A competência para processar e julgar ações civis públicas que contenham pedido de perda de cargo de agente político

21 de julho de 2014

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NilzaO presente artigo discorrerá sobre a competência para se processar e julgar ação civil pública por cometimento de ato de improbidade administrativa em que se pede a perda de cargo da autoridade ré. Terá ela a prerrogativa de se ver julgado por foro diferenciado e não pelas vias ordinárias da primeira instância?

A doutrina não é unânime quanto ao tema.

Ferreira (1998) é radical e, atribuindo às sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa “forte conteúdo penal”, afirma que os agentes ditos políticos sequer se encontrariam sob o manto de tal legislação.

Carvalho Filho (2008) traz um temperamento, de forma que a competência somente seria afastada do juízo de primeiro grau quando o pedido da ação civil pública envolvesse a perda do cargo de agentes que gozem de vitaliciedade:

A questão da perda de função pública merece acurada análise quanto à sua aplicabilidade a agentes dotados de vitaliciedade […]. No que tange aos membros do Ministério Público, dispõem seus diplomas reguladores que tais agentes também só podem perder seus cargos em ação civil processada perante os Tribunais a que estejam vinculados. Trata-se, pois, de agentes sujeitos a regime jurídico especial. […] constituiu escopo da Constituição e das leis reguladoras dispensar-lhes regime próprio, como qual se afigura incompatível a aplicação da referida sanção por juízo de primeira instância.

Por seu turno, Mazzilli (2011) sustenta que, de fato, há agentes políticos cujo cargo não pode ser objeto de pedido de perda por meio de ação civil pública. Porém, tal distinção de tratamento somente se fará quando expressamente previsto na própria Constituição da República um regime específico de responsabilidade, como é o caso do impeachment por crime de responsabilidade do Presidente da República:

De nossa parte, concordamos com que os agente políticos não possam perder o cargo ou a função por meio de ação civil pública proposta com base nessa lei, quando estejam submetidos a forma própria de responsabilidade, prevista diretamente na Constituição. Contudo, nada impede que lhes seja movida ação civil pública com causa de pedir fundada na mesma lei, desde que o pedido se limite a sanções pecuniárias (como eventual perda de bens ilicitamente adquiridos ou ressarcimento integral do dano), assim como já podiam e continuam podendo ser processados sem foro especial por meio de ação popular.

Por fim, tem-se a posição de Garcia e Alves (2004), para quem a legislação não traz qualquer óbice à decretação da sanção de perda de cargo aos servidores públicos, ainda que estes gozem da prerrogativa da vitaliciedade.

Por constituir a Lei n. 8.429/1992 um microssistema de combate à improbidade, com peculiaridades próprias e que comina sanções de natureza cível, também em relação aos membros do Ministério Público Estadual inexiste prerrogativa de foto, devendo ser fixada a competência do juízo monocrático. Em que pese o fato de o art. 38, § 2o, da Lei n. 8.625/1993 ser claro ao estatuir “a ação civil pública para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local”, tal preceito somente será aplicável às hipóteses previstas no diploma legal em que está inserido, não alcançando a disciplina específica da Lei de Improbidade.
[…]

Sintetizando o que foi dito neste item, conclui-se que referidos agentes sempre estarão sujeitos às sanções cominados pela prática de atos de improbidade, devendo ser processados e julgados, a exemplo dos demais agentes públicos, pelo juízo monocrático, inexistindo qualquer óbice à decretação da perda do cargo por este.

Sopesando todos os argumentos usados pelos defensores das mais distintas correntes de pensamento, creio assistir razão à corrente dos que entendem que o foro por prerrogativa de função não alcança as ações civis públicas, ainda que ela contenha pedido de perda de cargo do agente.

A primeira premissa a ser fixada para o deslinde da questão é no sentido de que as ações de improbidade administrativa possuem natureza civil, e não penal. Isso se extrai do comando expresso contido no § 4o do art. 37 da Constituição da República, que estabelece que os atos de improbidade administrativa implicarão sanções próprias, na forma da lei, sem prejuízo de eventual ação penal. Confira-se:

Art. 37. […]
§ 4o – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. (grifei)

Por conseguinte, sendo cível a ação em questão, não se estende às ações de improbidade administrativa a prerrogativa de foro prevista para as ações penais e para as ações civis de nulidade de atos de autoridade – como, por exemplo, os mandados de segurança.

Assim, é forçoso inferir pela competência originária do juízo singular de primeiro grau, seja federal ou estadual, conforme o caso, não prevalecendo qualquer foro por prerrogativa de função.

Tal conclusão decorre, ainda, de uma interpretação da norma específica em sintonia com os fundamentos primordiais do Brasil inseridos no art. 1o da Constituição, a saber, o princípio republicano, a democracia e a cidadania, bem como dos valores da igualdade e da justiça, consagrados pelo legislador constituinte originário no preâmbulo da Carta Magna.

Portanto, à vista do princípio da igualdade, erigido à condição de direito fundamental dos cidadãos no texto constitucional, todos devem ter, a princípio, o mesmo tratamento, somente se justificando alguma desigualdade na exata medida em que sejam desiguais.

Por conta disso, o próprio constituinte originário trouxe situações em que, em virtude do cargo exercido por alguns (e não em função da pessoa de seu ocupante) e em situações fáticas especiais (causas criminais e cíveis em que se impugna a validade de atos de ofício), a competência originária para processar e julgar as demandas não seria da primeira instância.

Tais exceções são taxativas, não se admitindo nem interpretação extensiva, nem ampliação do rol por meio de legislação ordinária, haja vista que somente a própria Constituição pode se excepcionar. Confira-se, por supedâneo, a brilhante lição de Comparato (1999):

Neste sentido, é à luz do princípio da isonomia que deve ser interpretada a disposição constante do art. 5o, inciso LIII, da Constituição de 1988: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; vale dizer, pela autoridade cuja competência tenha sido determinada de acordo com o sistema constitucional […] Ora, no regime constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições republicanas, mas diversamente do que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente constitucional para a criação de privilégios de foro […] Quanto ao Poder Judiciário, cujos membros não são eleitos pelo povo, ele exorbitaria claramente de suas funções, se, sob pretexto de interpretar a Constituição e as leis, decidisse criar ponte própria direito novo. Não é mister grande esforço de raciocínio para perceber que, se o Poder Judiciário se arrogasse competência para dizer como e por intermédio de que órgão iria decidir um litígio sobre a aplicação da Constituição e das leis, os jurisdicionados já não estariam submetidos a elas, mas sim aos próprios tribunais. Por conseguinte, nesse aleijão de democracia, todo poder emanaria não do povo, mas dos juízes que o povo não escolheu […] É preciso salientar, ademais, que a vedação de prerrogativa de foro costuma, com muito boa razão, vir expressa juntamente com a proibição de se criarem tribunais de exceção. E a razão é intuitiva. A livre instituição de privilégios jurisdicionais, se levada às suas últimas e naturais consequências, acabaria por revogar todo o ordenamento da competência judiciária e, por eliminar, em consequência, juntamente com a submissão de todos, sem discriminações, aos mesmos juízes e tribunais, a regra de que os órgãos do Poder Judiciário devem ser, pela sua própria natureza, permanentes e não circunstanciais. (grifei)

Deveras, somente a Constituição poderia se excepcionar e criar competência originária para os tribunais, tal como previsto, por exemplo, no artigo 102, inciso I, alíneas “b”, “c” e “d”; artigo 105, inciso I, alíneas “a”, “b” e “c”; e artigo 108, inciso I, alíneas “a” e “c”, todos da Carta da República.

No âmbito do estado do Rio de Janeiro, a competência originária do Tribunal de Justiça também é excepcional, taxativamente descrita e adstrita às hipóteses de crimes comuns e de responsabilidade, ex vi artigo 161, inciso IV, alíneas “c” e “d” e “e”, da Carta Estadual.

Logo, se o constituinte afirmou que a responsabilização por atos de improbidade administrativa independe da responsabilização penal, e, quando tratou do foro por prerrogativa de função, expressamente aludiu a crimes comuns e de responsabilidade, bem como a mandados de segurança, conclui-se que, para os atos de improbidade, não há falar em foro por prerrogativa de função.

Nesse sentido já decidiu a c. Corte Especial do e. Superior Tribunal de Justiça, como se pode observar da ementa de acórdão a seguir:

Improbidade administrativa (Constituição, art. 37, § 4o, Cód. Civil, arts. 159 e 1.518, Leis n. 7.347/1985 e n. 8.429/1992). Inquérito civil, ação cautelar inominada e ação civil pública. Foro por prerrogativa de função (membro de TRT). Competência. Reclamação. 1. Segundo disposições constitucional, legal e regimental, cabe a reclamação da parte interessada para preservar a competência do STJ. 2. Competência não se presume (Maximiliano, Hermenêutica, 265), é indisponível e típica (Canotilho, in REsp-28.848, DJ de 02.08.93). Admite-se, porém, competência por força de compreensão, ou por interpretação lógico-extensiva. 3. Conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho (Constituição, art. 105, I, “a”), não lhe compete, porém, explicitamente, processá-los e julgá-los por atos de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer, admite-se tal competência, porquanto, aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau. 4. De lege ferenda, impõe-se a urgente revisão das competências jurisdicionais. 5. À míngua de competência explícita e expressa do STJ, a Corte Especial, por maioria de votos, julgou improcedente a reclamação. (grifei)
(Rcl 591/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/12/1999, DJ 15/05/2000, p. 112)

Não se desconhece, por certo, que há decisões mais recentes do STJ inclinando-se pela aplicação das regras do foro diferenciado (cf. AgRg no AREsp 184.147/RN, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 20/08/2012; AgRg na MC 18.692/RN, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 20/03/2012), embora não de modo unânime e pacificado (cf. AgRg no REsp 1331229/SE, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 05/12/2012).

Emblemática, entretanto, para elucidar a controvérsia posta, é a decisão tomada pelo e. Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN n. 2797/DF. Nessa oportunidade, a Corte constitucional brasileira declarou a inconstitucionalidade do § 2o do art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n. 10.628/2002, o qual previa que “a ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública”.

Abaixo, transcreve-se elucidativo trecho da ementa do acórdão da referida Ação:

EMENTA: I. […]. III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei n. 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1o e 2o ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. […]. IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2o do art. 84 do C Pr Penal, introduzido pela L. n. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4o), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal – salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X, e 96, III –, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária. V. Ação de improbidade administrativa e competência constitucional para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1. O eventual acolhimento da tese de que a competência constitucional para julgar os crimes de responsabilidade haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2o do art. 84 do C Pr Penal. 2. A competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo impeachment é da competência dos órgãos políticos – a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado”.
(ADI 2797, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)

Cabe asseverar, nesse diapasão, que a decisão do e. STF, tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, possui eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário (art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/1999). Consequentemente, não é lícito aos demais órgãos do Poder Judiciário decidir em sentido oposto ao naquela Corte assentado, pena de violação à autoridade de suas decisões (art. 102, inc. I, al. “l”, da CRFB).

Nem se diga que os atos de improbidade administrativa sejam crimes de responsabilidade. Isso porque, considerando que a natureza das sanções a serem aplicadas no âmbito das ações por improbidade administrativa seja cível, as regras para atribuição de competência de tais ações devem seguir o disposto para o processo civil.

Por conseguinte, impõe-se concluir que tal competência recai sobre o juízo monocrático de primeiro grau, não havendo falar, nessas hipóteses, em foro especial por prerrogativa de função concedido a determinadas pessoas na esfera criminal.

Reproduz-se, por absoluta pertinência, o seguinte escrito de Miranda (2011):

Com efeito, os atos de improbidade administrativa não se confundem com os impropriamente denominados crimes de responsabilidade, uma vez que os primeiros configuram ilícitos de natureza civil (extrapenal) – muito embora tenha consequências na esfera administrativa –, enquanto os segundos são infrações político-administrativas.
Daí porque os primeiros – os atos de improbidade administrativa – estão sujeitos a um processo e julgamento realizado exclusivamente pelo Poder Judiciário, isto é, na esfera jurisdicional, valendo-se de um rito próprio sem qualquer aspecto político, enquanto os segundos – os crimes de responsabilidade –, conforme destacado, estão sujeitos em relação a alguns agentes a processo e julgamento pelo Legislativo (Senado Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais), tendo, assim, forte carga política em sua condução.

Tem-se, portanto, que os crimes de responsabilidade possuem natureza distinta não só dos crimes comuns, mas também de outros atos ilícitos de natureza extrapenal, pelo que não há falar que a previsão de foro por prerrogativa de função para os crimes de responsabilidade englobe os casos de improbidade administrativa.

Desse modo, resta afastada peremptoriamente qualquer tentativa de se dar foro por prerrogativa de função nas ações civis públicas para apuração de atos de improbidade administrativa.

Não é demais lembrar, ainda, que as normas procedimentais para os processos em tramitação perante os Tribunais estão previstos na Lei n. 8.038/1990.

Essa, em seu Título I, traz a disciplina para os feitos de competência originária perante os Tribunais, ali elencando, expressamente, a ação penal originária (arts. 1o ao 12), a reclamação (arts. 13 a 18), a intervenção federal (arts. 19 a 22), o habeas corpus (art. 23), a ação rescisória, o conflito de competência, de jurisdição e de atribuições, a revisão criminal e o mandado de segurança (art. 24), o mandado de injunção e o habeas data (art. 24, parágrafo único) e a suspensão de segurança (art. 25, caput). Perceba-se que, em momento algum, é mencionada a ação civil pública, nem mesmo quando for para a perda de cargo daqueles agentes públicos que gozam de prerrogativa de serem processados e julgados perante o STJ ou o STF.

Isso denota a toda evidência que a competência, em tais hipóteses, não será de órgão colegiado, mas sim, como já dito, de juízos de primeira instância.

Eventual legislação infraconstitucional que estabeleça competência originária para os Tribunais além do já previsto nas Constituições Federal e Estaduais não pode prevalecer, pois vai de encontro ao primado da taxatividade.

Tampouco merece guarida o argumento de que, considerando o princípio de hierarquia e para evitar incongruências no sistema jurídico vigente, as autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função para crimes comuns e de responsabilidade também teriam direito ao julgamento por atos de improbidade administrativa em órgão colegiado das instâncias superiores.

Como já dito, as exceções foram criadas pelas Constituições, em rol fechado, não cabendo nem ao legislador, nem ao intérprete, ampliá-lo. Veja-se, a esse respeito, o ensinamento da doutrina de Fazzio Junior (2011):

Pergunta-se: qual é o problema de um Juiz de primeiro grau julgar a ação civil impetrada contra qualquer executivo municipal por atos de improbidade? Se condenado em primeira instância, o prefeito poderá recorrer ao Tribunal de Justiça, cumprindo-se a garantia processual do duplo grau de jurisdição.

A fim de se ilustrar a polêmica apresentada, apresento dois casos emblemáticos havidos no Judiciário do estado do Rio de Janeiro, um envolvendo um Procurador de Justiça e o outro um Desembargador.

Na primeira situação, quis o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro que um seu membro fosse processado e julgado perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado. Arvorou-se, para tanto, basicamente, em dois preceitos legais, a saber:

Lei n. 8.625/93
Art. 38. […].
§ 2o. A ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.
Lei Complementar Estadual n. 106/03
Art. 134 […].
§ 1..o – A ação civil para decretação da perda do cargo do membro vitalício do Ministério Público será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, perante o Tribunal de Justiça deste Estado, após autorização do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, por maioria simples.

À época, o colegiado, por maioria, encampou a tese ministerial e reconheceu do foro por prerrogativa de função quando a propositura de ação civil pública puder ensejar a perda do cargo de agente que goze de vitaliciedade.

Relatora originária que era da ação em cotejo, fiquei vencida ao filiar-me à melhor doutrina e ao entendimento assente da Corte Maior.

Fundamentei minha posição ao emprestar aos dispositivos supratranscritos interpretação conforme a Constituição, de forma que a expressão “Tribunal de Justiça” neles contida deva ser tomada em seu sentido amplo, como sinônimo do gênero da Justiça estadual, e não em sentido estrito, como sendo o seu órgão colegiado de segunda instância.

Afirmei, ainda, que, na esfera estadual, a Lei Complementar n. 113/06, acresceu o parágrafo 6o ao artigo 134, esclarecendo que:

§ 6o – A atribuição prevista no § 1o aplica-se a todas as ações civis de que possa resultar a perda do cargo do membro vitalício do Ministério Público, qualquer que seja o foro competente para o respectivo processo e julgamento.

Tal norma vem espancar qualquer dúvida que pudesse haver quanto à competência do juízo de primeiro grau para processar e julgar ação civil pública objetivando a perda de cargo de membro vitalício do Ministério Público, haja vista que esclarece que a atribuição do Procurador-Geral para propor a referida ação vale para qualquer foro.

Pouco tempo depois, foi objeto de julgamento perante o Órgão Especial outra ação civil pública, dessa feita com pedido de perda de cargo de Desembargador. Esse processo tramitava originalmente perante o e. STF, o qual decidiu por remetê-lo para o Tribunal de Justiça.

Ora, se o Supremo tivesse entendido que, em sede de ação civil pública, prevaleceria o foro por prerrogativa de função, teria encaminhado a ação diretamente para o Superior Tribunal de Justiça, e não para o Tribunal de Justiça estadual. Não soa lógico. Tampouco se avista coerente que, nas ações civis públicas em face de Procuradores de Justiça, o Órgão Especial se julgue competente com base no foro por prerrogativa de função, e nas em face de Desembargadores, não reconheça o mesmo foro por prerrogativa de função (no caso, do Superior Tribunal de Justiça).

Repise-se que, para respeitar o comando do excelso Pretório, faz-se necessário perquirir a diferença entre Tribunal de Justiça strictu sensu, isto é, o colegiado de Desembargadores, e Tribunal de Justiça lato sensu, vale dizer, o Judiciário estadual. E, no caso, é evidente que se trata desta última acepção.

Destarte, tem-se que deve ser reconhecida a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar as ações de improbidade administrativa, não importando o grau hierárquico do agente que figure como réu, visto que as sanções correspondentes têm natureza jurídica cível e a competência originária dos tribunais não pode ser alterada por norma infraconstitucional.

Referências bibliográficas ___________________________________________________

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COMPARATO, Fabio Konder. Boletim dos Procuradores da República, São Paulo, ANPR / Fundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva, ano 1, n. 9, p. 6-9, jan./1999.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos: de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 34.
FERREIRA, Gilmar Mendes. Competência para julgar a improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, n. 138, p. 213-215, abr./jun. 1998.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 312.
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