Todos os povos têm, em sua história, passagens de bravura, de heroísmo e de superação do impossível através da coragem e do amor a uma grande ideal. São momentos registrados em que vida e morte perdem importância diante do infinito da alma. Portugal deu alguns dos mais belos exemplos, para a honra de um povo e da humanidade. Um deles, inesquecível, foi D. Gonçalo Mendes da Maia. Nascido em 1079, ao norte de Portugal, próximo da cidade do Porto, na Vila do Trastamires (Vila da Maia – povoação antiqüíssima), D. Gonçalo foi uma lenda viva de dedicação à pátria. Sua imagem e lembrança guardam uma força memorável para incentivo e apoio às mais nobres lutas de todas as gerações.
Na mocidade, por sua fidalguia e afinidade espiritual, tornou-se um dos maiores amigos do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. Juntos, lutaram para expulsar os invasores da terra amada. E, juntos, empenharam sua crença num Portugal de fronteiras mais dilatadas e felizes. A vontade férrea de D. Gonçalo e suas inúmeras e épicas conquistas no campo de batalha – em que o risco à vida era o eterno desafiante – acabaram grangeando-lhe o cognome de “O Lidador”.
O fato mais marcante dessa fama aconteceu na data de aniversário de D. Gonçalo, quando ele comemorava 95 anos. A história conta que os árabes estavam invadindo Portugal. E que a situação na frente de luta era muita desvantajosa para a sobrevivência lusa. Portugal poderia cair irremediavelmente nas mãos bárbaras do inimigo. O desejo de oferecer resistência tocava D. Gonçalo profundamente. No entanto, o idoso guerreiro sentia o peso da idade a curvar-lhe o corpo. Mas, não a encurvar a sua lendária coragem. Ao ver tombar e agonizar a seu lado um amigo inestimável, D. Gonçalo avivou o espírito rebelde e buscou forças na chama e na lembrança do jovem que um dia habitara em seu peito.
Sem medo, aquele coração que nunca se acovardara diante de nenhum abismo, partiu com um pequeno e frágil número de guerreiros para a arena onde estava sendo decidido o futuro da pátria. Aniquilando qualquer idéia de submissão e desonra, D. Gonçalo conseguiu, pela surpresa e pela audácia, equilibrar uma guerra que já era considerada perdida. Os árabes não podiam acreditar no que viam: um corpo envelhecido guiado pelas mãos e pelo Deus da Vitória. O chefe inimigo, para recuperar a confiança dos seus comandados, resolvera, ele mesmo, enfrentar D. Gonçalo. Num primeiro momento, tudo indicava que D. Gonçalo sucumbiria ante um guerreiro muito mais jovem e de forças renovadas. Eles lutaram com fúria. O primeiro embate deixara D. Gonçalo gravemente ferido. Seu braço quase fora arrancado. D. Gonçalo, no entanto, não aparentava sentir a mais leve dor ou sofrimento. O sangue, ao cobrir seu corpo, tornara-se, assim, o seu manto divino.
Mas, D. Gonçalo, apesar do estado desesperador, jamais se entregaria. Jamais cairia de joelhos frente à opressão e à vergonha de ser vencido. Num lance rápido, trocou o sabre de mão e, aos gritos de amor a Portugal e aos portugueses, deu a derradeira estocada. O adversário, cego pela vaidade e arrogância, descuidou-se, certo de já haver vencido. E apanhado em cheio pelo velho vigoroso golpe do velho soldado, caindo ao solo. Sua última visão – incompreensível, para ele – foi a de um velho-jovem iluminado pela pujança de um ideal, pelo coração de Portugal.
Com o chefe morto, o inimigo acanhou-se e retrocedeu em humilhante retirada. D. Gonçalo, ao ver a cena, sentou-se para descansar. Estava exausto pela luta e pelo muito sangue derramado. Apoiou-se, e com a respiração ainda ofegante, pôde ouvir os brados que chegavam pela vitória. Sua face ferida mal encobria grossas e generosas lágrimas. O herói de todas as glórias aproveitou aquele último momento supremo de sua vida.
E fechou os olhos. Com paz e serenidade, para sempre.