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Entrevista com o juiz federal Vladimir Vitovsky Justiça que se faz presente nas comunidades

6 de novembro de 2018

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Criado há seis anos, o CAIJF da 2a Região presta serviço de grande valor para resolver demandas da população antes mesmo que se tornem conflitos judiciais

Desde maio de 2012, o Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF2) mantém o Centro de Atendimento Itinerante da Justiça Federal (CAIJF). Atuando hoje no Complexo do Alemão e em outras comunidades na Zona Norte da capital fluminense, o órgão vem prestando atendimento no sentido de promover acesso à Justiça. Esta ação relevante de cidadania surgiu para atender ao objetivo específico de solucionar a demanda reprimida de judicialização. Hoje, no entanto, sua abrangência é muito mais ampla e seu valor maior é o de contribuir com a paz social, principalmente por meio da conscientização sobre a competência da Justiça Federal e sobre os direitos de cada cidadão.

Supervisionado pelo juiz federal Vladimir Vitovsky, o CAIJF está vinculado ao Núcleo Permanente de Solução de Conflitos da 2a Região (NPSC2), que pertence à estrutura da Presidência do TRF2. Suas atividades compreendem a visita às comunidades e a promoção de encontros com grupos sociais diversos, apresentando a Justiça Federal e oferecendo espaço à apresentação de questões pela sociedade em geral. Este trabalho tem como objetivo maior levar esclarecimento sobre os direitos dos cidadãos, que sejam de competência da Justiça Federal. Com isso, o CAIJF procura estimular a comunidade a desenvolver mecanismos próprios, extrajudiciais e extraprocessuais, de resolução de conflitos, favorecendo a conscientização e a capacidade de buscar melhorias para a comunidade como um todo. Além disso, o trabalho realizado ao longo desses anos contribuiu para formar redes de multiplicadores de conhecimentos, que são integradas por diferentes atores, do Poder Público, da iniciativa privada, de entidades do terceiro setor e de universidades e instituições de ensino.

Nesta entrevista, o juiz federal Vladimir Vitovsky conta como foi o início, a evolução e os projetos atuais do CAIJF, mostrando que mais importante do que resolver pendências judiciais é evitá-las, quando possível, nunca fechando a porta do Tribunal, mas levando informação e transmitindo conhecimento à população para que ela saiba a melhor forma de buscar e garantir seus direitos.

Revista Jutstiça & Cidadania – Como surgiu a ideia de iniciar este trabalho?

Vladimir Vitovsky – Em 2010, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) estava realizando um projeto de cidadania junto às comunidades ribeirinhas do norte da Amazônia que não tinham acesso, entre outros serviços, a benefícios previdenciários. Na mesma época, começaram a ser implantadas no Rio de Janeiro as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e surgiu a oportunidade de a Justiça Federal da 2a Região fazer uma parceria com a Ajufe para levar essas ações de cidadania, inicialmente, ao Morro da Dona Marta, onde foi instalada a primeira UPP. Tratava-se de ação totalmente independente, mas, na concepção da segurança pública, havia a necessidade da comunidade contar também com um braço jurídico que desse acesso aos direitos de seus moradores. No entanto, por conta de ser uma comunidade vertical, com acesso dificultado, realizar as ações naquele local acabou se tornando inviável.

A partir desse diálogo com as UPPs decidiu-se transferir as ações para o Morro da Providência, que, embora tenha características similares ao Dona Marta, contava, logo na entrada, com uma vila olímpica. Em um primeiro momento fizemos a triagem e depois voltamos para fazer as audiências de conciliação e até mesmo instrução, julgamento e realização de perícias.

RJC – Quais foram os resultados iniciais?

VV – Foram muitos aspectos positivos, porque tratava-se de uma prestação jurisdicional rápida. No entanto, aquele trabalho acabou ficando muito voltado à judicialização, como se a prestação jurisdicional fosse resumida a isso. Percebemos que faltava uma orientação prévia, uma conscientização sobre o que é a Justiça Federal e, também, o cuidado das etapas posteriores. Por exemplo, em relação aos processos do INSS, mesmo sendo homologado o acordo, a parte ficava sem orientações sobre as etapas seguintes. Então, a grande carência era a questão da informação ao cidadão, para que as pessoas pudessem ter um empoderamento maior.

Começamos a pensar, então, em formas de atuação que focassem, pelo menos num primeiro momento, na questão da informação, de levar conhecimento sobre a Justiça Federal e os direitos que estão garantidos por lei. Com isso, surgiu a inciativa de promover projetos ainda relacionados às UPPs, inspirados em iniciativas como a Casa de Direitos, criada com base na experiência da Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), baseada no tripé: educação para o Direito, formação de redes e mediação extrajudicial comunitária, coordenada pela juíza Gláucia Foley.

RJC – Esse projeto, então, foi a inspiração para criar uma nova proposta de atendimento às comunidades?

VV – Sim, a grande questão nessa iniciativa do
TJDFT foi esclarecer tudo o que a Justiça pode fazer, que não se resume a judicializar. Para isso, o projeto começou por capacitar as lideranças comunitárias para formar os multiplicadores. O sucesso dessa iniciativa da juíza Gláucia mereceu o Prêmio Innovare de 2005 e o Ministério da Justiça o elegeu como uma política pública de acesso à Justiça. Foram lançados editais para os estados e aqueles que quisessem adotar o projeto receberiam um investimento inicial do Governo Federal, depois o próprio Estado daria continuidade. O Rio de Janeiro foi uma das unidades da Federação a aderir. O projeto-piloto seria na Cidade de Deus e no Complexo do Alemão. Assim começamos, primeiramente, a fazer a parceria com o Programa Justiça Comunitária e com a Casa de Direitos, na Cidade de Deus, onde a proposta evoluiu muito bem, com a participação de 30 agentes comunitários com grande penetração na comunidade.

Em maio de 2012, com a implantação oficial do CAIJF, começamos a atuar no Complexo do Alemão, até porque na Cidade de Deus a Justiça Comunitária estava indo muito bem, mas no Complexo precisávamos ter uma atuação mais efetiva. Nesse período também fizemos parceria com os projetos Justiça Cidadã e Justiça Itinerante, ambos do TJRJ, coordenados pela desembargadora Cristina Tereza Gáulia.

RJC – Como foi o início dos trabalhos na comunidade?

VV – Naquele mesmo ano, aconteceu um evento no Centro Cultural Justiça Federal voltado à questão das UPPs, do qual participaram diversos líderes comunitários. Uma dessas pessoas era a Lúcia Cabral, que atuava no Complexo do Alemão por meio da ONG Educap. Pensamos em fazer uma parceria com as lideranças para atuar dentro da comunidade e ficamos em contato. Em dezembro de 2013, conseguimos participar de um encontro no Alemão porque ela, como líder comunitária, convidou todos os presidentes de associações de moradores. Nessa oficina, começamos a identificar as primeiras grandes questões, as dúvidas que as pessoas tinham em relação aos benefícios do INSS e até sobre a questão das entregas dos Correios, que não são feitas na comunidade, o que certamente afeta as demandas, que não chegam ao Judiciário.

Em meados de 2014, tivemos a ideia de atuar em um espaço um pouco mais aberto, a Clínica da Família Zilda Arns, que fica na via principal, sendo mais acessível. Nesse momento, a participação dos agentes comunitários de saúde como multiplicadores foi muito importante. Eles têm uma penetração grande na comunidade, atendem várias famílias e puderam nos trazer uma questão que jamais teríamos enxergado no processo judicial: o grande problema das pessoas no acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) estava no CPF, documento que muitas famílias não tinham, muitas vezes por falta de recursos. Para solucionar a questão, levamos a Receita Federal até lá para garantir esse serviço. Ou seja, é o que falamos sobre a formação de redes. A Receita Federal também tem ações de cidadania, nas quais leva esclarecimentos sobre direitos tributários, Imposto de Renda e também problemas relacionados à Justiça do Trabalho. Aliás, levamos também os colegas da Justiça do Trabalho até lá.

RJC – Qual foi a resposta da população?

VV – No início, é claro que eles ficam desconfiados, mas depois a resposta é muito positiva. Agora, estamos atuando em Ramos e adjacências. Ali o atendimento é mais voltado aos usuários dependentes de álcool e drogas, e à população de rua. O mais importante nessas experiências que temos com as pessoas adictas é perceber que eles participam, interagem e nos dão um retorno positivo. Muita gente desconhece como a Justiça Federal se relaciona com a vida do cidadão comum. No entanto, é um ramo da Justiça que envolve questões como INSS e Imposto de Renda, ou seja, assuntos que fazem parte do cotidiano de todos.

Temos realizado também ações em escolas, com alunos de sete a 12 anos, por meio de uma abordagem lúdica, usando até mesmo episódios do programa Chaves para que eles possam entender esses temas, ainda muito complexos para eles. Assim vamos criando essa necessária consciência. Se fossemos mensurar o resultado do nosso trabalho em termos de judicialização, seria muito fácil, bastaria contar quantos processos foram distribuídos. Porém, o nosso trabalho é importante porque está mudando essa inversão que aconteceu indevidamente. Antes de chegarmos à judicialização, o correto é conscientizar as pessoas sobre seus direitos para que elas possam tentar resolvê-los sem precisar do Judiciário, para que tudo seja feito de maneira consciente e cidadã.