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Desjudicialização da execução, oportunidade única

7 de novembro de 2023

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Em 20 de novembro de 2019, a Senadora Soraya Thronicke apresentou o Projeto de Lei no 6.204/2019, pelo qual seria introduzida a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial. Foi também proposto um texto substitutivo, em 12 de abril de 2021, pelo Senador Marcos Rogério. Entre 15 de junho de 2022 e 3 de agosto de 2022, quando parecia que o projeto iria para votação em plenário, foram ainda sugeridas 25 emendas com alterações ora pontuais, ora de maior relevância, mas, na essência, foi mantida a ideia central de desjudicialização das ações de execução civil.

Já em meados de 2023, enquanto tramitava no Senado Federal o chamado Marco Legal das Garantias (Projeto de Lei no 4.188/2021, originalmente da Câmara dos Deputados), o texto legal sobre a desjudicialização chegou a ser a ele incorporado, mas acabou sendo retirado da redação final.

Não obstante, há grande parcela da população que deseja a alteração legal, com a esperança de que os processos de execução passem a tramitar de forma mais célere e eficiente. A esperança é legítima, pois, na prática contenciosa, todos sabem que os processos executivos são a parte mais problemática. Se aprovado, o PL no 6.204/2019, contudo, é bastante provável que as execuções país afora se tornem mais morosas e custosas.

Em suma, o PL no 6.204/2019 prevê a obrigatoriedade (ou a faculdade de acordo com o substitutivo) de execução de títulos judiciais e extrajudiciais perante o tabelião de protestos, único profissional apto a exercer a figura do denominado “agente de execução”. Há certas exceções, quando figurarem como partes o incapaz, o condenado preso ou internado, as pessoas jurídicas de direito público, a massa falida e o insolvente civil.

Os poderes do agente de execução seriam amplos, sendo competente inclusive para examinar os requisitos de admissibilidade da execução, além de eventual decurso da prescrição ou da decadência. Além disso, as alterações legislativas estariam em sua maioria no corpo de uma lei esparsa, com alterações diminutas no Código de Processo Civil e sem endereçar os executivos fiscais. Estas particularidades, dentre outras, causam certa perplexidade.

Em primeiro lugar, parece haver frontal inconstitucionalidade ao se arredar do Poder Judiciário a possibilidade de execução (segundo o texto original). De acordo com o art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, nenhuma lei pode afastar lesão ou ameaça a direito do Poder Judiciário.

Em segundo lugar, ainda que a execução por via extrajudicial seja apenas facultativa, a delegação de poderes cognitivos para o agente de execução implicaria um caótico cenário no qual questões de direito material seriam dirimidas de forma extrajudicial. Seria de todo impensável vislumbrar uma realidade em que o agente de execução seja considerado legítimo intérprete das leis para decidir matérias importantes como prescrição e decadência ou aquelas
relativas aos requisitos de admissibilidade da execução como, por exemplo, exequibilidade do título, exigibilidade da obrigação, liquidez da dívida, dentre várias outras.

Em terceiro lugar, mesmo que a figura do agente de execução se atenha a funções restritas à atividade executiva como pesquisa, avaliação e constrição de bens, é injustificável que tamanha alteração legislativa seja delegada exclusivamente aos tabeliães de protesto. Seria muito mais eficiente permitir que, atendidos certos requisitos, qualquer pessoa física ou jurídica pudesse figurar como agente de execução, em prestígio da livre iniciativa e bem-estar social.

Em quarto lugar, o atual Código de Processo Civil vigora há pouco mais de sete anos. A criação da figura do agente de execução demandaria profundas modificações ao processo de execução. Seria, assim, desejável que alterações legislativas tão importantes fossem adaptadas ao próprio texto do diploma processual e não introduzidas por uma lei isolada.

Em quinto lugar, o PL no 6.204/2019 não contempla a desjudicialização das execuções fiscais, discutivelmente a parte mais conturbada na realidade brasileira.

Conclui-se que o PL no 6.204/2019 conta com, pelo menos, cinco problemas seríssimos, quais sejam: (i) afastamento da jurisdição estatal do Poder Judiciário; (ii) delegação de poderes cognitivos ao agente de execução; (iii) concessão exclusiva para que os tabeliães de protesto coordenem os procedimentos extrajudiciais; (iv) ausência de uma adaptação ao Código de Processo Civil e (v) inexistência de alteração relativa às execuções fiscais.

Ainda há outras questões que causam inquietação, como já apontado por vários doutrinadores (em especial, nos cinco artigos de lavra de Márcio Carvalho Faria publicados na “Revista de Processo”, v. 46, no 313 a 317, respectivamente).

Felizmente, há outras iniciativas que já foram divulgadas na comunidade acadêmica. Ambas são mais sofisticadas e contam com muito maior rigor técnico: (i) a primeira, publicada em 2021, no periódico Civil Procedure Review (v. 12, no 1), de autoria de Juliana Malazzi Andrade, Antonio do Passo Cabral, André Parizio, Larissa Carrasqueira Duarte e Eduarda Boisson, membros do grupo de estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) “Transformações nas estruturas fundamentais do Processo”; e (ii) a segunda, apresentada em 2022, na coletânea coordenada pelo Ministro Marco Aurélio Belizze e publicada pela editora Foco, “Execução civil: novas tendências”, de autoria de Fernando Crespo Queiroz Neves, Flávia Pereira Hill, Heitor Vitor Mendonça Sica, Larissa Clare Pochmann da Silva, Marcelo Abelha Rodrigues, Márcio Carvalho Faria, Márcio Rocha e Marcos Youji Minami, integrantes do grupo de estudo da Universidade de São Paulo (USP) “Observatório da execução judicial e desjudicializada”.

Em breve, a questão da desjudicialização da execução voltará à tona. As associações de estudiosos, os órgãos de classe, os especialistas na matéria e todos os demais jurisdicionados devem estar preparados para aprimorar a discussão, de preferência após a realização de audiências públicas e estudos dos anteprojetos concebidos na Uerj e na USP. Se aprovado o texto do PL no 6.204/2019 da forma como hoje se encontra, serão criados mais problemas do que soluções. É preciso aproveitar a oportunidade!