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Compliance digital como mecanismo de prevenção de crimes empresariais de alta complexidade

5 de dezembro de 2023

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Há algum tempo se desenvolve no Brasil a compreensão da importância da valorização dos programas de compliance, que é mais uma parcela do fenômeno da americanização que nosso ordenamento jurídico experimenta, como, por exemplo, a adoção de mecanismos consensuais e negociação sobre a pena e a aplicação de leis anticorrupção.

A necessidade de implementação e execução de programas de compliance nas grandes e médias empresas não é uma novidade, desde a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas e do avanço de uma nova cultura empresarial de autorregulação, na qual os programas de prevenção constituem exigência para demonstrar transparência nos negócios e sinais de boa gestão.

O caminho para impor a cultura de ética do mercado nas empresas não é simples, posto que introduz nas demandas a aplicação do Direito Penal com grandes consequências. O debate aprofundado é necessário, posto que a dogmática penal foi construída durante séculos, desde a responsabilização pelo comportamento humano, a responsabilidade individual, até a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas.

Diversas motivações podem ser apontadas para o fenômeno, desde a necessidade de regular a concorrência, até a de identificar e afastar problemas do funcionamento do negócio que possam gerar responsabilidades administrativas e penais, ou como ferramenta para tomar decisões rápidas quando é necessário conter uma crise reputacional. A empresa que adota políticas de integridade corporativa de ética e transparência demonstra ao mercado maturidade nas suas relações empresariais.

Nas ponderações da professora catedrática da Universidade de Salamanca, Laura Zúñiga Rodrígues, o contexto histórico que motivou a importância de se discutir a responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a implementação dos programas de compliance não é fruto de simples decisionismo do legislador, mas da necessidade das empresas que assumem protagonismo de responsabilidade social.

La empresa, agente de riesgos durante el proceso de su actividad económica y social, está en la obligación de contener esos riesgos, de limitarlos al ámbito de lo jurídicamente permitido, para que no lleguen a producir infracciones graves. Este es el fundamento de la exigencia de responsabilidad: quien genera un riesgo está en la obligación de controlarlo y quien se beneficia de una actividad económica está en la obligación de satisfacer los daños que ella cause. Se trata, pues, de responsabilidad- exigibilidad por el incumplimiento de un deber jurídico de control de riesgos.

Entretanto, a execução desses programas sempre encontrou diversos desafios: para as empresas, que tiveram que desenhá-los sem uma orientação legislativa inicial, para os encarregados de colocá-los funcionando, para os compliance officers que tiveram que começar seu trabalho sem uma formação especializada e, agora, em novos tempos pós pandemia, nos quais a implementação de trabalhos remotos e sistemas de segurança completamente digitais se tornaram indispensáveis.

Trata-se de uma nova cultura cujos vieses ainda não estão completamente delineados. Pretende-se que as empresas criem voluntariamente mecanismos para agir em conformidade com a ética empresarial. Não obstante as normas dos programas de compliance serem criações da autorregulação empresarial, existe uma escassez normativa das regras e da forma de aplicação e utilização do conteúdo das informações colhidas no âmbito de investigação interna empresarial, principalmente do material colhido e armazenado em meio digital. Nesse sentido, a obrigação de cumprimento de proteção de direitos supraindividuais só será efetivada caso as recomendações (soft law) se tornem legislações positivas (hard law).

O ciberespaço fomenta a evolução das relações comerciais, mas não afasta o ser humano como verdadeiro tomador de decisões. É neste terreno digital que as grandes corporações cada vez mais irão empenhar seus esforços para prevenir práticas lesivas à empresa e investigar atos e infrações às normas empresariais e jurídicas.

É indiscutível que a maior parte dos documentos que uma empresa produz hoje são eletrônicos, assim como as comunicações dos seus empregados, colabo­radores e gestores. O uso da tecnologia gera uma grande quantidade de informação e rastros. Muito além da questão prática na catalogação de dados, a questão ulterior e importante é a forma que será utilizada para garantir a autenticidade desses documentos.

Tal questão está relacionada intrinsicamente à segurança da informação e à gestão deste ambiente digital. Se qualquer pessoa puder ter acesso ao computador de um funcionário investigado de uma empresa, porque o sistema de segurança não tem um alto de grau de segurança, pode-se levantar dúvida se aqueles documentos foram por ele produzidos. Consectário lógico de um sistema com alto grau de segurança é que, no momento da extração deste material para fins periciais ou para serem utilizados como meio de provas, seja possível assegurar a rastreabilidade e a custódia.

A cadeia de custódia da prova é o método e procedimento pelo qual deve se preservar a integridade na coleta do material probatório, cuja violação pode implicar na invalidade de valoração da prova. Ou seja, existe um certo dinamismo intrínseco às provas digitais, as quais podem perdurar por muito pouco tempo disponíveis para acesso ou podem ser facilmente modificadas ou dificilmente acessadas, dependendo do meio pelo qual foram colhidas e produzidas.

A matéria, portanto, merece detida análise e pesquisa, justificando estudo acerca da maneira pela qual os referidos mecanismos de produção e segurança dos dados das empresas podem ser usados legitimamente como provas em processos futuros.

NOTAS_______________________

1 KUHLEN, Lothar; MONTIEL, Juan Pablo; GIMENO, Ínigo Ortiz de Urbina. “Compliance y teoria del Derecho Penal”, Madrid: Marcial Pons, p. 67, 2013.

2 “Compliance penal, diligencia debida, culpa organizacional: juego de abalorios para la responsabilidad (penal) de las personas jurídicas?”. In La Ley, Compliance Penal, nº 10, Sección Estudios. Universidade de Salamanca, terceiro trimestre de 2022, La Ley.

3 PRADO, Geraldo. “A cadeia de custódia da prova no Processo Penal”. São Paulo, Marcial Pons, 2021.