Consolidando a democracia

25 de abril de 2022

Compartilhe:

Muito se escuta sobre democracia. Com frequência, clama-se por ela. Sentimos sua importância como algo pelo qual as pessoas precisam lutar. Mas qual será o verdadeiro sentido da democracia? Os países que se dizem democráticos podem garantir sua consolidação?

Apesar de englobar diferentes conceitos e múltiplas dimensões, a democracia abrange desde a tomada de decisões políticas até o conjunto de valores que regulam a sociedade. No entanto, o fato de variar diante de uma multiplicidade de contextos não retira a sua função de orientar um sistema político homônimo, ou seja, aquele que chamamos de “democracia’’. O conceito abstrato por trás da palavra, muitas vezes não compreendido, possibilita que todas as pessoas participem, mesmo que indiretamente, na solução de demandas coletivas e nos destinos da sociedade.

A história da democracia se funde com a de muitas lutas na busca por direitos, como os de liberdade de expressão, de imprensa, ao voto, de culto, à saúde, à educação, das minorias, de uma vida livre de violência, dentre tantos outros. E se estamos a cada dia mais conscientes de nossos direitos é porque vivemos, exatamente, num sistema democrático. Por isso, na história política, foram estabelecidos uma série de direitos e deveres que as pessoas devem conhecer e cumprir para viver em democracia.

Em contraste com o que defendemos hoje, Aristóteles, um dos principais filósofos da humanidade, criticou a democracia por considerá-la uma forma ruim de governo. Isso significa que o conceito evoluiu muito ao longo do tempo e, ao contrário do que se acreditava na Grécia clássica, passou a ser considerada como uma forma de governo desejável e ideal para resolver conflitos e manter a paz.

Não se tem a conta da quantidade de pessoas que deram suas vidas para defender a democracia em diferentes partes do mundo. São exemplos aqueles que, em 1989, protestaram na famosa Praça da Paz Celestial em Pequim, na China, e seguraram a faixa que dizia: “Eu não sei o que é democracia, mas precisamos dela”.

Viver em democracia significa conceber que cada um dos membros de uma comunidade é seu cidadão, com direito à tomada de decisões, de escolher o seu representante e de apontar quem se beneficiará com o resultado dessas decisões. Significa também que a dignidade da pessoa humana é reconhecida, cultuando-se não apenas os direitos, mas também os deveres e o respeito pela lei, o respeito às diferenças, a pluralidade, a diversidade e a liberdade. Desse modo, a democracia é, ao mesmo tempo, um ideal, um regime político e um conjunto de valores, condutas e crenças.

O termo democracia tem sua origem em duas palavras gregas: “demos”, povo, e “kratos”, governo. Poderíamos então traduzi-la como “o governo do povo”. Essa frase reflete a ideia fundamental de democracia: um modo de governo no qual todas as pessoas podem participar do processo de tomada de decisões para gerar o bem comum. Foi precisamente assim que o Presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, a definiu: “o governo do povo, pelo povo e para o povo”.

Quando o povo participa das decisões o bem comum pode ser alcançado, ou seja, construindo uma sociedade em que cada pessoa seja livre e igual e onde cada um possa viver sua vida de acordo com seus desejos e preferências. Em uma democracia, cada pessoa pode pensar e acreditar no que quiser, mover-se de uma cidade para outra livremente, organizar-se com outras pessoas para se expressar e se manifestar sem temor e sem que isso implique na prática de crime. Cada pessoa pode fazer tudo isso sem necessidade de autorização prévia, sem que alguém diga o que pensar ou fazer, mas sempre respeitando os direitos alheios e os limites da lei. Essa é a maravilha de viver em uma democracia.

Quando vivemos em democracia compartilhamos uma série de ideias baseadas no respeito mútuo e na possibilidade de que cada um possa exercer sua liberdade sem privar os demais da possibilidade de também exercê-la. A democracia como cultura política promove e se baseia em uma série de valores como o respeito à dignidade humana, a tolerância, o reconhecimento da diversidade, solidariedade e da fraternidade, além de utilizar uma série de competências e práticas, como o exercício do diálogo e do debate, para solucionar conflitos e problemas de uma sociedade.

Uma democracia pressupõe princípios e valores, tais como a liberdade, a igualdade e a soberania. A liberdade, por exemplo, é um valor que comumente associamos com a capacidade de fazer ou pensar o que queremos. Este conceito parece simples, embora revele grande complexidade se o analisarmos mais profundamente e no contexto do convívio em sociedade. Podemos realmente sempre pensar ou fazer o que queremos? Tremulando a bandeira democrática, será que podemos fazer o que bem entendemos, mesmo quando isso afetar ou limitar os direitos de outros? Certamente, não pode ser bem assim. Portanto, o próprio ideal democrático impõe exercer liberdades sem afetar, limitar ou suprimir os direitos de outros.

A liberdade tem duas dimensões que os filósofos chamam de “liberdade de” e “liberdade para”. O primeiro se refere à ausência de limites externos que poderiam, arbitrária ou caprichosamente, restringir nossa capacidade de decidir ou fazer. Por isso, os Estados democráticos baseiam suas ações na lei, que deve ser sempre objetiva e neutra, e que, além disso, permite que todos sejam tratados da mesma forma. Nesse sentido, ao nos submetermos ao “Estado de Direito”, buscamos evitar os perigos e inconvenientes derivados do uso arbitrário do poder. Alguns filósofos, como Locke ou Rousseau, acreditavam que somente assim, submetendo-nos à lei, poderíamos alcançar a liberdade.

A segunda dimensão da liberdade, “liberdade para”, refere-se à nossa capacidade de fazer, agir, ter controle sobre nossas vidas e realizar nossos objetivos ou sonhos. Este tipo de liberdade pode ser afetado, não mais por limites legais ou restrições arbitrárias que alguém nos impõe, mas pelas condições concretas de vida a que somos submetidos. Se não temos condições de estudar ou acesso à informação, se não temos acesso a um trabalho dignamente remunerado, ou à moradia adequada, ou ainda se temos déficit de segurança alimentar e de saúde, nossas oportunidades serão limitadas.

A situação particular de cada pessoa está diretamente vinculada à capacidade de ser livre, como morar na cidade ou no campo, ser rico ou pobre, escolher o gênero que melhor lhe identifique, ter um problema de saúde e acesso a tratamento. Esses são apenas alguns exemplos que podem limitar nossa capacidade de escolher livremente a vida que queremos. Entretanto, para uma sociedade democrática é fundamental que esses fatores não tenham um peso decisivo na vida das pessoas, que não as restrinjam e não constituam um impedimento para seu pleno desenvolvimento.

Isso nos leva a pensar em outro dos valores fundamentais da democracia: a igualdade. Igualdade implica no reconhecimento de todas as pessoas como iguais, ou seja, igualmente valiosas, independentemente das diferenças que possam existir entre elas (como gênero, etnia, idioma, religião, status, riqueza, nacionalidade, estado civil, entre outras). Devemos tratar todas as pessoas como iguais e, além disso, garantir acesso igualitário às oportunidades, incluindo a possibilidade de participação na tomada de decisões e no também no exercício do poder.

É obrigação de um governo democrático implementar medidas que assegurem as necessidades básicas dos cidadãos, a fim de que possam exercer proveitosamente seus direitos e liberdades fundamentais. A igualdade que se espera em um Estado Democrático pressupõe o combate às desigualdades educacionais, econômicas e sociais, e no equacionamento igualitário das oportunidades. Desigualdades extremas excluem as pessoas da vida comunitária e da participação nas decisões públicas, e isso, por sua vez, debilita a democracia, que deixa de cumprir seus objetivos.

Por isso, as sociedades democráticas buscam eliminar as desigualdades extremas e garantir que todas as pessoas tenham condições mínimas para desenvolver uma vida digna. Um sistema democrático não busca uniformizar pessoas ou delas eliminar suas características próprias e seu poder de autonomia e de escolha do destino da própria vida. Para o filósofo e cientista político italiano Norberto Bobbio, a garantia constitucional de direitos de liberdade e igualdade é pressuposto para o exercício pleno da democracia, e adverte: “[…] basta a inobservância de uma dessas regras para que um governo não seja democrático, nem verdadeiramente, nem aparentemente.”

Na oportuna e recente obra “Como as democracias morrem”, alerta-se sobre os riscos que corre uma democracia frente a normas que fragilizam a tolerância mútua. Nesse contexto, “é difícil sustentar a democracia”. Seus autores apontam que há uma percepção crescente de que a democracia está recuando em todo o mundo. Países como a Venezuela, Tailândia, Turquia, Hungria, Polônia, Bielorrússia, e a própria Rússia, que concedeu a Vladimir Putin mais 15 anos de governo sem eleições, exemplificam como o poder autoritário pode germinar, crescer e vicejar a partir do terreno democrático.

Outro cenário bastante preocupante é o excesso de polarização, fenômeno que compromete de sobremaneira uma democracia. Em uma sociedade concentrada em dois lados radicalizados, adversários são vistos como inimigos e o diálogo não é incentivado. Quem procura se manter fora desses dois grupos, apresentando outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambos os lados têm suas falhas e virtudes, é tratado como alienado e qualquer alternativa ou oposição a esses grupos acabam sendo violentamente combatidas e inviabilizadas. Este cenário distancia a sociedade dos princípios que fundamentam o jogo político.

A conquista de uma democracia plena é um processo construtivo longo e contínuo. Winston Churchill já dizia que “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.

Assim, uma democracia pressupõe tolerância, igualdade e liberdade, sinônimos de pluralismo, compromisso com políticas públicas inclusivas e socialmente adequadas. Requer vigilância e combate incessante ao autoritarismo, ao radicalismo, ao populismo, à corrupção, ao retrocesso e à desinformação. Deve ser construída a cada dia, superando cada novo obstáculo que restrinja ou se contraponha aos direitos e garantias individuais.

Notas____________________________

1 DEMOCRACIA, Faro Jurídico. Instituto Nacional Electoral. INE e IIJ-UNAM. Faro Democrático. https://farodemocratico.juridicas.unam.mx/que-es-la-democracia/

2 Idem.

3 BOBBIO, Norberto. “Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos”. Ed. Campus, p. 427.

4 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. “Como as Democracias morrem”. Ed Zahar.