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Segurança jurídica no agronegócio

27 de fevereiro de 2019

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Vivemos tempos líquidos. Os valores, antes firmes, tornaram-se volúveis; outrora clara, a diferença entre certo e errado esmaeceu. Mais do que uma substituição de valores, houve o ocaso deles. Os anteriores foram substituídos por outros com grande amplitude de significância, possibilitando ampla gama de ações com imenso espectro de efeitos, normalmente rotulados com termos esteticamente atraentes de uma linha de raciocínio coletivista utópica. E o que diz tudo, ao mesmo tempo, não diz nada: eis a porta para a arbitrariedade: travestidos com espírito aparentemente benigno, valores coletivistas chancelam as piores atrocidades.

Em tempos líquidos, a segurança se torna ativo cada vez mais valioso. Mais que isso, tornou-se ativo necessário. Essa valorização da segurança é reflexo do mais básico raciocínio de oferta e demanda: trata-se de ativo cada vez mais raro.

Essa falta de solidez também é verdadeira em âmbito jurídico: as leis vigem cada vez por menos tempo; quando elas vigem, são flexibilizadas ao bel sabor dos humores interpretativos dos aplicadores; o respeito pela autoridade desapareceu; a jurisprudência de tribunais é trocada constantemente junto às estações do ano; os contratos são desconsiderados em prol da “justiça” subjetiva dos julgadores, elemento do qual se aproveitam pessoas em comportamento oportunista, esquivando-se de obrigações contratuais e diluindo esses prejuízos em desfavor de toda a comunidade.

O mundo atual é interligado e globalizado, mas essa característica é qualificada quando se trata de agronegócio. Por ser um setor que comercializa commodities tanto em âmbito doméstico quanto internacionalmente, e tendo em vista a natural suscetibilidade dos produtos a diversas variáveis de alteração de preço, o agronegócio foi construído dentro de intrincada cadeia contratual em que a segurança e a eficiência são essenciais para o bom funcionamento do sistema.

Todavia, hoje a segurança jurídica dessa intensa cadeia contratual está em risco porque: (i) Princípios contratuais chamados “modernos” vieram como cláusulas gerais com ideais coletivistas que, na prática, abrem as portas para um ativismo arbitrário e lesivo às redes contratuais e, em última análise, ao conjunto dos indivíduos. Perdeu-se noção de que a coletividade é, na verdade, o conjunto das pessoas singularmente consideradas. Em vez disso, a coletividade tem sido tratada como se fosse pessoa jurídica dissociada dos indivíduos que vivem nela, quando na verdade esses indivíduos é que deveriam estar no foco das políticas, tendo seus direitos individuais respeitados e os negócios estabelecidos entre eles, observados; (ii) Os aplicadores desses princípios contratuais modernos, muitas das vezes, não têm qualquer experiência com o agronegócio, não sabem os elementos que tornam economicamente viável os negócios e são frequentemente iludidos com a sanha de fazer “justiça” no caso concreto, olvidando uma visão sistêmica cujas lentes, se eles as tivessem, deixariam claro como a luz do sol que suas decisões são, na verdade, um câncer nas relações sociais e econômicas, empacando o crescimento e desenvolvimento da nação e, por consequência, desfavorecendo todos os indivíduos naquela sociedade, inclusive aqueles que se pretendia proteger desde o princípio.

Sabe-se que o agronegócio é a força-motriz do País. Os dados do Censo Agropecuário 2006, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a atividade agrária brasileira, reflete o vigoroso crescimento da agropecuária na última década, e que se intensificou nos anos seguintes. A oferta de terras férteis e os ganhos de produtividade atingidos com a utilização de novas tecnologias, apontados pelo censo, propiciaram maior participação do Brasil no mercado internacional e incremento no abastecimento do mercado interno. Em grande parte, o uso dos contratos de integração vertical alavancou esse crescimento.

O agronegócio movimenta quantias cada vez mais vultosas, sendo responsável pela criação de inúmeros empregos, a alavancar a economia do País e seu PIB, o que potencializa seu poderio político, com a produção não apenas de alimentos, mas de insumos, máquinas, equipamentos, serviços, etc. É evidente que atividade econômica de tamanha relevância é, também, regrada pelo Direito e possui suas idiossincrasias jurídicas. Por conta disso, há quem sustente, inclusive, a autonomia do Direito Agrário enquanto ramo do Direito, explicando o Direito do agronegócio como “um ramo especial do Direito Civil, composto por um conjunto sistemático e interdisciplinar de regras e de princípios jurídicos que regem a organização da atividade agrária, das pessoas e dos bens envolvidos em sua consecução, tendo em vista o atendimento da função social desses recursos”.

O agronegócio é um ramo que possui diversos institutos muito peculiares. Tratar de todos eles demandaria uma obra muito mais extensa. Assim, limito-me a apresentar a seguinte percepção: o agronegócio, mais que outros ramos da economia, funciona dentro de uma intrincada cadeia contratual, permeada por operações complexas e alavancadas, sendo imprescindível um respeito qualificado à segurança jurídica, sob pena de desintegração dessa cadeia e prejuízo para aquela que é a atividade econômica mais importante do Brasil.

Diferentemente de outras atividades, o agronegócio exige um capital e quantidade de insumos enorme para funcionar. Trata-se de um ramo, portanto, totalmente dependente do financiamento. Retirar a eficácia das alienações fiduciárias e outras formas de garantia é desferir um golpe mortal em uma cadeia de contratos coligados bastante complexa e que pode gerar consequências em cascata desastrosas. Isso inibe investimentos, multiplica o risco dos empreendimentos e aumenta o spread das operações de financiamento, tornando o crédito brasileiro caríssimo. No mais, o não pagamento dos credores prejudica as suas próprias atividades e coloca em risco a saúde financeira deles. Para proteger um recuperando, corre-se o risco de trazer outros tantos para a mesma situação. Precisamos tentar recuperar as empresas sim, mas não ao custo da saúde do sistema econômico agrário, que é tão importante para o País.

Nessa toada, a clareza das regras e das instituições jurídicas devem permitir ao produtor do agronegócio exercer sua vida jurídica de maneira plena e confiante. Contratos de parceria pecuária e de venda futura através de títulos do agronegócio, por exemplo, são lastros nos quais se deve preservar a segurança para as partes que o firmam, com o mínimo de intervenção nos mesmos, para que prevaleça a estabilidade e a previsibilidade. Esses elementos da segurança jurídica são comprometidos pela denominada Justiça Contratual, ou seja, a possibilidade do juiz interferir no contrato, com base nos denominados princípios modernos do Direito contratual, em especial o da boa-fé objetiva e a função social do contrato.

Dizendo de outro modo, o que se percebe é que os chamados princípios “modernos” dos contratos colocam em risco a segurança jurídica deles, o que não acontece quando há uma prevalência dos princípios denominados “clássicos”, notadamente o respeito à autonomia da vontade (pacta sunt servanda). Aliás, nesse particular, ao dar valor reduzido aos princípios contratuais modernos, o sistema jurídico da common law acaba tutelando melhor o princípio da segurança jurídica.

No âmbito da civil law, ou seja, nos sistemas de família romano-germânica como é o brasileiro, a Justiça contratual quando utilizada em conformidade ao respectivo ordenamento jurídico, ainda que sob o pálio da tutela da confiança ou da solidariedade, deve ser limitada à estabilidade e à previsibilidade, elementos essenciais da segurança jurídica, princípio maior a ser preservado. Nesse sentido, a Professora Paula A. Forgioni alerta para o exagero na aplicação indiscriminada de institutos derivados da boa-fé objetiva:

A modificação tácita dos contratos pode acarretar situações de risco para as empresas. Basta que a parte afaste-se dos termos do instrumento para que se conclua pela inapelável modificação do contrato. Como justificativa, lançam-se institutos como supressio, surrectio, proibição do venire contra factum proprium e tu quoque. Esse tipo de postura gera elevado grau de insegurança para os agentes econômicos, que passam a nutrir o receio de que, ao se afastar do texto, nunca mais poderão recobrar os direitos que acertaram na formação do negócio. Tem-se o exagero, na ilusão de proteção de uma das partes da avença.

Isso faz ressaltar a percepção de que transformações histórico-político-sociais acarretaram profundas transformações na teoria dos contratos. Contudo, como adverte o Professor Eros Grau, “não existe e não deve ser perseguido um novo paradigma de contrato”. Na tentativa de proteger vulneráveis, não se pode desfuncionalizar os contratos por recursos interpretativos escusos travestidos de teorias esteticamente atraentes, mas que são dissociadas da realidade das coisas. É preciso – de novo – uma revaloração dos princípios contratuais. Se no Século XIX o pêndulo da hermenêutica contratual era muito rígido e apegado à literalidade do instrumento contratual, causando injustiças, hoje se percebe que este pêndulo foi para o outro extremo e está excessivamente desapegado ao que as partes efetivamente convencionaram. É preciso caminhar de volta, em direção a um estado de coisas que, na medida do possível, busque atender aos anseios sociais; mas, acima de tudo, que valorize como objetivo máximo da interpretação dos contratos a garantia da segurança jurídica, pois é somente através dessa que os contratos atingem sua real função social, que é possibilitar a vinculação entre pessoas e circulação de riquezas. Um paradigma de respeito à segurança jurídica cria o ambiente propício para a riqueza das nações; e em última análise, é esse estado de coisas que mais estimulará a dignidade de todos os cidadãos.

Notas______________________________

1 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida [liquid modernity, 2000]. Trad.: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
2 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Agropecuario_2006/Segunda_Apuracao/censoagro2006_2aapuracao.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2016.
3 BURANELLO, Renato. Os contratos do agronegócio. In: Direito comercial. São Paulo: RT, 2014. v. 5: Contratos em espécie (Coleção Direito Comercial – Coord. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa). p. 405.
4 Cf. FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: Teoria Geral e Aplicação, p. 99.
5 Op. cit., p. 6 e seg.
6 V. SMITH, Adam. Riqueza das nações. 1. ed. Trad.: Norberto de Paula Lima. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010 (Coleção Folha: livros que mudaram o mundo, v. 41).

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