistos, como tantas vezes feito em nossos tribunais. Essa é a lição que podemos aprender dos processos recentes sobre desinformação nas cortes brasileiras: ainda que com resultados imperfeitos, ou em processos turbulentos, podem ser aprimorados, de forma democrática, ouvindo críticas.