Direito à morte digna: um debate necessário sobre o fim da vida

10 de setembro de 2013

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Um relatório divulgado recentemente pelo jornal francês Le Monde afirma que 56% dos franceses desejam “melhor assistência médica para morrer” e que é preciso abrir vias legais para tanto. A notícia é extremamente oportuna para o debate do “direito à morte digna”, tanto em seu viés teórico quanto o de aplicação e instrumentalização. Além disso, percebe-se que o número de países europeus com legislação concernente ao direito à morte digna vem aumentando: Bélgica, Suíça e Holanda são pioneiros e mais inovadores, como veremos adiante, mas França, Espanha e Portugal já vão também estabelecendo seus parâmetros para a regulação deste (relativamente) novo direito.

Afinal, existe um direito à morte digna? Por que o debate é novo? Algo que se revela intrigante sobre esta questão é que o direito à vida sempre existiu, ainda que não fosse positivado ou respeitado, e só se foi falar sobre um “direito à morte digna” recentemente. Ora, se “morte” e “vida” são indissociáveis; melhor, se a “morte” é um fato intrínseco à “vida”, como se pode falar em uma vida digna sem que haja uma morte digna? A vida deve ser digna do começo ao fim.

Embora a discussão seja nova no campo do Direito, pode-se dizer que há alguns consensos entre os que debatem o tema, sobretudo entre os que são favoráveis a um direito à morte. Primeiro, o fato de que este direito nasceu a partir de avanços médicos e tecnológicos que, se, por um lado, salvaram as vidas de muitas pessoas, por outro, puseram o “morrer” em uma situação delicada.

Ninguém deixa de morrer. Com os avanços da medicina, as pessoas passaram a demorar mais para morrer: o homem passou a se ver definhando em uma cama de hospital, em uma despedida lenta da família e da vida, em uma convivência desagradável com o abismo, sem que pudesse enfim morrer. Para muitos, tal situação ofendia a dignidade. Neste contexto, surgiu, então, o direito de decidir o próprio fim, se o fim é iminente.

Em seguida ao nascimento deste direito à morte, vai havendo o ocaso de alguns entendimentos jurídicos que, até então, eram absolutos. O direito à vida, tido como um direito indisponível e absoluto, do qual o indivíduo não podia sequer pensar em dispor, vai sendo relativizado. E aí aparece o segundo grande consenso entre os estudiosos do tema: o princípio da dignidade da pessoa humana como autonomia e fundamento jurídico-filosófico do direito à morte digna. O Estado não pode falar de um “direito à vida” absoluto se este “direito” torna-se “dever” a uma vida indigna. Não se pode, sob as vestes de um direito indisponível, impor ao homem uma morte humilhante. O homem, em respeito à sua dignidade, deve poder escolher o momento de findar a sua existência, caso esta se encontre indubitavelmente sofrível.

Em seu Tratado de Direito Civil Português, o nobre professor Menezes Cordeiro comenta que a vida, ainda que terminal e infeliz, vale à pena ser vivida. Este é um entendimento que, ainda que respeitado e majoritário, pertence a outro momento da história humana, um momento em que os intelectuais do século XX, nascidos em um contexto de guerra ou pós-guerra, não admitiam que a vida não tivesse um valor absoluto. No contexto dos dias atuais, a vida passa a ter um valor relativo e individualizado, em respeito à dignidade humana.

A propósito, cabe aqui uma ressalva de que, havendo um direito à morte digna, o titular deste é o homem – e somente o homem. Ao Estado incumbe apenas promover o respeito a esse direito e à autonomia da pessoa em decidir se, na antecâmara da morte, adentra por fim a sala da inexistência ou não.

Feita uma breve abordagem do tema, nomeadamente aos calafrios dogmáticos que ele causa, é de se dizer em que a revelação da vontade dos franceses soma ao debate em tela. Percebo três questões.

A primeira, ligeiramente superficial, diz respeito à terminologia do tema. Direito à morte, direito de morrer, suicídio assistido, eutanásia ativa etc.: estes são alguns dos termos usados na discussão que ora abordamos, e são termos muitos fortes que, em verdade, não exprimem bem o conteúdo do assunto. Na França, como se pode assinalar pela reportagem mencionada, o tema é abordado com outras palavras: fim da vida. Vêm os termos “fim da vida com dignidade”, “assistência médica para o fim da vida”, evitar a “perspectiva de viver até o fim da vida insuportável”, e eles trazem – com a finesse francesa – uma sensibilidade muito maior ao tema.

A escolha destes termos mais sutis e sensíveis nos parece apropriada, porque expressões como “dignidade no fim da vida” dizem muito mais ao leitor atencioso do que simplesmente “morte digna”. A “morte digna” pode até nos remeter até a um conceito medieval de suicídio para preservar a honra, enquanto que “dignidade no fim da vida” traz a ideia de que a vida, por si só, possui um fim – e já que todos nós caminhamos para este fim, que o façamos com um mínimo de dignidade. A mídia e o governo franceses foram, portanto, especialmente sensíveis e humanos ao tratar do tema.

Não se trata de eliminar pacientes terminais, deficientes ou algo semelhante; não se trata de um manejo espartano de vidas e pessoas. Trata-se de observar a dignidade daqueles que estão definhando, em processo de degradação e com a morte certa e próxima, e dar-lhes o mínimo de autonomia para encerrar a vida como melhor lhes parecer, evitando a cruel e lenta agonia em uma cama de hospital.

O segundo aspecto digno de nota já fora até supramencionado: é na Europa que surge e cresce esta mudança de paradigma em relação ao fim da vida. Com uma população menor e mais desenvolvida social e economicamente, é natural que o início da problematização tenha se dado lá e também nos Estados Unidos. Todavia, parece ser um debate que chegará com força na América Latina, cedo ou tarde; ainda que tenhamos algumas resoluções do Conselho Federal de Medicina e até projetos de lei sobre o assunto, não aparenta ser algo que toca e sensibiliza a população.

Diz-se isto porque a análise populacional da América Latina denota uma população em média bem mais jovem do que a da Europa. Logo, pode-se supor que as polêmicas do fim da vida sejam mais recorrentes em países de população mais idosa, nomeadamente os europeus, e não exerçam tanto impacto sobre uma população eminentemente jovem. É necessário dizer, contudo, que o crescimento econômico na América Latina tem trazido o envelhecimento da população, que dará mais nitidez às questões do fim da vida perante a sociedade.

O mais importante, no entanto, é atentarmos para a maneira como o tema é tratado nestes países: na França, o relatório do governo sobre o tema conta com pareceres médicos, jurídicos e filosóficos, e tanto na França quanto em Portugal, por exemplo, houve uma intensa realização de audiências públicas para esgotar os debates. O exemplo que fica é claro: a polêmica deve ser debatida, estando ou não o país preparado ou ansioso pela regulação do direito em questão.

Por último e especialmente relevante, a doutrina deve se debruçar sobre a garantia e instrumentalização do direito ao fim da vida digno, mesmo porque a operacionalização deste direito é uma das grandes críticas dos que a ele são contrários. Há muito tempo se discute um “direito à morte”, mas estamos longe de uma pacificação doutrinária ou até mesmo de um entendimento dele como um direito fundamental. Contudo, se vemos no horizonte da dignidade a alvorada de um novo direito, é certo que a ele se sobrevirá uma instrumentalização e um sistema de aplicação.

Neste sentido, devemos nos atentar ao direito comparado e iniciar os estudos para entender a melhor forma de efetivar o direito à escolha por um fim de vida digno. Devemos nos espelhar no living will americano? No testamento vital português, ainda por nascer? Na figura do “procurador para cuidados de saúde”? Como vamos, no Brasil, proceder à maior assistência ao fim da vida?

Estes questionamentos são tão importantes quanto os que levam à existência do direito material à morte digna, pois as respostas para estas perguntas farão com que este direito não seja uma mera formalidade ou fantasia da doutrina. Se surge um direito à morte (ou direito a um fim da vida digno, como já falamos), surge um dever análogo do Estado de prover os instrumentos necessários e justos para a concretização e efetivação deste direito.