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Comercialização de telefones sem o carregador – Venda casada ou consumo sustentável?

3 de novembro de 2022

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Há pouco mais de dois anos, em 13 de outubro de 2020, a Apple anunciou a nova geração de aparelhos celulares (iPhone 12). De forma inédita, os aparelhos passaram a ser comercializados somente com o telefone, além do cabo de transferência de dados e energia. O carregador de parede e o fone de ouvido passaram a ser vendidos de forma isolada.

Em potencial, existem ganhos para o meio ambiente, mas os cabos vendidos com os aparelhos de nova geração somente são compatíveis com carregadores mais recentes. É uma situação paradoxal, que também convida a algumas reflexões sobre as acusações de prática de venda casada que a Apple vem sofrendo nos últimos dois anos.

A ausência do carregador, desde o seu anúncio, foi recebida com comoção e criticismo, o que motivou no Brasil diversas medidas para compelir a Apple a incluí-lo na venda dos telefones.

Poucos meses após a divulgação, na Câmara dos Deputados, foi apresentado o Projeto de Lei nº 5.451/2020, para introduzir o art. 39-A ao Código de Defesa do Consumidor, de forma a incluir um rol de itens obrigatórios no comércio de telefonia móvel: “Art. 39-A. No comércio de terminal de telefonia móvel, o fornecedor fica obrigado a incluir bateria, fone de ouvido, fonte de alimentação e quaisquer cabos e adaptadores necessários à fruição do dispositivo.”

Já em processo administrativo nº 08012.003482/
2021-65 junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, iniciado de ofício pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, recentemente, em 6 de setembro de 2022, foi estipulada multa no valor de aproximadamente R$12 milhões, além da: 

(…) cassação, junto ao órgão competente, de registro dos smartphones da marca iPhone introduzidos no mercado a partir do modelo iPhone 12, nos termos do art. 18, IV, do Decreto nº 2.181/1997, bem como a imediata suspensão, nos termos do art. 18, VI, do Decreto n.º 2.181/1997, do fornecimento de todos os smartphones da marca iPhone, independentemente do modelo ou geração, desacompanhados do carregador de bateria.

Na fundamentação da decisão administrativa, a prática foi enquadrada em quatro dispositivos distintos do Decreto nº 2.181/1997: “venda casada” – art. 12, I; “venda de produto incompleto ou despido de funcionalidade essencial” – art. 12, IX, d; “recusa da venda de produto completo mediante discriminação contra o consumidor” – art. 13, XIII e “transferência de responsabilidades a terceiros” – art. 22, III.

No mês seguinte, em 13 de outubro de 2022, foi proferida sentença em ação civil pública nº 1078527-71.2022.8.26.0100, aforada pela Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes (ABMCC) perante a 18ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo (SP), para também reconhecer a hipótese de venda casada e julgar procedente o pedido de indenização por danos sociais fixados em R$100 milhões, além das obrigações de entregar um carregador para cada consumidor que deixou de recebe-lo e passar a vender novos aparelhos sempre em conjunto com seus respectivos carregadores.

A Apple, por sua vez, veio a público, em mais de uma ocasião, esclarecer que recorrerá das respectivas decisões, além de declarar que a ausência do carregador não implica prejuízos aos consumidores, pois há muitos outros já em circulação decorrente das vendas dos modelos anteriores, além de a prática acarretar sensíveis ganhos ao meio ambiente.

No site da Apple, há um esclarecimento sobre a diminuição da extração de mais de 550 mil toneladas de minério de zinco, cobre e estanho decorrente da prática adotada, além do fato de que, com as caixas mais leves e menores, são transportados 70% mais caixas por palete, o que contribui para a redução de emissões. É, então, declarado que estas duas externalidades positivas poupariam “mais de dois milhões de toneladas de carbono, o equivalente a 500 mil carros a menos em circulação por um ano inteiro”.

Nesta linha, também há precedente em que foi julgado improcedente o pedido indenizatório e afastada a prática de venda casada, sob a justificativa de que o carregador não seria essencial para o funcionamento do aparelho, pois podem ser utilizados carregadores da Apple mais antigos ou de outros fabricantes, além do carregamento por indução, possível desde o iPhone 8 – sentença de 31 de agosto de 2022, na ação civil pública nº 5067072-35.2022.8.24.0023 ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina perante a 1ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis (SC).

Em relação ao meio ambiente, são verdadeiramente importantes os argumentos pelo consumo sustentável e pela redução do impacto ambiental. Tais objetivos sempre devem ser perseguidos, se possível sua compatibilização, a preços competitivos, com a satisfação das necessidades humanas e da melhora na qualidade de vida, princípio basilar da Política Nacional de Resíduos Sólidos, previsto no art. 6º, V, da Lei nº 12.305/2010.

Sucede que na análise das decisões contrárias à Apple, a recente mudança dos conectores dos cabos foi uma ocorrência significativa. Há poucos anos, os aparelhos são comercializados com cabos de entrada USB-C (conector menor do que a USB), ou seja, há vários carregadores em circulação que não são compatíveis com os cabos das últimas gerações do aparelho – embora os cabos mais antigos ainda possam ser utilizados com os aparelhos mais novos, mas não com a mesma eficiência.

Ainda, especula-se no mercado que os atuais cabos estão em vias de ser substituídos. Ao invés de um conector USB-C em uma ponta e o conector padrão da Apple na outra – o chamado Lightning, usado desde o iPhone 5 – os cabos passarão a conter o conector USB-C em ambas as pontas. Inclusive, em 4 de outubro de 2022, o Parlamento Europeu aprovou lei impondo, até 2024, o uso de cabos com entradas USB-C nas duas pontas para todos os aparelhos eletrônicos comercializados na Europa. Se esta mudança ocorrer também em outros países, naturalmente, inumeráveis cabos com a entrada Lightning se tornarão obsoletos.

Assim, de um lado, é realmente plausível que a comercialização de aparelhos sem os carregadores atenda a uma agenda de consumo sustentável; de outro, há recentes exemplos em que alterações nos produtos implicaram a obsolescência repentina de acessórios não tão antigos. As práticas parecem ser, portanto, absolutamente contraditórias.

Todo esse problema, a nosso ver, deve ser levado em conta para dirimir se a ausência do carregador na venda dos telefones acarreta práticas ilícitas como venda casada, se o carregador for compreendido com uma peça acessória ou venda de produto incompleto, se for vislumbrado como um componente.

Caso dispositivos eletrônicos, como o carregador, restarem compatíveis com as novas gerações do aparelho por período considerável, parece ser aceitável e até desejável que a comercialização seja realizada sem o carregador, em prol da redução de emissões e do consumo sustentável. Se, no entanto, a evolução tecnológica impuser contínuas alterações de atributos a provocar obsolescência abrupta de certas peças, não parece haver melhor solução do que a venda de todo o conjunto. Do contrário, os usuários serão obrigados, mais cedo ou mais tarde, a adquirir a peça acessória de forma isolada, o que caracteriza venda casada, ou serão forçados a se contentar com a subutilização do aparelho pelo uso de acessórios desatualizados, o que configura venda de produto incompleto. 

No fim, é o equilíbrio entre evolução tecnológica e consumo sustentável que ditará como serão as leis, a regulação e as decisões judiciais do futuro.

Notas_______________________

1 V. notícia do G1 veiculada na mídia em 13/10/2020: Apple anuncia iPhone 12 em quatro modelos; pela primeira vez, carregador e fone de ouvido não serão inclusos – acesso em 17/10/2022.

2 V. despacho n. 2.343/2022 de 6/9/2022 – acesso em 17/10/2022.

3 “Menos carregadores, menor impacto ambiental. Não incluir os adaptadores de energia nas embalagens do iPhone 12 foi uma mudança ousada para a Apple, mas necessária para o planeta. Por serem compostos de grandes quantidades de materiais específicos, sem eles evitamos a extração de mais de 550 mil toneladas de minério de zinco, cobre e estanho. Com embalagens menores e mais leves, passamos a transportar até 70% mais caixas de iPhone por palete, o que contribui enormemente na redução de emissões. Assim, poupamos a natureza de mais de dois milhões de toneladas de carbono, o equivalente a 500 mil carros a menos em circulação por um ano inteiro.” – disponível em https://www.apple.com/br/environment/ – acesso em 18/10/2022.

4 Segundo consta no próprio site da Apple: https://support.apple.com/pt-br/HT208078 – acesso em 20/10/2022.

5 Cf. notícia da Reuters de 4/10/2022: Apple forced to change charger in Europe as EU approves overhaul – acesso em 20/10/2022.