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Judicialização da Saúde e seus impactos

31 de julho de 2022

Presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios Membro do Observatório Nacional da Saúde

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“A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, visando esta garantia mediante políticas sociais e econômicas que busquem a redução de doenças e o amplo acesso democrático aos serviços para sua promoção”. A citação está registrada no art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi regulamentado com a Lei nº 8080/1990, que observou, em seu art. 2º, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

O Brasil possuiu um sistema de saúde misto: público e privado. A saúde suplementar, regulamentada pela Lei nº 9.656/1998, alterada pela Medida Provisória 2.177-44/2001, dispõe sobre “os planos e seguros privados de assistência à saúde’’, cujas atividades de assistência médica são desenvolvidas pelas operadoras de planos de saúde. Cerca de 150 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do SUS, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e 49,6 milhões são beneficiários de planos de saúde, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A Lei define parâmetros e regras para a sociedade e seus indivíduos. No entanto, muitos consumidores buscam a Justiça para que o SUS ou a saúde suplementar cumpram o atendimento desejado ou necessário, previsto ou não. As demandas judiciais têm um ônus e de alguma forma os beneficiários de planos de saúde e os usuários do SUS acabam pagando a conta.

O setor de saúde corresponde a 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB, a soma de bens e produtos fabricados no Brasil). Na divulgação mais recente do IBGE, com dados anteriores à pandemia, as despesas com saúde totalizaram R$ 711,4 bilhões, sendo 3,8% gastos do governo e 5,8% despesas das famílias e de instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias. Um segmento que vem crescendo ao longo dos anos, em volume de serviço e em custos.

A saúde está sempre no foco das discussões, sejam elas políticas ou judiciais, numa sociedade que discute a prestação deste serviço e quer garantias de acesso à assistência médica. O fenômeno da judicialização da saúde acompanha esse processo, em que brasileiros buscam recursos, públicos ou privados, devidos ou indevidos, para que seja cumprido seu direito de consumidor. Demandas judiciais que atingem tanto o orçamento público quanto o privado.

Não é possível traçar um perfil de quem busca a judicialização da saúde, mas é possível afirmar que fins justificam a demanda: serviços e produtos de saúde que podem ou não estar previstos no rol de procedimentos, medicamentos ou a inclusão de terapêuticas e tratamentos que ainda não estão previstos em Lei.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os tipos de processos são variados, vão desde pedidos de medicamentos e realização de procedimentos, até tratamentos médico-hospitalares, entre outros. Nos últimos três anos, o CNJ contabilizou 932.231 processos desta natureza junto aos Tribunais de Justiça dos estados, sendo 241.653, em 2019; 366.320, em 2020 e 324.258, em 2021. Importante destacar que, no caso da saúde privada, as demandas são provocadas pelo desajuste entre beneficiários de planos de saúde e suas operadoras. Na saúde pública, geralmente por considerarem ineficientes a atuação da autoridade pública de saúde.

São processos que muitas vezes saem dos Tribunais de Justiça dos estados e chegam à esfera do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Dois processos, oriundos da Comarca de Campinas (SP), sobre contratos de consumo e planos de saúde, elevaram o debate sobre a características do Rol de procedimentos da ANS: taxativo ou exemplificativo? A 2ª Seção do STJ entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecidos pela ANS, considerou que as operadoras de saúde não estão obrigadas à cobertura que não esteja prevista na lista. Decisão que traz benefícios ao consumidor, já que mantém a previsibilidade das operadoras e a regulação por parte da ANS.

O Poder Judiciário vem sendo provocado para interferir, cada vez mais, na essencial atividade do Executivo e Legislativo para implementar políticas na área de saúde, pública ou privada, mas a decisão judicial muitas vezes leva ao desequilíbrio de recursos. No caso dos planos de saúde, dependendo do tipo de contrato, o custo fica dividido entre os beneficiários e entra na conta do reajuste. Na saúde pública, o recurso desviado afeta os investimentos no serviço dos SUS impactando toda a população.

O Tribunal de Contas da União (TCU), em 2015, realizou auditoria para identificar o perfil, o volume e o impacto das ações judiciais na área da saúde, bem como investigar a atuação do Ministério da Saúde e de outros órgãos e entidades dos três Poderes para mitigar os efeitos negativos da judicialização nos orçamentos e no acesso dos consumidores à assistência à saúde. O resultado mostrou que os gastos da União, em 2015, foram de R$ 1 bilhão, um aumento de mais de 1.300% em sete anos. Num trabalho mais recente, acerca da sustentabilidade do SUS, apreciado pelo acórdão 1.487/2020-Plenário, o TCU identificou que no exercício financeiro de 2018 o valor despendido com judicialização foi de R$ 1,35 bilhão.

Não muito diferente da saúde suplementar, mas com números mais vultosos, um levantamento organizado pela Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a partir de dados públicos da ANS, mostra que as operadoras gastaram R$ 11,3 bilhões – de 2015 a 2020 – com a judicialização, o que de forma direta ou indireta, afeta as relações contratuais de 49,6 milhões de beneficiários de planos.

Como orientar o Judiciário na tomada de decisões pensando em equacionar as questões que envolvem a assistência à saúde e os brasileiros e sem onerar ainda mais a União os beneficiários de planos de saúde, com gastos ou custos de manter uma equipe técnica permanente, que possa auxiliar o magistrado baseado em evidências médicas? Convocar a sociedade para o debate sobre o tema.

Pensando nisso, o Instituto de Justiça & Cidadania reuniu membros do Poder Judiciário, médicos e pesquisadores num grupo de trabalho para realizar análises econômicas da judicialização da saúde no Brasil. O Observatório Nacional de Saúdecoordenado pelos ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Antonio Saldanha Palheiro – é um projeto inovador para colocar em pauta a discussão das demandas judiciais, com objetivo de olhar as necessidades dos usuários do SUS e beneficiários de planos de saúde, sem que a qualidade dos serviços ofertados, tanto pelas operadoras quanto pelo SUS, fique comprometida.

O Poder Judiciário tem protagonismo e relevância, mas o equilíbrio nas suas decisões é fundamental para assegurar o direito de todos e a manutenção da assistência médica, nos setores público e privado.

Nota__________________

* Grupo de trabalho reunido pelo Instituto Justiça & Cidadania, sob a coordenação científica dos ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Antonio Saldanha Palheiro, para realizar a análise econômica da judicialização da saúde no Brasil.