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Estupro e atentado violento ao pudor são crimes hediondos mesmo sem morte ou lesão grave

23 de novembro de 2012

Procurador da Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

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Atendendo às determinações contidas no inciso XLII, do art. 5o da Constituição Federal, que diz que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”, foi editada a Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990.

Em sua redação original, o caput do art. 1o da referida lei dizia ser considerado hediondo o estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único) e o atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único).

Com as modificações trazidas pela Lei no 8.930, de 6 de setembro de 1994, o estupro e o atentado violento ao pudor passaram a ser previstos, respectivamente, pelos incisos V e VI, do art. 1o da Lei n 8.072/90, dizendo, verbis:

Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:
(…)

V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)

Em virtude dessas redações, surgiu a dúvida, em nossa opinião, com a devida venia, completamente infundada, se eram considerados hediondos tanto o estupro e o atentado violento ao pudor nas suas modalidades simples, ou seja, previstas no caput de ambos os tipos penais, e também às suas modalidades qualificadas (se resultasse lesão corporal grave ou morte, conforme o disposto no art. 223, caput e parágrafo único do Código Penal).

Os nossos tribunais estaduais, e também o Superior Tribunal de Justiça, inicialmente, se dividiram com relação a este tema, sendo que alguns entendiam que somente poderiam ser considerados como hediondos e, portanto, sujeitos aos rigores da Lei no 8.072/90, o estupro e o atentado violento ao pudor em suas modalidades qualificadas, ficando afastadas, outrossim, as modalidades simples, conforme se verifica pela ementas abaixo:

Tratando-se de crimes contra os costumes, só se há de cogitar de crime hediondo quando resultarem lesões corporais graves ou morte. Apelo parcialmente provido para reduzir-se a pena e alterar-se o regime carcerário. (TJRS – AP – Rel. Luis Carlos de Carvalho Leite – RJTJRS 173/157)

O estupro, na sua forma simples, somente deixou de ser qualificado como hediondo após o advento da Lei no 8.930/94. Assim, não vulneram a lei as decisões prolatadas até a Lex mitior e que os consideravam como tais, devendo, no entanto, tal correção, a teor da Súmula 611 do STF, ser efetuada junto ao Juízo das Execuções Penais. (TJMS – AP – Rel. Nildo de Carvalho – RT 732/677)

O atentado violento ao pudor, sem a combinação com o art. 223, caput ou parágrafo único, nunca foi considerado pela legislação como crime hediondo, e, assim, defere-se a revisão para excluir esta pecha da decisão revidenda. (TJMS – AP – rel. Nildo de Carvalho – RT 732/677)

Crime hediondo. O atentado violento ao pudor somente tem esta qualificação quando dele resultar lesão corporal de natureza grave ou morte. Fora destas hipóteses não há falar em crime hediondo. (STJ – 6a T. – Resp 172.524 – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 3/11/1998 – DJU 30.11.1998, p. 218)

Da interpretação sistemática da Lei no 8.072/90, resulta que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor somente se classificam como hediondos nas suas formas qualificadas, isto é, quando deles resultam lesões corporais de natureza grave ou morte (art. 223 do Código Penal). Ordem parcialmente concedida para afastar a natureza hedionda dos crimes perpetrados pelo paciente, assegurando-lhe a progressividade de regime prisional. (STJ – HC 16.838/SP, 6a T., Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 25/2/2002)

Em nossa opinião, tanto as redações originais da Lei no 8.072/90, como as que foram determinadas pela Lei no 8.930/94, com a utilização da conjunção aditiva “e” (213 “e” sua combinação…), que indicava uma relação de adição, deixavam claro que havia sido intenção da lei abranger as duas modalidades, vale dizer, simples e qualificadas, dos delitos de estupro e do atentado violento ao pudor.

Os tribunais superiores começaram a se posicionar sobre o tema e, a nosso ver acertadamente, passaram a concluir que ambas as hipóteses se configuravam em crime hediondo, dizendo:

Os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidades de crime hediondo, sendo irrelevante que a prática de qualquer desses ilícitos penais tenha causado, ou não, lesões corporais de natureza grave ou morte, que traduzem, nesse contexto, resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo, por isso mesmo, elementos essenciais e necessários ao reconhecimento do caráter hediondo de tais infrações delituosas. (STF – HC 89554 / DF – DISTRITO FEDERAL 
HABEAS CORPUS
 Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
 Julgamento: 6/2/2007 Órgão Julgador: Segunda Turma)

O entendimento atual e predominante da Quinta Turma desta Corte orienta-se no sentido de que o estupro e o atentando violento ao pudor, ainda que em sua forma simples e mesmo com violência presumida, são considerados hediondos. (STJ – HC 228287 / PE – HABEAS CORPUS 2011/0301438-2, Rel. Min. Gilson Dipp – 5a T. – DJe 12/6/2012)

Recentemente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça definiu, em julgamento de recurso repetitivo, que estupro e atentado violento ao pudor, mesmo cometidos na forma simples, constituem crimes hediondos.

Dessa forma, fica afastada a tese, ao nosso ver completamente equivocada, que essas infrações penais somente poderiam ser consideradas hediondas e, portanto, submetidas aos rigores da Lei no 8.072/90, nas suas modalidades qualificadas, vale dizer, quando viessem a ocorrer lesão corporal grave ou mesmo a morte da vítima.

Conforme relatado no próprio site do Superior Tribunal de Justiça, em 1o de outubro de 2012:

A decisão segue precedentes do Supremo Tribunal Federal e do próprio STJ, e diz respeito a fatos anteriores à Lei 12.015/09, que passou a tratar como estupro também as práticas sexuais antes classificadas como atentado violento ao pudor.

Para os ministros, cuja decisão foi unânime, o bem jurídico violado nesses crimes é a liberdade sexual e não a vida ou a integridade física, portanto, para a configuração do crime hediondo – que tem tratamento mais duro na legislação –, não é indispensável que tais atos resultem em morte ou lesões corporais graves, as quais podem servir como qualificadoras do delito.

De acordo com a Terceira Seção, a lesão corporal e a morte não integram o tipo penal e por isso não são fundamentais para que o delito receba o tratamento de crime hediondo, previsto na Lei 8.072/90. Para a Seção, a hediondez decorre da própria gravidade da violação cometida contra a liberdade sexual da vítima.

Mais rigor

O recurso julgado pela Terceira Seção foi interposto pelo Ministério Público de São Paulo com o objetivo de reformar decisão do Tribunal de Justiça daquele estado, que afastou o caráter hediondo do crime de atentado violento ao pudor na forma simples e fixou regime semiaberto para o início do cumprimento da pena.

O MP sustentou que a decisão de segundo grau teria violado o artigo 1o, incisos V e VI, da Lei 8.072, uma vez que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mesmo na forma simples, são crimes hediondos, devendo ser punidos com pena em regime fechado.

Até 2009, os incisos V e VI do artigo 1o da Lei dos Crimes Hediondos incluíam nessa categoria o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a promulgação da Lei 12.015, que reformou o Código Penal em relação aos crimes sexuais, esses incisos passaram a se referir a estupro e estupro de vulnerável.Ao pedir o reconhecimento do caráter hediondo do crime cometido em São Paulo, o Ministério Público assinalou que, além de maior rigor na forma de cumprimento da pena, os crimes assim definidos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, e também não estão sujeitos a indulto, fiança ou liberdade provisória. De acordo com o MP, o Código Penal só permite a concessão de livramento condicional, nos casos de condenação por crime hediondo, tortura, tráfico de drogas e terrorismo, após o cumprimento de mais de dois terços da pena.

O julgamento se deu pelo rito do artigo 543-C do Código de Processo Civil. Assim, todos os demais processos sobre o mesmo tema que tiveram o andamento suspenso nos tribunais de segunda instância, desde o destaque do recurso para julgamento na Terceira Seção, podem ser resolvidos com a aplicação do entendimento fixado pelo STJ.
A intenção do procedimento é reduzir o volume de demandas vindas dos tribunais de justiça dos estados e dos tribunais regionais federais, a respeito de questões jurídicas que já tenham entendimento pacificado no STJ.

Em boa hora, portanto, o Superior Tribunal de Justiça veio, definitivamente, resolver essa questão, trazendo segurança e estabilidade nas decisões dessa natureza.

Essa tomada de posição do Superior Tribunal de Justiça, mesmo após a revogação do art. 214 do Código Penal – que passou a ser previsto pelo art. 213 do mesmo diploma repressivo, em virtude do raciocínio que podemos levar a efeito através do princípio da continuidade normativo-típica –, ainda se faz relevante, apesar do atual inciso V, do art. 1o da Lei no 8.702/90 – com a redação que lhe foi conferida pela Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009 –, dizer expressamente com destaque dos parênteses, ao apontar o delito de estupro, que está se referindo ao art. 213, caput, e §§ 1o, 2o e 3o, de forma a espancar qualquer dúvida futura com relação ao tema.