Cultura da litigiosidade – Um problema social ou institucional

3 de agosto de 2020

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Os Magistrados, Ministro Luis Felipe Salomão (STJ) e os juízes Daniel Carnio (juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo) e Valter Shuenquener (Juiz Federal) em recente artigo publicado nesta Revista e reproduzido em diversas mídias, levantaram debate relevantíssimo sob o título: É preciso achatar a curva de crescimento das ações judiciais no Brasil. No texto, fazem um estudo sobre o volume de processos que chegarão aos Tribunais para serem apreciados, principalmente em razão das consequências geradas pela COVID-19 na sociedade.

Esta especial situação provocará na economia uma série de conflitos gerados pelas medidas de restrição, que irão afetar agressivamente a relação, principalmente, das empresas com a sociedade, como: rompimento de contratos bancários; inadimplência de faturas de serviços públicos tais como telefonia, eletricidade, fornecimento de gás; impostos não recolhidos; dentre outros temas relacionados a cancelamento de pacotes turísticos, litígios com planos de saúde, insolvência generalizada de muitas pequenas e médias empresas, que por sua vez vão atingir direitos trabalhistas, inadimplementos contratuais dos mais diversos como para com fornecedores, locações, taxas condominiais, direito de família, responsabilidade civil das mais diversas; entre inúmeros outros conflitos sociais, que serão juridicizados. A previsão deste crescimento no número de litígios recomenda ao Poder Judiciário precaver-se dos efeitos desse descompasso social, pois se nada for feito, haverá uma elevação vertiginosa na curva do gráfico de ações judiciais distribuídas pelo país.

Quanto a este tema, o Professor Doutor Vicente de Paulo Barretto nos orientou em recente tese de doutorado na Universidade Estácio de Sá sobre a questão da epistemologia da explosão de litigiosidade na justiça brasileira, cuja pesquisa contou com observações relacionadas aos relatórios Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nesta esteira é inegável que é preciso pensar no futuro da sociedade litigante que nos transformamos e na avalanche de processos que está por vir. nos Tribunais, no entanto, remanesce um significativo passivo de processos que hoje já estão tramitando nos Tribunais. Sob este aspecto estes relatórios do CNJ, desenvolvidos desde 2003, são uma importante iniciativa para a definição de políticas públicas judiciárias no Brasil, visibilizando estatisticamente a máquina burocrática judiciária, divulgando número de processos em tramitação, recursos financeiros disponíveis para execução dos seus serviços; número de magistrados e servidores e a produtividade judicial (número de sentenças/baixas de processos). As informações e dados do Relatório quantitativo do CNJ, especialmente com a organização do 1º Seminário Justiça em Números (Brasília – 2012) abriu as informações para a sociedade em geral. Todavia, os relatórios ganharam relevância qualitativa através da leitura analítica do cruzamento dos dados lineares recentes, permitindo mostrar um Poder Judiciário mergulhado não apenas em conflitos interindividuais, mas também, em algumas das mais complexas situações da vida jurídica brasileira, e em relevo estão as questões consumeristas. Todos estes aspectos do Judiciário brasileiro também foram objeto de análise realizada no IUPERJ, pesquisa que contou com a orientação do Professor Doutor Aurélio Wander Bastos, havendo gerado o livro Crise Social e Poder Judiciário (2015) que aprofunda a discussão sobre o assunto dos Relatórios.

Continuamos estudando os números macros do relatório Justiça em Números, e com base nas informações de 2019 (dados de 2018) em relação a todos os Tribunais do país, as análises demonstram o cenário preocupante em que estamos inseridos. Segundo o Relatório, tramitaram no Poder Judiciário brasileiro mais de 106 milhões de processos (consistindo este total, na soma dos processos pendentes, que lá estavam, mais os casos novos que entraram para processamento), sendo importante mencionar que 77% foram de competência da Justiça Estadual (JE); outros 14%, da Justiça Federal (JF); 8%, da Justiça do Trabalho (JT); e, finalmente, uma quantidade ínfima, 1%, nos demais tribunais (não estão relacionados dados do Supremo Tribunal Federal (STF) e tão pouco dos Conselhos). Por óbvio que, apesar de não se tratar de que a metade dos brasileiros estaria litigando na justiça, cada dois com um processo, este é um dado que pode caracterizar a alta litigiosidade no país.

Na Figura 1, demonstramos uma dimensão visual destes números, para uma análise que exorta diferenças importantes a serem confrontadas mais adiante quando, pois antes de pensarmos em achatar a curva de processos futuros, devemos elaborar uma estratégia para esse gigantesco número de processos já em tramitação.

Figura 1 – CNJ – Justiça em Números 2019
(Pendentes + Casos Novos no Poder Judiciário)
TOTAL 2018 = 106.743.996

Fonte: Adaptado de Justiça em Números 2019

Outros dados reveladores se referem à movimentação processual relacionada aos casos pendentes de julgamento e aos casos novos, que formam o número total de conflitos, levados para os Tribunais, na forma de processos, em tramitação em um determinado ano (número total este que inclui os Recursos as instâncias superiores), quando comparado a capacidade dos tribunais de julgá-los, ou seja, de finalmente dar baixa por entrega da jurisdição (ou não). Neste sentido, a Figura 2 demonstra a movimentação de processos ao longo dos anos de 2009 até 2018, cujos dados permitem comparação destas séries históricas para estes anos.

Figura 2 – Histórico do crescimento total de processos

Fonte: Adaptado de Justiça em Números 2019

Neste panorama histórico numérico da Figura 2 podemos perceber a situação crescente dos conflitos levados aos tribunais. Verificamos que o número de processos pendentes, que vieram do ano anterior (e em muitos casos de anos e anos anteriores) vão aumentando o acervo do ano seguinte, ao passo que também há um número crescente de novos casos que chegaram aos tribunais. Percebe-se, ainda, que os processos que foram baixados, em certa medida até conseguem anular matematicamente a entrada de novos casos, no entanto, isso não modifica a quantidade de conflitos que ainda permanecem, numericamente, praticamente no mesmo patamar, para serem pacificados. Todo este cenário vai demandar do Poder Judiciário muita atenção e propositividade, pois a sociedade, que vem sufocada em seus direitos fundamentais já a algum tempo, privada de suas necessidades básicas, atolada em conflitos interpessoais levados para sua última instância de esperança de vê-los resolvidos nos tribunais, terá que enfrentar agora uma situação sem precedentes neste século, nem mesmo as condições sanitárias da gripe espanhola, SARS, ebola, H1N1 (entre outros) se comparam aos prejuízos que a COVID-19 trará para os dias atuais.

No Brasil, este fenômeno da litigiosidade assume uma dimensão maior em virtude de a Constituição brasileira cuidar de uma impressionante quantidade de matérias. Enfim, incluir um tema na Constituição significa, de certa forma, retirá-lo da política legal que deveria reger a sociedade, trazendo-o para o direito, permitindo, então, a judicialização. Entretanto, o que está por de trás desse comportamento é o fato de que nele reside uma forma sistemática de pensar e agir, fomentada pela dificuldade de se lidar com os problemas de forma racional, propositiva e consensual. Após a primeira divulgação pública (2012) destes estudos quantitativos do CNJ, foram geradas extensas especulações em torno de que a sociedade era a culpada pela explosão de litigiosidade que assoberba os Tribunais. Mas uma apreciação crítica, qualiquantitativa, dos relatórios do CNJ pode apontar quadro diverso desta percepção de que a sociedade é a grande demandante, é preciso separar cidadãos e instituições para realizar esta observação.

Este aspecto pode ser observado nas revelações do estudo do Departamento de Pesquisas Jurídicas do CNJ (DPJ), Os 100 Maiores Litigantes do País, 2011. A análise aponta quem eram (e ainda o são conforme o último relatório Justiça em Números, de 2019) os maiores litigantes a nível nacional, indicando os participantes (seja no polo ativo ou passivo) nos processos que tramitam no Judiciário brasileiro. É de se ressaltar, ainda, que o CNJ não atualizou este estudo de 2011 para os dias de hoje, mas o cruzamento de informações com o Justiça em Números dos anos seguintes não aponta modificação expressiva e a quantidade de conflitos levados para pacificação segue seu ritmo crescente. Devemos, então, apreciar os números macros para uma análise qualiquantitativa desta cultura de litigância, conforme recomendou o próprio Conselho Nacional de Justiça no Relatório Anual do Judiciário de 2011, p. 50: O súbito aumento na demanda por serviços judiciais até 2009, em função dos fenômenos da democratização e garantias de direitos no Brasil, não contou com adequado aparelhamento da estrutura para sua oferta. Gerou-se uma situação de significativo congestionamento e de elevada morosidade na prestação dos serviços judiciais. Em razão dessa realidade, faz-se necessário não somente analisar os aspectos relativos à estrutura dos órgãos judiciários e de como processam os litígios e os administram, mas também questionar como as demandas judiciais se formam e se desenvolvem até se consolidarem, sobretudo as demandas massivas.

Dados extraídos destas estatísticas, efetivamente, nos ajudam a revelar como os processos se formam e se desenvolvem, sobretudo as demandas massivas. Iniciando com um análise macro, em primeiro lugar o DPJ indica como maior litigante nacional o setor público federal, envolvido em 38% dos processos; em seguida os bancos participando de 38% das lides; o setor público estadual ocupa o terceiro lugar, com 8% de processos; as empresas de telefonia litigando em 6% dos conflitos; o setor público municipal em 5% das ações; e outros litigantes (que não tem nenhum dos “atores” anteriormente citados) figuram como autor ou réu em 5% da demandas. A figura 3 representa graficamente esta distribuição, e a partir deles faremos outros desdobramentos analíticos importantes.

Figura 3: Maiores litigantes da justiça brasileira

Fonte: Adaptado da Pesquisa Maiores Litigantes do País 2011

Sobre estes números, o DPJ informa, ainda, que do total, participavam do polo ativo, ou seja, como autores das ações, o setor público federal (33%); bancos (45%); setor público estadual (28%); empresas de telefonia (22%); setor público municipal (97%); e outros litigantes (49%). Podemos ver esta distribuição na figura 4, abaixo.

Figura 4: Maiores litigantes da justiça brasileira no polo ativo

Fonte: Adaptado da Pesquisa Maiores Litigantes do País 2011

Aprofundando a apreciação dos dados, sabemos, também, por estas pesquisas que, do total das ações a nível nacional, entre processos pendentes de julgamento e casos novos, 33% são execuções fiscais. A números de hoje é possível apurar no relatório Justiça em Números 2019 (p. 128) que este percentual baixou para 32,1%, mas as cifras numéricas absolutas ainda apontam números elevadíssimos, onde tramitam hoje mais de 34,2 milhões de processos discutindo a cobrança de tributos. Se analisarmos somente o estoque (casos pendentes de solução) para a Justiça Estadual, este percentual é ainda maior, os indicadores do relatórios do CNJ demonstraram que 43% dos processos da competência Estadual são de execuções fiscais no 1º grau, evidenciando o estudo que os grandes litigantes são o Estado e o Município, que tem a iniciativa da ação, e não o cidadão, que aparece como réu. Este percentual torna-se mais grave no Rio de Janeiro, pois do total de processos sobre os diversos tipos de conflito em andamento, 62% são execuções fiscais, e em São Paulo 52%. Verifica-se finalmente que o que contribui para emperrar a máquina judiciária estadual é o próprio Poder Público. Esta hipótese final se confirma também na Justiça Federal, onde 39% do total de processos também são execuções fiscais, mantendo-se a mesma linha dos Estados e Municípios. Esses dados permitem mostrar que, o litigante cidadão comum (seja pessoa física ou até mesmo outros empresários, que não os listados acima como maiores litigantes) não é(são) exatamente aquele(s) que congestiona(m) o funcionamento dos Tribunais do país, ou é(são) o(s) responsável(eis) pela explosão da litigância, mas sim, o Poder Executivo em todos os seus níveis, cobrando impostos.

A análise destes dados, a luz do que recomenda o Relatório Anual do Judiciário de 2011, p. 50, sugere que existem diversos tipos de litigantes, cada um com sua estratégia e seu objeto e/ou negócio litigioso, senão, vejamos. Os dados da pesquisa dos 100 maiores litigantes nos tribunais brasileiros surpreendem quando observamos que, dos dez maiores litigantes no país, seis integram a Administração Pública na seguinte ordem no ranking, do 1º ao 6º lugar em quantidade de conflitos judiciais, quais sejam: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (22,3%), Caixa Econômica Federal – CEF (8,5%), Fazenda Nacional (7,4%), União (6,9%), Banco do Brasil S/A. (4,2%), Estado do Rio Grande do Sul (4,2%). Em dados mais detalhados no relatório, surge a informação que, de todos os processos em curso no Judiciário nacional, a Administração Pública (Federal, Estadual e Municipal) é parte em 53,7%, seja como autora ou ré (CNJ, 2011, 100 maiores litigantes, p. 5). As outras posições para os dez maiores litigantes são ocupadas pelo setor privado, em especial os Bancos e o negócio de Telefonia participam das ações ajuizadas sendo autor ou réu, do 7º ao 10º lugar respectivamente, o Banco Bradesco S/A (3,8%), Banco Itaú S/A (3,4%), Brasil Telecom Celular S/A (3,2%) e Banco Finasa S/A (2,1%). Somados, estes litigantes compostos pelo Setor Público em todas as suas esferas, Bancos e Telefonia, representam juntos 95% do total de processos atribuídos aos 100 maiores litigantes nacionais. De acordo com a pesquisa do DPJ-CNJ, concluiu-se, ainda, que do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais, este grupo está no polo ativo em 41% dos processos, sendo discrepante somente o comportamento do Setor Público Municipal, uma vez que ele é autor em 97% dos processos, cobrando em especial tributos.

Finalmente, apartados estes aspectos quanto aos grandes litigantes, extrai-se da Figura 3, acima, que o que poderíamos chamar de ‘a sociedade comum’, ou seja, aquela que não está demandando nos conflitos jurídicos com estes grandes litigantes, afinal, aquelas discussões entre locador e locatário, alimentado e alimentante, discussões de direito de vizinhança, conflitos de trânsito, órfãos e sucessões, consumidores de outros serviços (não bancário ou de telefonia) etc., ocupam apenas 5% dos processos em tramitação. Estes desajustes sociais que provocam conflitos relacionais envolvidos nestes 5% dos “outros” processos, talvez, sejam os mais sensíveis para a ordem social, pois refletem diretamente as mazelas da sociedade, os problemas cotidianos da ordem das comunidades.

Neste contexto, observados todos estes dados detalhadamente, percebe-se que apesar da relevância da busca por estratégias para achatar a curva de crescimento das ações judiciais prevista para desaguarem no Poder Judiciário no Brasil, durante e principalmente no pós-pandemia, é preciso tratar a litigiosidade excessiva já existente, concentrada boa parte dela em pouquíssimos atores sociais. Há que considerar o levantamento de hipóteses relacionadas ao que está por detrás destas análises, como recomenda o próprio CNJ. Podemos verificar que há uso do Judiciário massivamente por dois grandes litigantes do setor privado, os bancos (38%) e as empresas de telefonia (6%), ou seja, quase 47 milhões de processos tem estes “membros” da sociedade. Como sabemos, estas empresas baseiam suas atividades no modelo de negócio que traz à cena uma forma de gerir recursos humanos e financeiros nas estruturas organizacionais das empresas. Essa gestão se compõe por uma série de exigências, fundamentadas pelos gestores como “exigências de um mercado cada vez mais competitivo”, representada no quotidiano por uma maior pressão por metas e cobranças personificadas em resultados quantitativos crescentes, sempre com o objetivo da lucratividade. É nesse ambiente, marcado por pressões pelo desempenho lucrativo que se engendram estes litigantes, que transferiram para os tribunais a solução dos conflitos entre eles, consumidor e fornecedor e/ou prestador de serviços.

Não existe nos estudos jurídicos brasileiros qualquer investigação específica que balize ou que se proponha a tratar este fenômeno do litigante da seara do direito do consumidor, e a própria doutrina e jurisprudência têm tratado o assunto com bastante timidez com relação ao gigantesco acervo de processos concentrados nestas instituições privadas. O próprio Ministro Luiz Felipe Salomão em diversos pronunciamentos anteriores já descortinava que todos estão acomodados, as empresas estão acomodadas, os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça. Percebe-se que para as empresas é muito mais rentável pagar uma condenação ínfima do que investir na melhoria da prestação de serviço. Onde as indenizações de pequeno valor acabam incentivando a má prestação de serviço, porque a condenação não repara o dano causado aos usuários dos serviços de bancos e de telefonia, e tampouco compele a empresa a não praticar atos de cunho mercadológico/financeiro.

Neste sentido, apesar de genuinamente empírico, vamos dialogar novamente com os números. No exemplo a seguir exploramos os dados dos 100 maiores litigantes no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). A pesquisa demonstra que no ano de 2018 a principal empresa de telefonia do Estado de São Paulo, a Telecomunicação São Paulo S/A (TELEFÔNICA) liderava o ranking das instituições mais processadas, e esteve envolvida em 54.547 processos, aparecendo como demandada em 53.824, e como autora do processo na diferença 723 processos. Em seguida, basta uma pesquisa no próprio site do TJSP no link <https://esaj.tjsp.jus.br/cjpg/>, utilizando-se do motivo de pesquisa com as palavras “cobrança indevida” para encontrar que do total de processos cerca de 14.760 tinham o pretexto (cobrança indevida) como assunto do conflito entre o usuário e a Telefônica. Estes dados nos levam a concluir que há algo que precisa ser feito para este excesso de processos concentrado nestes dois seguimentos do mercado. Este tipo de comportamento da empresa de telefonia, envolvida repetitivamente em cobranças indevidas, que também reflete o comportamento dos bancos, na maioria das vezes processados por cobrar por serviços não contratados e/ou não prestados, permite-nos, então, os questionamentos do tipo, onde está o equívoco na prestação de serviços? Por que existem tantas cobranças indevidas? Por que hodiernamente vemos advogados entrando com ações que contém o mesmo objeto, tal como – repetição de indébito cumulado com dano moral – ? Será que se trata somente de uma ‘falha do sistema’, como costumam alegar os advogados das empresas em suas contestações aos processos? Ou será que há um problema de comportamento mercadológico, de objetivo de negócio, que tem por trás as metas de vendas de serviços? É preciso recordar que por de trás de todo lançamento de uma rubrica de serviço em uma fatura de cobrança de serviços de telefonia, ou de um contrato de empréstimo consignado não solicitado que aparece de hora para outra na conta corrente de uma pessoa, sempre há um ser humano que fez aquele lançamento, apesar de a “inteligência artificial” ser uma realidade. Então, este pretexto de que foi um erro do sistema não pode sustentar-se em nome de uma classificação de que foi uma “mera falha no serviço”. No exemplo explorado dos números da empresa de telefonia, assim como os bancos, estes são os clássicos modelos de empresas privadas que se pautam na forma de gerir recursos humanos e financeiros na sua estrutura organizacional com objetivos puramente mercadológicos, o que provoca a avalanche de processos para contestar a imposição de produtos e serviços não contratados.

Dito isso, encaminhando para a conclusão, ficamos com as certezas expostas a respeito de que a Administração Pública (Federal, Estadual e Municipal) segundo o relatório DPJ-CNJ de 2011, é o maior litigante do país, sendo parte em 53,7% dos processos em andamento nos tribunais brasileiros, seja como autora ou ré. Em seguida, feitas as considerações acima, vislumbramos que a relação de consumo é outro tema considerado entre os grandes responsáveis por abarrotar o Judiciário de conflitos judiciais, onde 44% dos processos tem dois seguimentos de mercado envolvidos (financeiro e de telecomunicações). Nestas exaustivas revelações dos dados numéricos do CNJ e de todas as pesquisas paralelas existentes, podemos inferir que um sistema jurídico moderno e igualitário não pode impermeabilizar-se ou desvincular-se da realidade sobre a qual operam todos estes fenômenos litigiosos ora apresentados. Debruçar-se mais sobre estas investigações somente descortinará que os tribunais têm de atuar ativamente para garantir a ordem. Fica óbvio que há uma cultura do conflito e da litigância, mas também fica claro que os tribunais estão sendo constrangidos, na maior parte de seu tempo, como serviço de atendimento ao consumidor das grandes instituições privadas, e que estão sendo chamados a dirimir os conflitos entre o cidadão e a administração pública, cobrando uma inadimplência de tributos que não são devolvidos na forma de serviços públicos. Sendo, assim, o fomento da prática demandista inconsequente, sem limites, em nome de uma não interferência na economia e desenvolvimento do mercado, de um contraditório processual sem limites, de uma atuação do Poder Judiciário dependente da provocação pelo processo, cria uma distorção social e dificulta a adoção de uma cultura de paz e ordem.

Parece inegável que o Brasil atravessa uma enorme crise de suas instituições, sejam públicas ou privadas, associada a uma crise de valores. Vivemos hoje uma enorme descrença no direito, em todas as classes sociais. Em todos os segmentos se nota de forma clara que não se acredita que o direito possa vir a cumprir, minimamente, o que boa parte da sociedade espera e deseja. As cidades tornaram-se cada vez mais perigosas. O sistema de bem-estar social está em sérias dificuldades, suscetível a regulamentações inexequíveis, sempre apoiadas na tal reserva do mínimo possível por parte da Administração Pública. Há uma violação crônica do direito em várias vertentes, especialmente nas questões tributárias por parte dos mais abastados e também das empresas, o que não é diferente para os pobres e a classe média. O próprio governo, da União até os Municípios, são flagrados em ilegalidades, abusos, omissões e corrupção, como nos novos escândalos que vem à tona com a compra de respiradores superfaturados e/ou nem mesmo entregues, para o combate a COVID-19. Neste contexto há uma percebida ineficiência dos Tribunais pela sociedade em razão das dificuldades enfrentadas para se chegar a soluções rápidas e eficientes para os conflitos, o que cria no imaginário social a visão de que o direito não serve para nada, de que estruturas jurídicas são dispensáveis e que o cumprimento da lei e a observância dos ditames legais não são algo a ser devidamente observados.

Portanto, o direito deve ser utilizado como instrumento de pacificação, e deve ser respeitado por todos, assim, devemos romper com esta tradição que somente permite a atuação do Judiciário por provocação, pois esta regra não se aplica mais a sociedade moderna em que vivemos. Em nossa observação, é o que pretende o CNJ, com as políticas preventivas dos litígios gerados pela COVID-19, buscando disponibilizar para a sociedade ferramentas para tratar os conflitos judiciais que estão por vir. Nesta linha, a superação da crise que hoje já vivenciamos exige que estas discussões sejam fomentadas, que reflexões profundas sejam realizadas, que possamos avaliar o papel da sociedade, das empresas, e das instituições jurídicas na devida aplicação da garantia da ordem, como sugere o magnífico artigo citado no início destas análises.

Enfim, é preciso achatar a curva de crescimento das ações judiciais que desbordarão em um avalanche sem histórico no país, provocadas pelas medidas de combate a esta nova doença, para prevenir o futuro colapso do Poder Judiciário, mas, também, é preciso preparar estas abordagens propositivas para tratar rapidamente o excesso de litigiosidade do passado e do presente, conforme exposto nas linhas anteriores, conflitos estes que se acumulam nos tribunais sem uma solução que seja efetivada em tempo, recriando no imaginário da sociedade a expectativa de que o direito serve e que estruturas jurídicas são indispensáveis para a sobrevivência da própria sociedade.