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Desapropriação judicial no código civil: aspecto da função social da propriedade

5 de junho de 2005

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1. Introdução

Objeto de muitos questionamentos e meditações, a nova figura jurídica introduzida nos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228, do recente Código Civil, faz gerar a todo estudioso, de uma maneira ou de outra, algum sobressalto.

Certo é que, com o novo texto codificado, passamos a adotar uma extravagante modalidade de perda da propriedade imóvel: a desapropriação judicial; muito embora não a encontremos entre aquelas elencadas no art. 1.275 (alienação, renúncia, abandono, perecimento da coisa). Este dispositivo, entretanto, ao regrar as espécies legais ensejadoras da perda da propriedade imóvel, é receptivo e aberto o suficiente para admitir outras causas, além daquelas já prescritas no texto codificado.

Cuida-se, assim, de uma classificação inovadora da posse, fundada na função social da propriedade, propiciando especial proteção à posse-trabalho, isto é, o efetivo reconhecimento judicial da existência de obras ou serviços produtivos verificados[1]. Não se pode negar, pois, que a figura jurídica, ora em estudo, é verdadeiramente audaz e inovadora[2]. Há quem critique veementemente este novo instituto, apontando seu caráter injusto em relação ao originário titular[3].

2.  Função social da posse e da propriedade.

Dificuldade a ser enfrentada neste tema, como seria previsível, diz respeito ao reconhecimento judicial da verdadeira função social que esta posse poderia engendrar. Com efeito, ao criterioso juiz competirá a verificação circunstanciada acerca do aspecto social que fundamenta a posse em questão – alegada como matéria de defesa – com base na existência concreta do caráter produtivo da ocupação, traduzida esta pelo aproveitamento real do imóvel, seja a título de edificação de moradias, seja de exploração das riquezas naturais do solo.

A interpretação jurídica, pois, da função social da posse, exercida por um “considerado números de pessoas”, assim descrito no § 4º, do art. 1.228 do novo Código, tem precedente obrigatório na própria função social que a propriedade hoje representa, em sua acepção constitucional.[4]

O direito à propriedade privada se fez constar nas diversas constituições republicanas, como fundamento da ordem econômica, tendo a Constituição de 1967, pela primeira vez, inserido em seu texto a expressão “função social” da propriedade, seguida pela atual Carta de 1988, que, diferentemente do texto anterior, a fez inserir no Capítulo concernente aos direitos e garantias individuais, onde se lê, no inciso XXIII, do art. 5º: “a propriedade atenderá a sua função social”. No mesmo plano, o direito individual de propriedade continua consagrado no inciso imediatamente anterior: “é garantido o direito de propriedade”.

A compreensão da intitulada “função social” traduz-se, em verdade, mais como um exercício normal do uso da propriedade, no cumprimento do fim a que se destina – visando a produção e não a especulação – do que como uma mera limitação ao direito de seu titular[5].

Nossa Carta Política exprime a propriedade privada como um dos alicerces fundamentais da ordem econômica (art. 170, II), como reprodução exata do modelo político adotado, sem descuidar, entretanto, de sua função social (art. 170, III).

O direito constitucional não nega, assim, o direito exclusivo do dono sobre a coisa, mas condena a utilização do bem de maneira puramente egoística, sem levar em conta o interesse alheio e o da sociedade.[6]

3. Distinção entre desapropriação e o novo instituto.

A verdadeira diferenciação entre o histórico instituto da desapropriação e a nova figura do Código Civil reside no fato de que, naquela primeira espécie de expropriação – fulcrada na necessidade ou utilidade pública ou interesse social – é o Poder Público quem demonstra interesse no bem, e o faz por meio de decreto ou lei (fase declaratória), assim como paga a indenização, em títulos da dívida agrária, após a expedição do competente decreto, diferentemente da segunda hipótese, quando o mencionado interesse social é suscitado pelos próprios possuidores, responsáveis, também, pelo pagamento da indenização[7].

Trata-se, como visto, de espécie sui generis de desapropriação, tendo como base não somente o prévio interesse social, mas, também, a existência de uma posse anterior, não muito prolongada – na verdade, de lapso qüinqüenal – que deverá ser alegada como matéria de defesa. É possível se identificar, talvez, uma espécie de desapropriação híbrida, com elementos típicos de usucapião, em razão do prévio exercício da posse como elemento intrínseco.

O requisito da boa-fé, encartado no § 4º, do art. 1.228 do CC, é um outro elemento que deve ser observado na desapropriação judicial; vale dizer, cuida-se da posição psicológica do possuidor no momento da aquisição da posse. Com efeito, se conhecia algum vício ou obstáculo que impedisse a aquisição da coisa, sua posse estará viciada (art. 1.210).

4. A sentença que determina a desapropriação.

Com efeito, para que se viabilize a desapropriação judicial, ora estudada, é necessário que a sentença julgue procedente o pedido reivindicatório. Com efeito, o proprietário, vencedor da demanda, não receberá de volta o bem de raiz, mas sim o justo preço do imóvel, sendo as benfeitorias, entretanto, resultado do trabalho alheio[8].

Isto implica dizer que a sentença proferida no pleito petitório, diferentemente do que possa parecer, acaba por acatar o pedido do reivindicante, reconhecendo, preliminarmente, sua relação jurídica com o bem, na condição de verdadeiro titular do domínio, mas não lhe outorgando a posse direta, como corolário do pedido. Diversamente, converte a entrega do bem em justa indenização. Assim, a condenação direcionada aos réus, aqui, não mais se prende à real entrega do bem ao titular, mas ao pagamento de uma indenização àquele. Persiste, pois, a natureza condenatória da sentença.

Poder-se-ia afirmar que a sentença, in casu, reconhece, indubitavelmente, a existência da relação jurídica entre do titular do domínio e o bem, mas, de igual forma, reconhece a posse de boa-fé dos demandados. É com base nesta equação que o comando da sentença converte a entrega do bem em indenização, e somente nesta circunstância específica.

O contrário não poderia suceder, isto é, a sentença não poderia rechaçar o pedido do autor, pois, se assim ocorresse, ficaria este absolutamente despido de qualquer outro instrumento jurídico a lhe propiciar, futuramente, a entrega da posse direta. Estaria, nesta hipótese, operada a exceção da coisa julgada, a impedir a rediscussão da respectiva sentença (art. 467, CPC).

5. A fixação da justa indenização na sentença.

A sentença de procedência do pedido – que converte a entrega do bem em justa indenização – entretanto, só se tornará exeqüível com o pagamento do preço, sendo sua condicionante. Este preço é pago pelos possuidores-demandados, à luz do já citado Enunciado 84 do CEJ, posto não se tratar de desapropriação de iniciativa do poder público (§ 3º, art. 1.228).

Neste vértice, é de todo esperado que o magistrado institua, na sua decisão, um prazo determinado para o pagamento da respectiva indenização, sob o risco de se tornar uma demanda infinda, impedindo o titular do domínio de receber o preço justo pelo bem perdido, e também a posse direta, derivada do direito de propriedade.

A fixação deste prazo, contemplado em recente Enunciado[9] do CEJ, tem como justificativa o fato de que a nova situação jurídica, surgida em decorrência da sentença de procedência do pedido, não poderá perpetuar-se no tempo, sob pena de o proprietário se ver despojado, indefinidamente, da posse direta do bem.

Até o advento desta condição, pois, permanece a titularidade do domínio em mãos do autor da ação petitória, considerando que o comando da sentença é no sentido de converter a imissão da posse em justa indenização. Antes da entrega do preço, pois, a sentença não será considerada título válido para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

Destarte, caso não seja realizada a mencionada indenização pelos possuidores, no lapso de tempo fixado pelo juiz na sentença, deverá o autor da demanda ser imitido, definitivamente, na posse do bem.

Com esse entendimento, estarão assegurados os ditames da justiça social, consagrados, de um lado, no princípio da propriedade privada e, de outro, no da função social da propriedade, ambos previstos dos incisos XXII e XXIII, respectivamente, do art. 5º da Carta da República.

 

NOTAS ______________________________________________________________

[1] Ibid., mesma página.

[2] Silvio Rodrigues, Direito Civil. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 5, p. 108.

[3] Segundo Washington de Barros Monteiro (obra atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf), as regras contidas nos §§ 4º e 5º abalam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade mediante uma indenização nem sempre justa. In Curso de Direito Civil. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86.

[4] Lembra Gustavo Tepedino que, na sociedade liberal do século XIX, a função social da propriedade constituiu-se num verdadeiro instrumento de afirmação da inteligência e da liberdade humana, onde o homem livre – sujeito de direito do Estado Liberal – era livre para contratar e adquirir propriedades, apoderando-se das riquezas com a exclusão dos demais sujeitos de direito. (Aspectos da Propriedade Privada na Ordem Constitucional, in Estudos Jurídicos, do Instituto de Estudos Jurídicos, RJ, 1991, coord. James Tubenchlak e Ricardo Bustamente).

[5] José Acir Lessa Giordani. Propriedade Imóvel: seu conceito, sua garantia e sua função social na nova ordem constitucional. Revista dos Tribunais, 1991, vol. 669.

[6] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 353. Para este consagrado autor, nosso legislador constituinte aproximou-se da concepção tomista, no sentido de que o proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora não pertençam a todos. Ob. cit., mesma página.

[7] A I Jornada de Direito Civil do CEJ – Centro de Estudos Judiciários – do Conselho da Justiça Federal,  aprovou o Enunciado de nº 84, de autoria do magistrado federal Erik F. Gramstrup, que prescreve: “A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização”.

[8] Maria Helena Diniz, ob.cit., p.178.

[9] É o teor do Enunciado aprovado na III Jornada de Direito Civil do CEJ: “A eficácia da sentença de procedência do pedido em ação reivindicatória, que opera a transferência da propriedade para o nome dos possuidores, com fundamento no interesse social, é condicionada ao pagamento da respectiva indenização, cujo prazo será fixado pelo juiz”.