“Inabalável fé na integridade e independência do Supremo”

5 de novembro de 2020

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Trecho do discurso em que o decano do STF despediu-se dos colegas magistrados, por videoconferência

Ontem, em minha despedida da colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, tive o ensejo de afirmar que o STF, muito mais do que o órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, muito mais do que a preciosíssima joia das instituições republicanas, como a essa Corte Suprema se referiu o saudoso Dr. Levi Carneiro, fundador e primeiro presidente da OAB, frase sempre relembrada nessa Casa pelo eminente Ministro Carlos Velloso, esse Tribunal, senhor presidente, incumbido da defesa da Constituição, das liberdades fundamentais, da proteção da República e da ordem democrática constitui, como sempre constituiu para mim, um verdadeiro estado de espírito. 

Também ontem, na colenda Segunda Turma do STF, pude afirmar que foi para mim uma honra imensa haver sido guindado a esta Corte, onde a convivência com as eminentes juízas e eminentes juízes que a integram tornou-se um imenso fator de notável experiência e aprendizado, especialmente quando o STF se viu confrontado com graves desafios, comprometedores da institucionalidade delineada pela Constituição da República.

Neste momento particularmente especial de minha vida, vêm-me ao espírito as reflexões constantes de obra de autoria atribuída, indeterminadamente, a inúmeros poetas e autores, como Mário de Andrade, Mário Pinto de Andrade, Rubem Alves e Ricardo Gondim, na qual o seu inspirado autor, contando seus anos de existência, observou: ‘Descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora’, pois ‘Tenho muito mais passado do que futuro’; vindo a concluir que a escassez do tempo, que nos recorda da finitude da vida, segundo Sêneca, flui, como ontem observou o eminente Ministro Luiz Edson Fachin, de modo incessante e irreparável, tal como adverte Virgílio, o grande poeta latino, em um dos seus importantes trabalhos, as “Geórgicas”, quando nos relembra que o tempo se esvai de modo imperceptível, que ele, o tempo, irresistivelmente foge (tempus fugit).

Lê-se, senhor presidente, no Eclesiastes, que traduz, entre outros escritos, a profunda sabedoria do povo judeu, que a vida está em constante transformação, que a vida está em permanente evolução, na medida em que se sucedem os ciclos em que ela se desenvolve, pois há um tempo para todo propósito, um tempo para tudo o que acontece, eis que para tudo há sempre uma ocasião certa. 

Senhor presidente, senhoras ministras, senhores ministros, lembro-me como se ainda fosse hoje do dia em que, com 43 anos de idade, vindo do Ministério Público paulista, tive a honra imensa e para sempre insuperável de ingressar no STF e de, nessa Corte augusta, ter o elevadíssimo privilégio de conviver e de aprender dia a dia com os grandes magistrados que tiveram e que ainda nessa Corte continuam a ter assento. 

Já nos bancos acadêmicos, em tempos sombrios nos quais as liberdades fundamentais declinavam ante a arrogância do poder e o arbítrio sufocante de seus agentes, tive a precisa e exata percepção da elevadíssima importância do Supremo Tribunal Federal como órgão responsável pela preservação do equilíbrio institucional entre os Poderes do Estado, pela defesa dos direitos e garantias individuais, pela proteção dos valores da República e pelo amparo aos que, perseguidos por um regime despótico, buscavam acesso a essa Corte Suprema como verdadeiro santuário que, de modo intimorato, garantia os direitos básicos que lhes eram abusivamente negados. 

Foi assim, senhores ministros, em tempos de opressão e de resistência a uma ditadura militar que rompeu a ordem democrática fundada na Constituição de 1946, que conheci o Supremo Tribunal Federal. Repetindo as palavras do saudoso e eminente Ministro Aliomar Baleeiro, e reconhecendo a essencialidade desta Corte Suprema, desta Corte judiciária independente, passei a vincular esse Tribunal augusto a imagens imperecíveis de minha memória e também eternamente na minha saudade. 

Chegou, no entanto, o meu momento de partir, lamentando não mais poder compartilhar, como pude fazê-lo ao longo de 31 anos de intensa judicatura na Corte Suprema do Brasil, os grandes desafios que esta nação sempre enfrentou e ainda continua a enfrentar, além do enriquecedor convívio com os brilhantes juízes e juízas que compõem o nosso Tribunal. Já o disse anteriormente, senhores ministros, mas desejo uma vez mais afirmar minha inabalável fé na integridade e na independência do Supremo Tribunal Federal, por mais desafiadores, por mais difíceis e por mais nebulosos que possam ser os tempos que virão e os ventos que soprarão, absolutamente convencido, senhor presidente, que os magistrados desse alto Tribunal, com suas qualidades e atributos, sempre estarão, como sempre estiveram, à altura das melhores e mais dignas tradições históricas da Suprema Corte brasileira. Especialmente em um delicado momento de nossa vida institucional, no qual se ignoram os ritos do poder e em que altas autoridades da República, por ignorarem que nenhum poder é ilimitado e absoluto, incidem em perigosos ensaios de cooptação de instituições republicanas, cuja atuação só se pode ter por legítima quando preservado o grau de autonomia institucional que a Constituição lhes assegura. 

Concluo os meus agradecimentos, senhor presidente. Agradeço às palavras proferidas por vossa excelência, pela eminente Ministra Cármen Lúcia, pelos eminentes senhores ministros desta Corte, pelo eminente senhor procurador-geral da República, pelo eminente senhor advogado-geral da União, pelo eminente senhor presidente do Conselho Federal da OAB, pelo eminente senhor defensor público-geral federal.

Agradeço essas palavras e as retribuo com meus melhores votos, de felicidade plena a todos aqueles que acabei de me referir e também aos senhores advogados, aos senhores defensores públicos e membros da advocacia de Estado, com quem tive o privilégio de atuar nessa Corte, mas com especial e afetuosa manifestação a todos os eminentes servidores e servidoras do Supremo Tribunal Federal, sem cujo o apoio, suporte, dedicação e responsabilidade tornar-se-ia difícil, quando não impossível, o desempenho por essa Corte de suas altas atribuições institucionais.