Conflito de interesse não declarado pelo árbitro – A Corte Europeia dos Direitos do Homem condena!

5 de julho de 2021

Compartilhe:

A sentença da Corte Europeia dos Direitos do Homem (CEDU) de 20 de Maio de 2021 deu um passo à frente em tema de acesso à Justiça e direito ao justo processo, équo e imparcial. A sentença assume particular relevância considerado que a Corte de Estrasburgo teve que decidir “invadindo” legitimidade e competência de uma sentença adotada por Corte Arbitral e pelo seu regulamento interno, em razão de um conflito de interesse não declarado por um dos árbitros no momento da sua nomeação. É, portanto, interessante evidenciar como esta sentença (hoje jurisprudência) com certeza irá no futuro repercutir em: (i) o conflito de normativa formal aplicável em caso julgamento por Arbitragem (i.e. lei ordinária e regulamento arbitral); (ii) a regulamentação substancial dos direitos (fundamentais) referentes ao acesso à Justiça e ao justo processo, independentemente da corte acionada, seja ordinária, seja arbitral.      

Analisemos sinteticamente o caso. A demandante (BEG S.P.A.) é empresa italiana que opera no setor de construções e gestão e implementação de usinas hidroelétricas. Em 1996 a demandante entrou em contato com a ENEL – sociedade fornecedora de gás e eletricidade controlada pelo Estado Italiano – para oferecer a possibilidade de fornecimento de energia elétrica gerada por planta hidroelétrica que estava sendo construída na Albânia. A ENEL demonstrou interesse no projeto e na proposta, e assinou um contrato (em 2000), através da sua controlada ENEL Power S.P.A., que, durante a negociação, passou de ser uma Divisão interna da ENEL, a sociedade separada mas inteiramente controlada pela ENEL. Em caso de eventuais controvérsias, o contrato tinha a previsão de cláusula arbitral. Em 23 de novembro de 2000, a BEG apresentou à Câmara Arbitral da Câmara de Comércio de Roma pedido de inadimplemento do acordo de colaboração, rescisão e indenização, enquanto a ENEL Power, tendo contestado a auditoria da concessionária da BEG na Albânia, manifestou interesse em não prosseguir com o projeto. Em 28 de dezembro de 2000 a ENEL Power nomeou o seu árbitro, que naquela época – assim como relatado pela sentença da CEDU – estava também representando judicialmente a ENEL. Uma vez que a BEG tomou conhecimento de que o árbitro nomeado pela ENEL Power estava trabalhando como advogado da ENEL em outro processo, alegou o fato à Câmara Arbitral, mas mesmo assim a decisão arbitral resultou contrária aos pedidos da BEG. A demandante recorreu ao Tribunal Distrital de Roma contra a Corte Arbitral alegando negligência no controle de legitimidade dos árbitros, para obter o afastamento do árbitro “supostamente” em conflito de interesse, mas sem sucesso. Ainda, a questão foi levada à Corte da Apelação do Tribunal de Roma (juízo de 2º Grau), mas também neste caso a Corte rejeitou todas as alegações apresentadas pela demandante.

Consequentemente, em 21 de janeiro de 2011 a BEG  acionou judicialmente o Estado italiano (Nº 5312/2011) junto à Corte Europeia dos Direitos do Homem alegando violação do art. 6º da Convenção para a Proteção do Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (“Convenção”). Em 20 de Maio de 2021 foi prolatada decisão pela unanimidade dos membros da Corte (i) admitindo o pedido da demandante; (ii) declarando que houve violação do citado art. 6º da Convenção, e (iii) condenando ao pagamento do reembolso à contraparte.

Lembramos que o art. 6º §1º da Convenção estabelece que: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da Justiça”.

Releva destacar desde já que o art. 6º da Convenção é sem dúvida um dos dispositivos mais importantes, tratando do processo équo, da duração razoável, da presunção de inocência e das outras garantias processuais do imputado em relação ao princípio do contraditório. Entre as demais garantias, destaca-se o right to be heard  (direito a ser ouvido). Esta previsão (art. 6º § 3º) se torna muito importante, porquanto concretiza o próprio leitmotiv da Convenção, ou seja, o princípio pelo qual a prova há de ser formada durante o processo, mediante o contraditório entre as partes, ainda que com exceções: de acordo com a jurisprudência de Estrasburgo, quando os juízes tenham feito o possível para ouvir as testemunhas no contraditório; quando as testemunhas não sejam determinantes para o processo; quando a condenação seja baseada em outras provas – de forma que declarações fora do contraditório poderão contribuir a fundamentar um juízo de condenação, se suportadas por outros elementos probatórios.  Isso para evidenciar a importância do respeito ao princípio do justo contraditório!

Voltando ao caso, é interessante observar que o Estado italiano argumentou com base na tese defensiva de que, aceitando a Arbitragem como jurisdição competente para resolver o caso, voluntariamente renunciaram a alguns dos Direitos da Convenção. Diversamente, a CEDU entendeu que o art. 6º garante a todos o direito de apresentar qualquer reclamação relativa aos próprios direitos e obrigações civis perante uma corte ou um tribunal, os quais devem serem independentes e imparciais. Argumenta, ainda, a Corte que não afeta a aplicação do art. 6º da Convenção o fato de que a decisão de acionar a Corte Arbitral foi – de fato – preventiva à nomeação do próprio arbitro de contraparte. A Corte entendeu que as razões apresentadas pelos tribunais nacionais e pelo próprio governo se baseassem em uma presunção de conhecimento – ou seja, que a BEG tivesse de fato conhecimento das atividades profissionais do Árbitro – para o qual não havia nenhuma evidência real. Mas que, independentemente disso, a BEG nunca renunciou ao seu direito de ter garantida a independência da Arbitragem.    

Para a CEDU, embora seja verdadeiro que uma pessoa pode renunciar a certos direitos da Convenção em favor da arbitragem, as salvaguardas previstas pelo art. 6º § 1 da Convenção serão sempre aplicáveis em qualquer situação em que a renúncia não foi feita “de forma equivocada”, e não foi voluntária ou atendida por salvaguardas mínimas proporcionais à sua importância. A este respeito, a Corte reconheceu que a decisão de renunciar implicitamente às garantias de independência e imparcialidade oferecidas pelo art. 6º da Convenção pressupõe que a parte tenha sido informada de quaisquer conflitos de interesse. Em outras palavras, seria preciso que a parte realmente tivesse conhecimento da existência de um conflito de interesses e mesmo assim tivesse aceito, renunciando expressamente ao ditado do art. 6º da Convenção.

Consequentemente, a Corte argumentou que nenhuma renúncia ao direito a um tribunal imparcial pode ser “presumida” pela falha em reclamar da ausência de divulgação de conflito de interesse: se um árbitro não divulga um potencial conflito de interesse, presumiu-se que tal conflito não existe. Ainda, não é relevante se um árbitro seja “figura de destaque” ou de qualquer forma “publicamente conhecido”, sendo que, de qualquer foram, há também a obrigação de divulgar quaisquer circunstâncias potenciais que afetariam, ou poderiam afetar, a sua independência e imparcialidade.    

É, de fato, interessante observar como para a CEDU o ato em si da aceitação da nomeação, e a paralela “omissão” em denunciar eventuais conflitos de interesse renunciando à própria aceitação, ou pelo menos, comunicando em sede de aceitação o possível conflito – pela Corte – supera qualquer tipo de presunção. No caso de quo, o árbitro questionado não apenas estava representando legalmente a sociedade controladora em um processo civil tramitando na Corte de Cassação italiana, mas – sucessivamente – foi até levantado que exercia funções de administração junto à controladora, enquanto membro do Conselho de Administração. Contudo, a Corte destaca que um indivíduo pode renunciar a determinados direitos a favor da arbitragem desde que esta renúncia seja livre, legal e inequívoca. A Corte, em síntese, premiou a “boa-fé” da parte que acreditou – em um primeiro momento – que o ato da aceitação tivesse ínsito o ato responsável e não equívoco da aceitação, enquanto em ausência de conflito de interesse.

A imparcialidade denota ausência de preconceito ou parcialidade. De acordo com a jurisprudência da Corte de Estrasburgo, a imparcialidade deve ser determinada de acordo com (i) o elemento subjetivo, ou seja, com base em entendimentos pessoais e na conduta dos próprios árbitros e/ou juízes, verificando se foi demonstrado qualquer preconceito pessoal ou parcialidade em um determinado caso; com (ii) o elemento objetivo, ou seja, se o tribunal oferecia garantias suficientes para afastar qualquer dúvida legítima sobre sua imparcialidade. No caso, a aceitação da jurisdição arbitral (assim como a aposição de cláusula arbitral) foi feita antes da nomeação e da aceitação do árbitro, evidenciando mais uma vez que compete aos árbitros o dever de indicar, na respetiva declaração de aceitação, qualquer eventual relação com as partes ou seus consultores que possa ter impacto na independência e imparcialidade, e – naturalmente – qualquer interesse econômico direto e/ou indireto referente ao objeto da controvérsia.

A Corte, diante desta ausência de declaração explícita sobre o conflito de interesse por parte do árbitro, entendeu que a requerente legitimamente acreditou que não existia qualquer relação e/ou interesse econômico envolvido. Consequentemente, acreditou indevidamente na imparcialidade e independência do árbitro. Por isso, a Corte reconheceu a violação do art. 6º da Convenção.    

A sentença da CEDU, portanto, serve de alerta para nos lembrar que qualquer ato de autonomia privada, mesmo os que regulamentam formas alternativas de resolução de controvérsias (como a própria Arbitragem), devem sempre ser exercitados dentro de formas de convencimento e manifestação da vontade livres, legais e não equívocas; caso isso não aconteça, os princípios do ordenamento ou até os princípios  internacionais (como no caso da CEDU) vigiam e prevalecem (e devem vigiar e prevalecer) quando direitos fundamentais, como o direito ao acesso à Justiça e o direito ao justo processo, são violados. A sentença “punindo” o país que não conseguiu garantir o respeito ao art. 6º da Convenção há de se entender de jure condendo, forma de instigação ao controle e à criação de direitos e formas de controle tais que permitam igualdade e legalidade não apenas dentro das cortes ordinárias, mas frente a qualquer tribunal (público ou privado) que tenha a (alta e pura) prerrogativa de administrar a Justiça. 

Notas___________________

1 https://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home&c=fre

2 https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf

3 SUDRE, Frédéric, “Droit européen et international des droits de l’homme”.

4 CASSESE, Antonio. “I diritti umani oggi”. Editori La terza, 2005.