Mídia ninja: um novo momento do jornalismo

26 de novembro de 2013

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midia-ninja“Na era da informação, as comunidades de representantes da sociedade civil têm seus ‘porta-vozes’ nos instrumentos da mídia que, amparada nos mais potentes recursos tecnológicos, transmite os sinais de expressão cultural e de opinião pública. A topologia definida por redes determina que a distância entre dois pontos (ou posições sociais) é menor se ambos os pontos forem nós de uma mesma rede.” [Manuel Castells, 2002].

A Mídia Ninja – sigla para Narrativas Indepen­dentes, Jornalismo e Ação – pode ser considerada um fenômeno midiático por adotar um modelo de cobertura jornalística alternativo, em tempo real, sem cortes, sem censura e, principalmente, independente. Sua proposta é ser combativa, tal como os agentes secretos do Japão feudal, mas não exatamente igual, já que estes prestavam contas aos seus contratantes.

A Mídia Ninja ganhou destaque a partir de junho deste ano, com a cobertura das manifestações populares que dominaram as cidades de todo o País, levando milhões de pessoas às ruas em busca de solução para as muitas mazelas sociais. Portando câmeras simples – muitas vezes de aparelhos smartphones –, notebooks e conexão 4G, os Ninjas, em geral uma equipe composta por fotógrafo, redator e cinegrafista, fazem a cobertura dos eventos e publicam em sua página na rede social Facebook, que registrava 213 mil seguidores em 30 de setembro último.

Destemidos – e apoiados pela imensa maioria dos manifestantes – os Ninjas correm riscos, como ocorreu com Filipe Peçanha, o Carioca, que foi detido pela Polícia Militar em uma manifestação realizada em 22 de julho, enquanto cobria o protesto nos arredores do Palácio Guanabara. Embora tenha sido libertado horas mais tarde, o episódio foi marcante e nos coloca diante da perspectiva de que, talvez, estejamos vivendo o momento que citou o estudioso Phillip Meyer, autor do célebre “Os jornais podem desaparecer?”.

Disse ele, ainda em 2009: “A Internet criou um sistema de múltiplas etapas e o problema agora não é mais de fluxo, mas sim de credibilidade. A presença comunitária dos jornais, depois de ser menosprezada durante várias décadas, é hoje considerada uma questão estratégica e que de alguma forma ressuscita a proposta de jornalismo cívico”.

Nesta entrevista, o fotógrafo paulista Rafael Vilella, 24 anos, ex-estudante de design gráfico e um dos criadores da Mídia Ninja, fala um pouco mais sobre as origens e propostas deste projeto que existe há menos de um ano, como parte do Coletivo Fora do Eixo (FdE), rede criada em 2006 para organizar circuitos de música e impulsionar artistas independentes longe do eixo Rio-São Paulo.

Por trás da fundação do FdE está o produtor cultural Pablo Capilé, e o jornalista Bruno Torturra – os dois principais porta-vozes da iniciativa. De acordo com o perfil em sua página do Facebook, o FdE começou com uma parceria entre produtores das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), que queriam estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento de produtos nesta rota desde então batizada de «Circuito Fora do Eixo». Hoje, o FdE está presente em 25, das 27 unidades federativas do Brasil, em mais de 200 coletivos.

Quanto à Mídia Ninja, sua origem está na cobertura ao vivo da Marcha da Liberdade, realizada em São Paulo, a 28 de maio de 2011. A experiência resultou no lançamento de um canal de transmissão de debates na internet chamado PósTV, mantido por integrantes do coletivo Fora do Eixo.

Críticas existem a este novo modo de fazer jornalismo, como também aos modelos tradicionais. Cabe à sociedade analisar as propostas, erros, acertos, ganhos e perdas de cada um dos modelos para escolher qual deles deve prevalecer como seu porta-voz – ou mesmo se podem ser complementares, o que talvez seja o ideal. Sorte nossa! Poder escolher é exatamente a mágica que chegou com a moderna tecnologia, que torna tudo imediato, acessível e transparente.

Justiça & Cidadania – Qual é sua atuação dentro da Mídia Ninja?

Rafael Vilella – Minha função dentro da Mídia Ninja está ligada à fotografia. Sou fotógrafo e estou no Fora do Eixo há três anos.

JC – Desde quando vocês atuam como mídia independente?

RV – O Fora do Eixo tem sete anos, mas a Mídia Ninja começou este ano, como fruto de uma experiência de comunicação social que já tem uns dois anos. O Fora do Eixo foi como uma incubadora de iniciativas de novas redes e, a partir desse acúmulo que tem de tecnologias sociais e de estrutura física, consegue gerar novas ideias e alternativas. Eles já bebem muito nessa fonte, nessa nova forma de entender política e sustentabilidade em rede. Então, a Mídia Ninja é uma rede nova, mas se você pegar os núcleos mais bem estabelecidos, como o do Rio de Janeiro, você verá que há 30 pessoas trabalhando no Ninja e três no Fora do Eixo. É um processo de autonomia e empoderamento local mesmo.

JC – Qual a principal proposta da Mídia Ninja? O objetivo é ser um canal independente da mídia oficial?

RV – Com certeza, porém mais do que isso é ser um canal que tenha um sistema de financiamento que independa de qualquer organização política, que consiga não estar atrelado a nada, a não ter nenhuma amarra, que seja diferente dos grandes veículos. Essa independência tem muito mais um viés político e financeiro, em relação a grupos que poderiam influenciar ou delimitar um processo de comunicação. Isso não significa que a gente não acredite em algo, que não tenha organizações parceiras e movimentos que entendemos ter uma visão de mundo muito parecida com a nossa, e que nos ajudam a estruturar essa narrativa.

JC – Quantos coletivos existem hoje no Brasil, onde estão localizados e quantos colaboradores atuam diretamente na Mídia Ninja?

RV – Temos um escopo de avaliação muito amplo, porque a cada dia recebemos 200 ou 300 emails de pessoas querendo ser Mídia Ninja em seus locais. E isso, dentro de uma lógica de rede, aberta, onde qualquer um pode ser um Mídia Ninja, independentemente de qualquer tipo de autorização ou contrato, faz com que a gente estime algo em torno de duas mil pessoas conectadas, mas é um número que cresce. Na página, [do Facebook, até então a Mídia Ninja ainda não tinha concluído seu site na web] hoje são 200 mil seguindo. Esses números são difíceis de ser avaliados de uma maneira exata, porque estamos falando de um processo de rede, de colaboração. Agora, no núcleo durável da Mídia Ninja, são aproximadamente 50 pessoas nas redações, trabalhando 24 horas por dia com isso, em todas as regiões.

JC – É correta a informação de que o FdE se mantém com recursos obtidos do apoio a projetos culturais, em editais públicos? Como se manter independente se há este vínculo?

RV – Nenhum produtor cultural que passe em um edital público aberto e divulgado amplamente nos meios de comunicação perde sua autonomia de gestão e dissidência da manutenção desse dinheiro para aplicar em seus projetos. Então, defendemos publicamente que, cada vez mais, exista mais verba pública disponível para comunicação e cultura em termos claros, em editais abertos, dos quais todos possam participar. Em momento algum tivemos qualquer tipo de contrato de financiamentos com governos. Participamos de editais com projetos nossos, que por terem qualidade e terem sido mais bem avaliados que outros, permitiram que recebêssemos o financiamento para executá-los. Em momento algum estamos recebendo financiamento para existir ou para fazer algo que alguém nos pediu. É uma diferença muito clara.

JC – Então como funciona a estrutura toda do FdE e da Mídia Ninja? O capital para operar a Mídia Ninja tem origem nessa verba de editais públicos?

RV – Não. Temos outro sistema de financiamento. Em primeiro lugar, esses editais, em termos percentuais, são a menor parte dentro do financiamento todo que o FdE tem. Ou seja, ele não depende desses editais e a Mídia Ninja muito menos. O que financia de fato a rede FdE é a sistematização e a troca de serviços que estabelecemos a partir de um modelo de economia solidária. Temos moedas complementares, um sistema de economia muito amplo que está conectado a esses 200 coletivos, que gera a sustentabilidade a partir de arranjos produtivos locais, onde cada coletivo se conecta com um parceiro, tem suas fontes de renda próprias, os seus festivais que geram renda para a rede, que essa lógica do circuito cultural financia. Assim, o circuito cultural organizado financia um movimento como a Mídia Ninja. Não é a verba do governo que tem uma cota reservada para a Mídia Ninja, mesmo porque seria impossível. A verba que recebemos de editais deve ser aplicada em determinadas coisas. Para realizar os eventos temos um caixa coletivo, moramos em casas coletivas e somos muito econômicos. O dinheiro que receberíamos de salários, por exemplo, de um produtor cultural de um festival do FdE, vira caixa coletivo que serve para qualquer projeto que está incubado.

JC – Qual é, em sua opinião, o potencial das redes sociais, para abalar a estrutura e mudar paradigmas da produção e distribuição da informação?

RV – Eu acho que já abalou a estrutura geral da mídia, não tenho dúvidas. Os acontecimentos de junho e, principalmente, a vinda do Papa [Papa Francisco chegou ao Brasil em 22 de julho para uma visita de seis dias], nos trouxeram episódios muito relevantes em relação à capacidade de influência das mídias independentes nos grandes veículos. Eu não acho que, em momento algum, a gente esteja aqui pregando o “novo jornalismo”, mas uma nova forma de fazer jornalismo, que, com certeza, vai pautar as formas tradicionais.

JC – Em relação à cobertura das manifestações, o que você destacaria como mais relevante – aquilo que a mídia tradicional costuma chama de “furo de reportagem”? 

RV – Tivemos a questão do Bruno Teles, que já estava sendo incriminado pela grande mídia como responsável por jogar um coquetel molotov na polícia. Sem qualquer evidência, a Globo comprou a versão oficial do relatório da polícia no final do dia e colocou no Jornal Nacional. Até que os movimentos trouxeram as provas e os vídeos que foram gravados. Isso repercutiu na internet de uma maneira tão forte que eles [a Globo] tiveram que dar um passo atrás no dia seguinte. Usaram um vídeo da Mídia Ninja para conseguir se reconfigurar diante disso. Têm alguns casos isolados que ilustram essa necessidade [de mudança de postura da mídia]. A Globonews agora tem um Ninja em campo também, ela leva um cara com streaming em tempo real nos protestos. Mas a capacidade de a mídia se reconfigurar não é técnica. Eu acho que não é uma questão de metodologia de trabalho, e sim muito mais uma questão política.

JC – Qual é, então, o questionamento que deve ser feito em relação aos meios de comunicação?

RV – O grande questionamento que fazemos em relação à mídia [tradicional] é sobre o interesse de comunicação que ela tem, sobre a democratização dos meios, sobre a altíssima concentração de poder midiático de alguns grupos que são familiares. Enfim, estes são os debates que devem ser levantados em relação à democratização da imprensa no Brasil e essa suposta liberdade de imprensa. Quem é livre hoje para fazer imprensa? Acho que temos que questionar esses modelos mais do que qualquer coisa.

JC – Quais têm sido os resultados do trabalho da Mídia Ninja? Você acredita que estão influenciando a mídia tradicional?

RV – Eu não tenho dúvidas de que eles estão sendo pautados e estão tendo que mudar a sua forma de atuação em função dos movimentos sociais, porque eles correm sério risco. Existe um processo de queda nessa indústria do jornalismo comercial, que está ligada principalmente a duas leituras. A primeira é uma desestabilização econômica do modelo de negócios deles, que é insustentável para o que está colocado – porque hoje a gente tem a internet e a gente tem novas formas de distribuição e produção colaborativa que desmonetarizam grande parte desse processo – e eles ainda estão no modelo industrial de jornalismo. Você tem um produto jornalístico quase como um carro, você tem uma linha de produção e a venda desse produto. E a gente tem certeza que o jornalismo não pode ser uma indústria, ele tem que ser entendido como um processo cultural acima de tudo, de produção, de compartilhamento e debate de visões de mundo. Então, essa é a crise número um, que é a crise de modelo de negócios, de concepção do quê é o jornalismo. A segunda já é uma crise de credibilidade. Foram anos e anos falando o que quer para quem quer, e eles perderam totalmente a sua credibilidade com o público. Do anarcopunk ao “coxinha” que estavam nas ruas em julho, todo mundo tinha certeza que “Abaixo a Rede Globo” era um lema comum entre as pessoas. Então, temos um momento também de ganho de conscientização da sociedade brasileira em relação a incapacidade e ao interesse desses grande veículos de noticiar as coisas de acordo como elas são. Não estamos pregando uma visão única de como as coisas têm que ser, o que discutimos é essa questão do mosaico de multiparcialidades, na qual existe um maior número de pessoas fazendo comunicação. [Discutimos] que a formação da opinião pública se dê a partir dessas múltiplas fontes e não a partir de um único emissor que dialoga de modo totalitário e unilateral com milhões de pessoas sem nenhum tipo de interação.

JC – Os coletivos têm uma determinada estrutura de funcionamento. Marcante é o fato de que ninguém pode/deve sobressair na rede – se entendi corretamente. Como lidar com a natural ambição humana para manter a rede no que ela tem de mais distante dos padrões “industriais” de produção de notícias?

RV – Em momento algum o processo coletivo extingue ou diminui a capacidade individual de cada um se destacar ou de se posicionar de maneira autêntica – uma coisa não está contra outra. Há casos e casos de pessoas que estão na Mídia Ninja que viraram celebridades locais, como o Carioca, no Rio de Janeiro. Existem várias lideranças que surgem a partir desse processo, que não são, lógico, âncoras famosos, nem é esse o objetivo, mas que têm a sua legitimidade na construção de um processo de confiança legítimo. Têm muitas pessoas que aparecem em seus determinados meios, tem uma lógica de liderança. Temos que questionar essa lógica, esse mito da horizontalidade como ele é colocado às vezes. Precisamos entender a horizontalidade como um objetivo e não como um ponto de partida. Temos desigualdades, diferentes formas de lidar [com o processo de trabalhos], mas é no quanto o processo está interessado em ser aberto e democrático que importa. É nisso que trabalhamos para que aconteça, para que possamos empoderar o maior número de pessoas a fazer isso [produzir notícia]. Estamos nos preparando há muito tempo para o que aconteceu em junho. Não foi à toa que conseguimos estar presentes em pelo menos cem cidades, cobrindo os protestos em tempo real. A gente deu conta de fazer tudo isso porque estávamos nos preparando, então existe um processo de construção que não começou agora, mas que está interessadíssimo em formar o maior número de pessoas para fazer essa rede da maneira mais horizontal possível.

JC – Até aonde vocês querem chegar com a rede? Qual a abrangência que ela deverá ter? O que ela deverá ser capaz de fazer?

RV – Pensando no futuro, acho que teremos um ano bem forte em 2014. O Rio de Janeiro é a prova viva disso. O Rio não parou, ainda está num processo de ebulição social muito forte. Acho que esse é o paradigma que está aberto e acho que é superinteressante discutirmos isso a fundo, não de uma maneira simplista. Acho que a eleição pode trazer um debate superdualístico novamente, mas teremos uma Copa, as pessoas vão estar nas ruas, o ano que vem será uma bomba.