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É ela…

10 de novembro de 2016

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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O mais apropriado seria ocupar o espaço inteiro desta Revista para registrar a estatura de u’a Mulher tão intensa, seja pelas qualidades morais como intelectuais.

Desde menina – tinha apenas 10 anos – seus pais antevendo as manifestações de sua inteligência e preocupados com a sua educação – a encaminharam a um Colégio de Freiras (internato), onde aprendeu a disciplina que desenvolveu e aprimorou ao longo da vida. Desse modo, não tendo empregada doméstica, prepara o seu próprio almoço frugal e o jantar, composto apenas de chá com torradas e iogurte.

Eu a conheci por volta de 1981, no ambiente da Secional da Ordem dos Advogados de Minas Gerais, onde se destacava por sua competência profissional. Graduada pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, da qual se tornou Professora, mais tarde obteve o diploma de Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais e também de Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo.

É autora de várias obras de Direito Constitucional, das quais tenho três que são da minha predileção: “O Princípio Constitucional da Igualdade”, “Constituição e Constitucionalidade” e “Princípios Constitucionais da Administração Pública”.

Por todas essas razões, não me causou a menor surpresa vê-la escolhida, merecidamente, para o honroso cargo de Ministra do Supremo Tribunal Federal, em 2006, após um longo convívio com o Direito Constitucional e o exercício das altas funções de Procuradora Geral do seu Estado.

Após ela ter enfrentado o desafio da responsabilidade de ter presidido, em ano eleitoral, a primeira eleição em que a Lei da Ficha Limpa foi aplicada e ter declarado que ”ninguém tolera mais a corrupção”, agora terá ela, pela frente, a missão de presidir a mais Alta Corte do País, porque, na atualidade, a política deixou de ser uma atividade movida exclusivamente pelo mérito, pois com ele se entrelaçam desejos circunstanciais que não se coadunam com a cidadania. Os tentáculos da corrupção atingiram os três Poderes, fazendo com que alguns de seus integrantes, como noticia a imprensa, sejam convivas do triste banquete da dilapidação do erário.

O político militante deve ser uma pessoa sem ganâncias, ricamente provida de valores morais e espirituais, imune às pressões de interesses particulares contrariados, ou às pressões de grupos insensíveis ao interesse público.

Por outro lado, ao longo das últimas décadas, em que pese a existência de um grande número de partidos, uns sem maior projeção eleitoral, nenhum deles primou por ter definido o seu conteúdo de classe. A verdade é que ao ser realizado um exame mais acurado, nota-se que dão eles a ideia de terem sido formados para representar os interesses especiais dos respectivos grupos, considerada a possibilidade de proporcionar melhor rentabilidade aos interesses e ambições pessoais de seus integrantes, desprezando o legítimo conteúdo ideológico que deveriam ter. Os princípios gerais dos seus programas raramente são seguidos ou defendidos por seus membros, limitando-se, de hábito, a cumprirem as exigências da lei eleitoral.

Pois é nesse cenário que essa mineira de Montes Claros – onde nasceu e aprendeu com os pais que na sua casa não eram permitidas três coisas: a mentir, a roubar e ter preguiça – provará ao mundo político que “a democracia brasileira passa pelo povo brasileiro, e somos privilegiados por fazer garantir esse direito”, para usar as suas próprias palavras.

Essa é ela. Seu nome: Carmen Lúcia Antunes Rocha.

 

Ministra Cármem Lúcia: discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal

“Quase quarenta anos da minha vida profissional, de peleja constante no direito, instrumento de pacificação social, pergunto-me hoje se será a Justiça, ela mesma, um direito, Direito é o produto de valores culturais. Mas não tenho notícia de um ser humano que não aspira à Justiça. Ou uma ideia de Justiça. Como se ela fosse não um dado cultural, que pode acontecer ou não numa sociedade, mas um sentimento. Se, no verso de Cecília Meireles, a liberdade é um sonho, que o mundo inteiro alimenta, parece-me ser a Justiça um sentimento, que a humanidade inteira acalenta. Isso explica cedermos nós humanos espaços de liberdade para servos e vivermos com o outro na crença sentida, até ao mais incréu dos homens, de que com os outros, se alcança relação de Justiça. Não há prévia nem permanente definição do justo para todos os povos, em todos os tempos e em todo lugar. Mas há o credo da Justiça, sem pré definição, necessária apenas por acreditarmos não ser possível vivermos sem Justiça. É ela que permite supor que a dor de viver é superável pela suavidade do justo conviver.

É o juiz o depositário desta fé, garantidor da satisfação desse sentimento. Com homens lidamos nós, os juízes. O homem é a nossa matéria, sua vida, sua morte, seus sonhos, suas dores, suas alegrias e dissabores. A este dever nunca faltará o verdadeiro juiz, muito menos o juiz brasileiro, menos ainda este Supremo Tribunal, que atuará com rigor e respeito à Constituição e a todos os valores que predominam e que forjaram este ordenamento hoje em vigor.

Não entendi, dez anos atrás, aqui chegando, fala a mim dirigida de que, juíza, iria sofrer o cargo, não fruir a função. Tinha razão José Aparecido de Oliveira quando me lançou esse alerta.

Guardar e fazer garantir a satisfação do sentimento de Justiça de cada um e de todos os brasileiros como juíza constitucional é tarefa tão grata quanto difícil. É compromisso que não tem fim. Compromisso, reconheça-se, nem sempre bem sucedido. Quase nunca bem entendido. É apenas compromisso imprescindível como forma única de superação da barbárie.

E há de se reconhecer que o cidadão não há de estar satisfeito, hoje, com o Poder Judiciário. O juiz também não está. Para que o Judiciário nacional atenda – como há de atender – a legítima expectativa do brasileiro não basta mais uma vez reformá-lo. Faz-se urgente transformá-lo. Tarefa ingente e necessária, para ser levada a efeito com o esforço de toda a comunidade jurídica e com a compreensão de toda a sociedade do que se está a propor e a praticar.

Talvez estejamos vivendo tempos mais difíceis que experiências históricas anteriores. Talvez porque também talvez cada geração tenha a ilusão e um pouco de soberba de achar que o seu é o maior desafio. Apenas por ser o seu e ter de ser resolvido com o empenho que cada situação impõe. Mas é certo que se modificaram, na raiz, os paradigmas antes adotados. Exauriram-se os modelos estatais e sociais antes aproveitados. O sonho de ser feliz e de viver numa sociedade justa é o mesmo, o de sempre: o que e como ser feliz e qual o modelo de sociedade justa, não é o mesmo de sempre.

Caetanos e não caetanos deste Brasil tão plural concluem em uníssono: alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. O que nos cumpre, a nós servidores públicos em especial, é questionar e achar resposta: de qual ordem tudo está fora…

Nosso olhar recai hoje sobre realidades inéditas. E até a capacidade de ver a si e ao outro não é mais tão fácil. Olhos vidrados, virtuais, nem sempre virtuosos em ver o igual em sua diferença piscam sem reter o antes visto.

Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta. A busca pela Justiça – como seja o ideal consensualizado – põe-se como bússola a impor que se persista na tentativa de se alcançar alguma calmaria.

Porque a busca pela Justiça é atemporal, mas o pensar o que e como a Justiça é engajada. Cada povo tem o seu ideal do justo. O que todos os povos de todos os tempos têm em comum é a inaceitação do injusto. Nosso tempo é de maior cuidado, prudência para saber ouvir e entender e coragem para enfrentar o que precisa ser mudado, a despeito de interesses superados ou desconexos com as demandas sociais legítimas.

Há uma boa nova a chamar a atenção do juiz. A luta pela Justiça hoje é mais firme, fruto, no caso brasileiro, talvez da experiência democrática que experimentamos desde a década de 80. Mais especificamente desde o início da vigência da Constituição de 1988.

Mas, em parte, por isso mesmo, é de inegável gravidade e de difícil solução rápida o julgamento, em prazo razoável, de processos multiplicados, chegantes, no Brasil, à centena de milhões. Costurados em modelos artesanais, conflitos produzidos em escala industrial e de solução cada vez mais urgente não têm julgamento fácil de ser produzido em tempo curto, como exige o cidadão e há de aprender a fazer o Judiciário.

Justiça é o sentimento de que tem fome o ser humano porque sem ela a dignidade humana é retórica. Sem Justiça sobra a força de uma pessoa sobre a outra; a violência pessoal, que não respeita o que de humano distingue o homem de outras espécies. E como repito tanto, fome dói. Nosso encargo e compromisso é supri-la.

Riobaldo afirmava que “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”. Mas parece-me que natureza da gente não se aguenta em tantas incertezas. Especialmente quando o incerto é a Justiça que se pede e que se espera do Estado. Esse só existe e se justifica para garantir a efetividade do justo, como concebido e plasmado no ordenamento jurídico.

Sei que este Supremo Tribunal Federal, de história proba e republicana, há de ser honrado pelos que ocupam, hoje, as cadeiras deste Colegiado, não se deixando ser refém de especiais dificuldades momentâneas que vão de conceitos a serem recriados até modelos e práticas inovadoras. A transformação há de ser concebida em benefício exclusivamente do jurisdicionado, que não tem porque suportar ou tolerar o que não estamos sendo capazes de garantir.

Em tempos cujo nome é tumulto escrito em pedra, como diria Drummond, os desafios são maiores. Ser difícil não significa ser impossível. De resto, não acho que para o ser humano exista, na vida, o impossível. Impossível é apenas o caminho novo que, por covardia ou indolência, não se é capaz de buscar para se realizar o que precisa ser feito. Para o juiz, impossível é não pensar que ele existe só e só para o jurisdicionado, o qual acredita, espera e tem direito seja julgado o que acredita ser seu direito. A jurisdição é serviço público essencial, sem o que a ideia mesma da Justiça no Estado de Direito não tem como prosperar.

Entregar ao cidadão brasileiro o seu direito não é gesto automático de uma Administração que não sente nem sabe o homem cuja vida e seus interesses escrevem-se nos autos do processo. Entregar ao cidadão brasileiro o seu direito não é gesto automático de uma Administração que não sente nem sabe o homem cuja vida e seus interesses escrevem-se nos autos do processo. Entregar ao cidadão brasileiro o seu direito é compromisso com o ato de justiça, nossa obrigação e nossa responsabilidade.

O que o Judiciário não deu certo – e, reconheça-se, em muito ainda não deu – há que se mudar para fazer acontecer na forma constitucionalmente prevista e socialmente justa. Não procuro discutir problemas. Minha responsabilidade é fazer acontecer as soluções necessárias.

O Judiciário brasileiro reclama mudanças e a cidadania exige satisfação de seus direitos. É tempo de promover as mudanças, diminuindo o tempo de duração dos processos sem perda das garantias do devido processo legal, do amplo direito de defesa, de garantia do contraditório, mas com processos que tenham começo, meio e fim e não se eternizem em prateleiras emboloradas que empoeiram as esperanças de convivência justa.

Insisto: o momento parece-me de travessia, quando atravessamos nós mesmos, refazendo nossas velhas formas descompassadas com este tempo mudado, e nossas próprias trilhas, gastas pelos mesmos passos, que caminham sobre si mesmos, para que nossos pés palmilhem veredas novas em busca dos gostos atuais para os cidadãos de hoje.

Justiça é sentimento a ser respeitado em especial pelo juiz, cujo ofício é garantir que a confiança do ser humano se fortaleça para que a vida com os outros seja mais amena, com respeito a todas as diferenças e a identidade humana que é garantia da igualdade na dignidade. E quem tem a tarefa formal de satisfazer esse sentimento há de levar sua tarefa com o cuidado de quem carrega o sacrário no qual se guarda a fé na Justiça e, mais que tudo, a esperança no justo viver com o outro. E sem esperança, viver é mais que perigoso, é aflitivo.

Dificuldades do atual momento exige mais coragem, que passa a não ser uma qualidade, mas uma imposição. Comprometer-se com o novo ainda não é claro, mas que precisa ser visto para dar ao cidadão o que de que ele precisa – e às vezes de forma que nem ele mesmo sabe ser o melhor e mais necessário – é que conduz a um Judiciário coerente com o que a sociedade exige do Estado-juiz. Há muito e profícuo trabalho a ser feito, em sequência ao que vem sendo realizado pelas gestões que me antecederam. O Supremo Tribunal constrói-se a cada tempo e em sequência que não se altera em seus compromissos republicanos.

Muito foi feito, muito mais há a fazer. Tenho certeza que há empenho, seriedade e honradez que o cargo de juiz exige para sermos capazes de dar cobro à exigência que nos impõe o jurisdicionado.

Esquece-se muito o que dizem as pessoas, especialmente em momentos como este. Mas nunca se deslembra do que se faz, especialmente quando o feito desdobra-se em experiências que melhoram a vida das pessoas. E não digo melhoria da vida sonhada, mas do todo dia, da labuta e da alegria ou agonia diária, num Estado cuja Constituição garante direitos que têm de ser assegurados jurídica e socialmente.

Cumpre-nos dedicar de forma intransigente e integral a dar cobro ao que nos é determinado pela Constituição da República e que de nós é esperado pelo cidadão brasileiro, o qual quer saúde, educação, trabalho, sossego para andar em paz por ruas, estradas do país e trilhas livres para poder sonhar além do mais. Que, como na fala do poeta da música popular brasileira, ninguém quer só comida, quer também diversão e arte.

Cumpre a nós, servidores do povo, devotarmos à causa da Justiça como agentes de transformação das instituições que envelheceram, pois na esteira das mudanças socioeconômicas e tecnológicas que dominam o cenário atual, as estruturas não mais atendem aos fins estabelecidos no art. 3º da Constituição, os quais se mantém atualíssimos, mas que serão honrados com novos instrumentos a serem criados e aplicados.

O tempo é também de esperança. Homens e mulheres estão nas praças pelos seus direitos e pelos seus interesses. Quer-se um Brasil mais justo e é imprescindível que o construamos. Cansamos de ser País de um futuro que não chega nunca. O futuro é hoje e há de ser construído pela união de todos, com direito às diferenças e respeito à identidade de cada um, garantindo-se sempre a igualdade em direitos de todos e para todos.

A ética não está em questão: é dever de todos e de cada, não se transigindo com a sua inobservância. A lei não é aviso, pelo que há de ser cumprida por todos. O Estado é de direito e a democracia é uma construção permanente, responsabilidade de todos, em especial de cada um de nós, servidores públicos. O Brasil é o nosso compromisso: o Brasil de hoje, a Justiça que se quer e se pede hoje, o Brasil que merecemos e pelo qual é nosso dever lutar e fazer acontecer. Afinal, a história de cada povo ele mesmo a constrói.

Este Supremo Tribunal Federal tem sua história feita a partir dos mandamentos constitucionais. Continuará a ser assim. O que se proporá a transformar diz com o aperfeiçoamento dos instrumentos de atuação jurisdicional. E cada proposta será transparente e imediatamente explicitada à sociedade.

Justiça não é milagre, nem jurisdição é mistério. De tudo se dará ciência e transparência.

Sossegue-se o cidadão: o trabalho de entregar a Justiça a quem busque o Judiciário será levado a efeito com a intransigente garantia dos princípios constitucionais, firmados com o objetivo expresso de construirmos uma sociedade livre, justa e solidária. E a garantia de que trabalhamos para termos uma prestação mais rápida, mais eficiente e menos custosa ao cidadão. Os projetos neste sentido serão expostos, breve e pormenorizadamente, aos cidadãos.

Constituição não é utopia, Justiça não é sonho, Cidadania não é aspiração. O Judiciário brasileiro sabe dos seus compromissos e de suas responsabilidades. Em tempo de dores multiplicadas, há que se multiplicarem também as esperanças, à maneira da lição de Paulo Mendes Campos. Afinal, gente só não é capaz de fazer e melhorar o que não tenta. Temos sorte de sabermos que o Brasil que merecemos pode e há de ser construído.

O Judiciário brasileiro não desertará desse seu encargo. A tarefa é dificultosa, sei-o bem. Mas não deixaremos em desalento direito e ética que a Constituição impõe que resguardemos. Porque esse é nosso papel. E porque o Brasil é cada um e de todos nós. O Brasil que queremos seja mesmo pátria mãe gentil para todos os brasileiros.

Muito obrigada!”