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Dependência de Drogas como forma de inadaptação social

5 de junho de 2000

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O  comportamento de desvio, que é espécie da inadaptação social, deve ser analisado sob uma ótica abrangente, que englobe desde os seus influxos etiológicos até à natureza mesma do seu exercitamento. Esse modo anômalo de proceder que, em linguagem organicista é denominada patológico, encontra no campo das drogas, correspondências causais diversificadas. A curiosidade, a influência do grupo com o consectário da sua aceitação social, a disponibilidade, a inadequação da auto-imagem ou as distorções da personalidade, constituem fatores isolados ou interagidos por contingências econômico-sociais, culturais ou emocionais podem acionar a deflagração da conduta desviante.

Todavia, é preciso notar que, nem todo comportamento de desvio é violador da norma penal. Os juristas, criminólogos e sociólogos divergem hoje sobre a validade dos enfoques da ética social e da moral sexual. Em relação ao primeiro estariam contemplados, por exemplo, o uso próprio de drogas, o aborto e os jogos de azar. No segundo apareceriam homossexualismo, a prostituição e o adultério.

Para alguns, a própria dinâmica das mutações sociais explicaria a descriminalização de fatos tipificados penalmente que não mais afetariam o senso moral do homomedius, enquanto práticas sexuais, até então rejeitadas pela sociedade, haveriam de ser inscritas no âmbito da normalidade. Há, contudo, flagrante equívoco dos protagonistas de ambas as correntes que buscam, sem nenhum respaldo documental, da investigação empírica, traduzir os recônditos do inconsciente coletivo.

Na verdade exercitam petição de princípio, uma vez que, antecipadamente, dão por demonstrado, exatamente, o que pretendem demonstrar. De início cumpre conceituar o normal. Para Roger Bastide, in “Sociologia das Doenças Mentais”, o conceito de normal é variante do conceito de bom: “Uma ação normal é uma ação aprovada pela coletividade, em acordo com o ideal de grupo”. De seu turno, Emile Durkheim no seu “As regras do método sociológico”, chama de normais os fatos que apresentam as formas mais gerais, e dá aos outros os nomes mórbidos ou patológicos: “um fato social é normal para um tipo social determinado, numa fase determinada do seu desenvolvimento, quando se produz na média da sociedade desta espécie, considerada na fase correspondente de sua evolução”. Assim, o tipo normal se confunde com o tipo médio, e todo desvio com relação a este padrão de “saúde” é um fenômeno mórbido.

Ora, ainda que se possa admitir em relação ao homossexualismo, à prostituição e o adultério, certa tolerância social no sentido de não estigmatizar os agentes, não se pode concluir que as reivindicações da sociedade sejam, neste momento, as de defender a prática de tais atos. Mas, isso tem conexões de natureza literária e psicossociais que não caberiam discutir no âmbito desta abordagem. Onde, entretanto, propugnadores da descriminalização do aborto, dos jogos de azar e do uso de drogas claudicam, mais expressivamente, é na defesa de uma ética social autônoma, fantasma se si mesma, porque desnutrida da tutela jurídica que protege os bens fundamentais da coletividade que deve reger. Como reconhecer ética uma sociedade com o direito à prática do aborto se a sua consciência média não aceita a eliminação de uma vida humana? Como pregar a interrupção da vida de um nascituro inocente, se essa mesma sociedade repudia a pena de morte para criminosos? A contradição é exuberante.

Por outro lado, a aleatoriedade nos jogos de azar tem aniquilado vidas e caracteres, desestabilizando as estruturas familiares dos que se lançam à busca do dinheiro fácil. E, aí está o núcleo do problema. A assertiva de que só joga quem quer é um sofisma, máxime em se tratando de jovens, que sempre hão de querer experimentar para, afinal, sucumbir diante da vida. Contudo, o malefício maior, oriundo dessa atividade marginal, está na substituição da consciência do dever pela inconsciência do risco, o que interfere diretamente na formação cívica do indivíduo.Quanto ao uso de drogas, a pregação do seu descartamento dos estatutos penais está embasado no desconhecimento científico e na abstração do aspecto teleológico do direito. Os mais recentes estudos a respeito do fenômeno das drogas, mostram claramente os danos físicos e mentais que acarretam, desde a ação sobre o testosterona, com diminuição dos espermatozóides ou a redução do sistema imunológico, produzidos pela maconha, às repercussões causadas pela cocaína ou, ainda, os acessos de loucura transitória induzidos pelo LSD, ou a angustiada dependência física provocada pelos opiáceos, degenerativa do corpo e do caráter moral dos usuários. A ignorância da realidade científica vem sempre associada à incompreensão do direito. Na medida em que sustentam a liberação das drogas, utilizam-se de imagem vazia de conteúdo jurídico. Dizem que o crime previsto na legislação penal é contra a saúde pública e, destarte, o usuário do tóxico estaria, tão somente, atentando contra a sua própria saúde. Como se vê, o enfoque é falso pela simples razão de que se a norma jurídico-penal tem como objetivo da sua tutela a saúde coletiva, obviamente não podem ser excluídas as saúdes individuais cujo somatório constitui exatamente a saúde pública. O curioso é que, os que assim se posicionam concordam com a punição para o traficante, o que, afinal, significa considerável paradoxo. Quer dizer, o passador das drogas deve ser punido, mas se consegue iludir as autoridades, e as distribui aos jovens, esses não devem ser obstaculizados na utilização dos tóxicos cuja continuidade os tornará dependentes e, em seguida, traficantes, como acontece, pela necessidade de manter o vício. Em suma, a esdrúxula tese apóia a repressão ao tráfico, mas incentiva a formação de novos traficantes, com total desprezo pela saúde da juventude, ao que a ordem jurídica não deve ficar indiferente.

Os desvios de conduta têm sido bastante analisados sob ângulos diversos, principalmente nos estudos desenvolvidos sobre a denominada sociologia da delinqüência. Emile Durkheim, fez talvez, o primeiro esforço no sentido de isolar teoricamente os fatos individuais dos fatos coletivos que estariam situados fora e acima da consciência individual. Para Robert Merton, o comportamento desviante pode ser considerado, sociologicamente, como um sistema de dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas e as vias socialmente estruturadas para realizar essas aspirações. Daí a sua tipologia de modos de adaptação individual, que ao traduzirem conformidade, inovação, ritualismo, retraimento, abandono ou rebelião, são, na verdade, resultantes de uma gama diversificada de fatores situacionais. Já a denominada Escola Criminológica de Chicago, através de importantes trabalhos de Edwin Sutherland e Albert Cohen, centraliza a sua análise nas subculturas, e nos subgrupos que as materializam.

E aqui poderíamos identificar na subcultura do abandono, dentro de tipologia de Merton, o uso de drogas. Mas a preocupação de Cohen está na distribuição social das subculturas e que tem para ele, três características: não é utilitária, é maliciosa e é negativa, enquanto a teoria da associação diferencial explica que a conduta criminal é produto de aprendizado, e que alguém se torna delinqüente em razão de um excesso de associação de modos de conduta criminosa em relação com os modos não criminosos, o que significa dizer que a delinqüência é um modo de conduta comunitária como o gosto por certos alimentos, dialetos ou crenças religiosas. De seu turno, Richard Cloward e Lloyd Ohlin, numa tentativa de harmonização das teorias de estrutura social e anomia de Robert Merton e da associação diferencial do Professor Sutherland, procuram caracterizar o comportamento e a psicologia das subculturas, formulando a sua teoria da oportunidade diferencial.

Afirmam, então, que “a disparidade entre os jovens da classe baixa são induzidos a querer e o que, efetivamente é oferecido aos mesmos, constitui a fonte de um problema grave de adaptação. Sugerimos que os adolescentes que constituem as subculturas delinqüentes internalizaram uma ênfase sobre objetivos societários. Ao encontrar limitações nos caminhos legítimos para conseguir esses objetivos, e incapazes de limitar suas aspirações, sofrem frustrações intensas: o resultado é a exploração das alternativas”.

Como se depreende das diferenciadas colocações dos especialistas sobre a sociologia da delinqüência, o universo dos comportamentos de desvio permite-nos uma visão panorâmica da própria anomia, que é de sua característica. Destarte, o enfoque acerca dessa realidade fenomênica há de ser objetivo, no sentido da conclusão de que as explicações sociológicas estão a justificar a preocupação com o desenvolvimento de um trabalho preventivo, fundamentado em princípios éticos e religiosos que, de sua vez, possam respaldar um compromisso educacional não contingenciado, exclusivamente, por parâmetros de educação formal, mas abrangente das atividades comunitárias em seu mais amplo espectro. Entendemos que as anomias inerentes às subculturas podem ser suscetíveis de reversão, na medida em que se lograr retificar a sua dinâmica através de ações culturais específicas de prevenção que, pela conscientização gradativa, possa modificar as expectativas subgrupais.