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Diálogo para lidar com as complexidades de saúde suplementar e seguros

2 de janeiro de 2024

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Da esquerda para a direita: Tiago Salles (Presidente do Instituto JC), Paulo Rebello (ANS), Glauce Carvalhal (CNSeg), os ministros do STJ Antonio Carlos Ferreira, João Otávio de Noronha e Villas Bôas Cueva, Dyogo Oliveira (CNSeg) e o ministro Antonio Saldanha Palheiro (STJ)

Ministros de tribunais superiores, especialistas e dirigentes de companhias de seguros, saúde suplementar, previdência e capitalização, se reuniram para um dia intenso de debates no 6º Seminário Jurídico de Seguros, realizado em Brasília (DF) em 30 de novembro. Promovido pela Revista Justiça & Cidadania em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o seminário contou novamente com o apoio da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg).

Escolhido para sediar esta edição do evento, o auditório do Conselho da Justiça Federal (CJF) foi iluminado com painéis em uma estrutura futurista e moderna para tratar dos temas mais relevantes do setor. Diálogo foi a palavra-chave do evento. Ao longo de quatro painéis, estiveram em pauta a complexidade das questões judiciais na saúde suplementar, a regulação da atividade seguradora e o mercado ilegal da proteção veicular, o seguro-garantia e o seguro de vida.

Coordenador acadêmico do seminário e integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ),  o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou o evento como uma oportunidade de “sair dos gabinetes, dialogar, conhecer as pessoas e aprender como funciona o processo regulatório, como ele tem-se transformado com o tempo, qual a lógica que preside essa atividade regulatória”.  “Isso é fundamental para que todos possam julgar com serenidade e realmente conhecendo em profundidade os temas que são levados a julgamento”, afirmou.

“Já é habitual, na análise dos casos complexos levados ao Judiciário, a ideia de que um magistrado deve, ao analisar uma relação complexa como a de seguros ou a de planos de saúde, em primeiro lugar estudar a lei e, em segundo, estudar a regulação, porque, obviamente, é disso que se trata: uma relação complexa que sofre não só a intervenção de normas legais, mas de normas regulamentares que vão sendo editadas com o tempo e vão moldando aquela relação contratual”, comentou Cueva na mesa de abertura, que também foi composta pelo Ministro do STJ Antonio Carlos Ferreira.

“Encaramos esses eventos como uma oportunidade para construir juntos um futuro que desejamos, tratarmos das questões que já chegaram ou que ainda estão a caminho e para aprofundarmos as reflexões propositivas que favoreçam a retomada do desenvolvimento socioeconômico do país e que nos deem esperança de dias melhores”, complementou o presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Tiago Santos Salles.

Cenário futuro – O presidente da Confederação Nacional das Seguradoras, Dyogo Oliveira, sublinhou o aspecto socioeconômico do seguro e apontou a contribuição efetiva do setor na economia no país. Ponderou, porém, que ainda é preciso “alcançar um futuro com maior qualidade de vida e estabilidade”. Até 2030, o plano de desenvolvimento do mercado de seguros pretende aumentar em 20% a população coberta.

O horizonte também traz transformações significativas na via legislativa, comentou a Diretora Jurídica da CNSeg, Glauce Carvalhal. Dentre as mudanças citadas por ela está a revisão do Código Civil, coordenada pelo Ministro Luis Felipe Salomão; o marco legal da inteligência artificial, coordenado pelo Ministro Villas Bôas Cueva; e o PLC 29/2017, projeto de lei que pretende criar um marco legal de seguros.

Questões judiciais complexas – Um dos temas de maior apelo no seminário foi a saúde suplementar – atividade que reúne  operadoras, profissionais e beneficiários – que atende milhões de pessoas. Ao mesmo tempo em que está sob foco, o setor procura alternativas para lidar com um tripé cada vez mais preocupante: o aumento de custos, a incorporação acelerada de novas tecnologias e a judicialização constante. 

Os desafios e soluções foram tratados no primeiro painel, mediado pelo Ministro do STJ João Otávio de Noronha com a participação do Ministro Antônio Saldanha Palheiro. Também participaram da mesa o presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello; o vice-presidente da Rede D’Or, Pablo Meneses; a diretora executiva da FenaSaúde, Vera Valente; a diretora de economia da saúde do Hospital Israelita Albert Einstein, Vanessa Teich; e a presidente do Instituto Brasileiro de Atuária, Raquel Marimon. 

Em sua palestra, o Ministro Saldanha apresentou uma análise aprofundada sobre os dados da judicialização da saúde suplementar, desde os temas judicializados com frequência no STJ até as políticas restritivas das administradoras e a questão de fraudes. Para o magistrado, o estímulo à judicialização é fruto de uma equação desajustada, envolvendo diversos atores da área, de modo que a expectativa é que o número de processos judiciais sobre saúde suplementar continue crescendo nos próximos anos.

De acordo com Saldanha, alguns fatores corroboram com isso, dentre eles: a complexidade da regulamentação da saúde suplementar; a crescente demanda por serviços dessa área, em especial com o envelhecimento da população; e o aumento do acesso à Justiça, dado o fortalecimento das Defensorias Públicas, a expansão dos Juizados Especiais e a facilitação do peticionamento com a virtualização.

Em rápida intervenção, o Ministro João Otávio de Noronha complementou: “O Judiciário tem de ajudar e atuar quando demandado. Tem de ser forte no combate à fraude para que não aumente o custo e, consequentemente, possam ser inseridos mais cidadãos com custo mais barato no sistema da saúde”. 

Saúde bipartite – No sistema privado de saúde, estima-se que os planos de assistência médica já ultrapassam 50 milhões de beneficiários, enquanto os planos exclusivamente odontológicos chegam a ter 31,9 milhões de beneficiários. São cerca de 680 operadoras de planos médicos e 300 operadoras de planos odontológicos. Os dados foram apresentados pelo presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello, dando a dimensão da complexidade de trabalhar com a regulamentação de maneira uniforme em todo o país. 

“82% das operadoras de plano de saúde são pequenas, com até 20 mil vidas, e que muitas vezes não estão nos grandes centros, mas sim longe e com todas as dificuldades em termos de um país de dimensões continentais, com cinco regiões, cada um com suas características distintas. A regulação, quando é aprovada, vale para toda a população, todos esses beneficiários de plano de saúde”, comentou Rebello sobre as dificuldades na área.

Risco de colapso – Diretora executiva da FenaSaúde, Vera Valente abordou o cenário atual das operadoras e chamou a atenção para a questão orçamentária. “As operadoras recebem os recursos dos beneficiários e irrigam toda a cadeia privada de saúde. 83% da receita dos hospitais privados vem das operadoras. [Representa] 88% das receitas dos laboratórios. Ou seja, sem operadora não existe saúde privada no Brasil”, afirmou. 

O sistema, no entanto, está correndo o risco real de colapsar, segundo Valente.
“Só em 2022 foram realizados 1,8 bilhões de procedimentos, com quase 11 bilhões de prejuízos operacionais. E quase 90% de sinistralidade”, destacou a especialista. Para ela, a judicialização é um dos maiores desafios do setor e a busca por soluções deve passar por “discussões econômicas, técnicas e éticas” para enfrentar problemas como a advocacia predatória e o uso inadequado da máquina judiciária.

 

Em sua participação, o vice-presidente da Rede D’Or, Pablo Meneses, abordou a preocupação com a judicialização do acesso às novas terapias de alto custo e o impacto nos sistemas público e privado. “Todos nós queremos que existam tratamentos e terapias e incorporações novas que possam ajudar na saúde de cada cidadão, isso é inegável. Contudo, precisamos ter algumas situações analisadas. Queremos o equilíbrio do sistema, que parte da justeza do custo. Mais do que isso, a análise do custo e do benefício. Para ter acesso a um bem de consumo, é preciso analisar o que lhe traz de retorno”, afirmou, citando como exemplo o remédio Zolgensma.

Conhecido como o “remédio mais caro do mundo”, custando cerca de R$ 6 milhões, o medicamento é usado para tratamento da atrofia muscular espinhal (AME) do tipo I em bebês de até seis meses de idade. Em fevereiro de 2023, foi incluído na cobertura dos planos de saúde por decisão da ANS, mas segue alvo de críticas, especialmente, em razão do deferimento de liminares fora da diretriz de utilização, o alto custo e as condições de incorporação gravosas para as operadoras de saúde.

Seguro-garantia – O segundo painel debateu o tema do seguro-garantia, instrumento de garantia para débitos tributários e não tributários. Presidido pelo Ministro do STJ Antonio Carlos Ferreira, a mesa contou com as apresentações do Ministro do STJ Ribeiro Dantas, do presidente da Junto Seguros, Roque de Holanda, e do advogado tributarista Ricardo Soriano de Alencar.

Experiente na área e ex-Procurador-Geral da Fazenda Nacional, Ricardo Soriano retomou o histórico do seguro-garantia e afirmou que o Brasil demorou para avançar no tema quando comparado com outros países, haja vista que apenas na década de 1960 houve o decreto-lei manifestando sobre essa possibilidade. “Fomos muito lentos no sentido de tentar preservar o poder público em face das obrigações que os particulares possam ter com o poder público. Se demoramos para prever a possibilidade de seguro-garantia no âmbito das contratações públicas ou nas relações públicas, especificamente a possibilidade de utilização nas discussões judiciais demorou ainda mais”, declarou. A primeira norma data de 2003.

Legislação e portarias – O Código de Processo Civil de 2015 tratou da ordem preferencial de bens e a substituição da penhora. Passou a equiparar a fiança bancária e o seguro-garantia judicial ao dinheiro (artigo 835, parágrafo 2º). No entanto, algumas portarias da PGFN dispõem de modalidades em formas diferentes, especialmente quanto ao momento do acionamento do seguro-garantia e o trânsito em julgado, questão que impacta o momento em que a Fazenda Pública pode exigir a liquidação dessas garantias.

De acordo com Roque de Holanda, “o mercado entende que deve haver uma equiparação jurídica ampla entre o instituto do seguro garantia judicial e do dinheiro para todos os efeitos, não apenas para se recepcionar a garantia como forma de caução idônea, mas também para permitir a sua execução somente após o trânsito em julgado e permitindo que essa forma de garantia suspenda a exigibilidade, especialmente de créditos não tributários”.

Processualista, o Ministro Ribeiro Dantas defendeu que não é possível que o juiz se guie por portarias. “A legislação está acima normativamente das portarias. O cipoal normativo infralegal é tão espesso que desorienta até o próprio Estado. Quantas vezes não vemos a Receita Federal em um caminho e a Procuradoria da Fazenda Nacional em outro um pouco diferente”, ponderou o Ministro. Dantas afirmou ser importante observar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tribunal encarregado pela Constituição de harmonizar a interpretação da legislação federal, e apresentou alguns julgados sobre a matéria. 

Uma das definições do STJ é a de que “a execução da garantia em sede de execução fiscal fica condicionada ao trânsito em julgado da decisão dos embargos a teor do artigo 32, parágrafo 2º da Lei de Execução Fiscal”. O precedente foi formado em agravo interno no Aresp 1.646.379 de relatoria do Ministro Herman Benjamin, julgado em outubro de 2020, na Segunda Turma. Segundo o Ministro Ribeiro Dantas, a Primeira Seção da corte pacificou que tanto a fiança bancária quanto o seguro-garantia estão ligados ao trânsito em julgado. 

Regulação das seguradoras – O terceiro painel, sobre a regulação das seguradoras e o mercado ilegal da proteção veicular, foi presidido pelo Ministro do STJ Paulo Dias de Moura Ribeiro e contou com a palestra de Gurgel de Faria. Também integraram a mesa o coordenador de Fiscalização de Conduta de Seguros Massificados, Pessoas e Previdência da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Gabriel Melo Costa, e o gerente do Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) de Minas Gerais, Gilberto Dias.

Em sua palestra, o Ministro Gurgel de Faria abordou a importância da regulação dos setores financeiro e securitário. Relembrando da crise financeira nos Estados Unidos, durante o ano de 2008, o magistrado comentou os mecanismos adotados pelo Brasil, leis e normas, que barraram os impactos negativos da crise no país.  

Representante da Susep, Gabriel Melo Costa explicou as ações do órgão para traçar as políticas e exercer a fiscalização do mercado de seguros, ante à atuação das associações de proteção veicular. “Há normas estabelecendo os tipos de ativos que podem ser constituídos pelas empresas. Há exigência de capital mínimo e exigência de limites operacionais, então a seguradora não pode aceitar riscos indefinidamente, sem qualquer controle”, comentou sobre os instrumentos de mitigação de risco para buscar o interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro.

Gilberto Dias, por sua vez, apresentou o cenário dos consumidores, considerados a parte mais frágil da relação, e chamou a atenção para a dificuldade em impedir a proliferação de associações ilegais com características semelhantes às das seguradoras. O especialista defende que a “informação é sagrada” para o consumidor, que precisa saber previamente das cláusulas contratuais, por exemplo, antes de tomar uma decisão ou contratar um serviço. 

Seguro de vida – O quarto painel tratou do seguro de vida, a partir de reflexões jurídico-econômicas. Presidida pelo Ministro Raul Araújo,  a mesa contou com as análises do Ministro Villas Bôas Cueva, do diretor jurídico e de compliance da Zurich no Brasil, Washington Silva, e da diretora de riscos e controles internos da CNP Seguros Holding Brasil, Letícia Doherty.

Presidente da Quarta Turma do STJ, especializada em matéria de Direito Privado, o Ministro Raul Araújo comentou rapidamente sobre as ações que chegam ao tribunal para discutir o seguro de vida, como é o caso da regra do artigo 798 do Código Civil, que trata do suicídio no interregno. 

O Ministro Villas Bôas Cueva também mostrou um panorama de casos e soluções adotadas pelo tribunal, como na questão do dever de informação nos seguros coletivos de vida entre estipulante e segurados e seguradora – que era objeto de controvérsia, mas foi superado com o julgamento em sede de Recurso Repetitivo. Para o magistrado, é visível o cuidado no diálogo (para melhor resolução dos conflitos) e “no enfrentamento das normas regulamentares, como uma maneira de entender de forma mais profunda e adequada a relação contratual e não apenas a norma legal”. 

Em suas palestras, Doherty e Washington Silva abordaram os principais aspectos para o bom gerenciamento de uma carteira de seguros, comparando com outros países e destacando o cenário do prêmio de seguro de vida e de reenquadramento etário e, ainda, a importância de corretores de seguros bem treinados. 

Encerramento – O Corregedor Nacional de Justiça e Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, falou no encerramento do seminário sobre o histórico do contrato de seguro, que é dos mais antigos (e modernos) institutos do Direito Civil “com a característica de ser aquele contrato que garante o empreendedorismo, as inovações, dando respaldo para que se possa desenvolver atividades econômicas”. 

O Ministro comentou sobre os avanços e mudanças na sociedade diante das revoluções da tecnologia e da comunicação. Explicou também os estudos que vêm sendo feitos pela comissão de juristas no Senado, presidida por ele, e destinada à revisão e atualização do Código Civil. “Vivemos tempos da internet das coisas, da proteção de dados, do Direito Digital. Migramos os direitos fundamentais previstos nas Constituições para os direitos fundamentais no modo digital. Saímos da era analógica e estamos na transição para a era digital. É evidente que esse código que regula toda a vida em sociedade, que é o estatuto da cidadania, que é o Código Civil, precisa estar em linha com os avanços e com as evoluções que a sociedade apresenta”, defendeu o Ministro, que preside o Conselho Editorial da Revista JC.