Médico, misto de admirador e temor

5 de dezembro de 2004

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A atividade do médico, como de regra, a de todo profissional liberal, é extremamente complexa, porquanto as prestações profissionais, o objeto e a forma sobre os quais são exercidas muito variam.

O exercício da atividade médica, sem dúvidas, envolve riscos e, em determinadas situações, alto risco. Os riscos são das doenças e, por extensão das condições dos doentes. Porém, por vezes, conseqüências podem envolver o Médico, a quem está reservado o ofício de enfrentar os males do físico e da mente.

Ao exercer sua nobilíssima função, é de se exigir que deverá agir com esmero e eficiência, probidade e clareza suficientes, dissipando dúvidas. Toda cautela e firmeza devem ser invocadas para o pleno esclarecimento de situações de saúde, garantido assim, respeito aos preceitos legais e morais, éticos e humanos, no relacionamento profissional.

O Médico é, ao mesmo tempo, esperado e temido. Misto de admiração e temor, é amado e odiado simultaneamente. É normal o inconformismo com as conseqüências de atos médicos, donde decorre a necessidade de cobrança direcionada ao profissional. Responsabilidades existem e devem ser exigidas, mas, para tanto, é preciso que fique caracterizada, extreme de dúvidas, a culpa do Médico, o seu erro.

O vocábulo erro possui larga sinonímia (falta, falha, engano, desacerto, equívoco, desvio, incorreção, inexatidão, entre outros significados). Mais. Muito mais que uma simples contingência é uma constante na vida humana. Erro pressupõe distanciamento do correto, divórcio do desejado, distorção do planejado. O erro médico significa, em última instância, contrair o correto, descumprir o certo.

Encarando-se a doença como uma perversão do correto biológico, identificamos a doença como um erro da natureza. Ao médico, a responsabilidade de enfrentar os erros da natureza, corrigindo-os, quando possível. Encontra-se, certamente, em evidente desvantagem. Daí, de exigir-se dele a aplicação de conhecimento adequando, das técnicas usuais disponíveis, probidade e zelo no trato dos enfermos. Aí residirá a distinção entre erro e insucesso. O erro está calcado na figura da culpa: o insucesso, na imponderabilidade biológica.

Não se evoluirá neste julgado discutindo-se a natureza da obrigação do médico, se é de meio ou de resultado, conceitos que até podem estar desatualizados, já que remonta a distinção aos primórdios do século passado, fruto do intelecto do DEMOGUE que, segundo FROSSARD, teria sido elaborada, precipuamente, para resolver a questão da repartição do ônus da prova, na responsabilidade contratual. Ao nosso ver, à doutrina compete fixar a exata dimensão da obrigação do médico, diante da legislação em vigor.

“O que se torna preciso observar” – como o faz Aguiar Dias, em “Da Responsabilidade Civil”, Rio, forense, 8ª edição, 1987, vol. 1, pág. 299 – “é que o objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas a prestação de cuidados conscienciosos, atentos e, salvo excepcionais, de acordo com as aquisições da ciência, na fórmula da Corte Suprema da França”. Citando frase de Ambrósio Paré, Je lês pansay. Dieu lês guarit, acrescenta considerar-se contrário ao costume ou à ética profissional assegurar o médico determinado resultado ao cliente, o que, no entanto, não influi na validade do compromisso desse teor, quando livremente por ele assumido.

Antonio Chaves – “Tratado de Direito Civil, Responsabilidade”, vol. III, São Paulo, Ed. Revista Dos Tribunais, p. 396 -, diz que: “não se obriga o médico a restituir a saúde ao paciente aos seus cuidados, mas a conduzir-se com toda a diligência na aplicação dos conhecimentos científicos, para colimar, tanto quanto possível, aquele objetivo”.

“Logo”, – pondera Ulderico Pires dos Santos, “A Responsabilidade Civil na Doutrina e na Jurisprudência”, Rio, Forense, 1984, pág. 361 – “para responsabilizá-lo pelos insucessos no exercício de seu mister que venham a causar danos aos seus clientes em conseqüência de sua atuação profissional é necessário que resulte provado de modo concludente que o evento danoso se deu em razão de negligência, imperícia ou erro grosseiro de sua parte”.

O Código Civil posicionou a responsabilidade civil dos médicos e cirurgiões dentre as obrigações provenientes de atos ilícitos, nos termos do artigo 1.545, atualmente distribuída nos artigos 948/951 do novo diploma.

Nada obstante isso, não se pode negar que, atualmente, a relação médico-paciente é uma relação contratualizada, tendência que Josserand já observava na jurisprudência francesa e que acabou por firmar-se, definitivamente, depois do famoso julgado de 20 de maio de 1936, da Câmara Civil da Corte de Cassação (apud Aguiar Dias, “Da Responsabilidade Civil”, Ed. Forense, 4ª ed., pág. 294-5).

O direito positivo pátrio vê na relação médico-paciente uma relação de consumo, sendo médico o fornecedor; o paciente, o consumidor e: o serviço prestado, o objeto dessa relação dispondo, como já o afirmamos linhas acima, que a responsabilidade civil dos profissionais liberais depende da verificação da culpa destes.

Logo, deve o médico, no exercício de sua atividade, utilizar adequadamente os seus conhecimentos, obrar com zelo, com o cuidado, com a atenção devidos em relação aos pacientes, com técnica. A não observância de alguma dessas diligências importará na violação da obrigação contratualmente assumida perante o paciente.

Não se trata, como adiante demostrar-se-á, de discutir se a obrigação do médico é de meio ou se é de resultado, até porque pode ser de ambos. Esse profissional tem um compromisso maior com o paciente, o da qualidade dos serviços que presta.

Em artigo intitulado “A Bioética e a Relação Médico-Paciente”, publicado no periódico do Conselho Federal de Medicina, n°. 109, setembro 1999, pág. 08/09, o Doutor Júlio César Meirelles Gomes – médico e Conselheiro Federal do CFM – lembre que a relação médico-paciente, nos primórdios da Medicina, afigurava-se primorosa, solene e ocupava o ponto central da cena e que agora, na plena gestão da medicina científica, volta a ocupar lugar de destaque.

Professa que “antes de tudo, a atenção médica como uma forma de relação entre pessoas é provida do atributo mágico da afeição pela condição humana, prenhe de respeito e carinho pelo semelhante, e repousa no preceito basilar do cristianismo: ama a teu próximo como a ti mesmo”.

Diz, ainda, o articulista que “a relação do médico com o paciente vem a ser um momento agudo, quase emergencial nessa convivência fraterna marcada pela feição técnica de aplicação de conhecimentos específicos, cuja base é a fraternidade. Sem esse lastro, aquele atributo não dispõe de peso, mostra-se frio, isolado e deixa de ser benemerência para se tornar esmola. O cuidado que um ser humano pode dispensar a seu semelhante é, por natureza, vário e plural e uma das formas possíveis é exatamente a atenção médica”.

Esta introdução, talvez um pouco mais extensa do que o necessário, tem por finalidade compartilhar com as partes a visão serena e imparcial que deve ter o Magistrado  da questão que, por sua própria natureza, é complexa, tormentosa e, por vezes, passional, pois não se ter sensibilidade para entender essa valoração ao ato médico que tem reflexos imediatos sobre a pessoa humana é reduzir esta à condição de coisa, retirando dela sua essência que é a dignidade.

Qualquer ato que atue sobre a pessoa humana, suas características fundamentais, sua vida, sua integridade física, sua saúde mental, deve obrigatoriamente subordina-se a  preceitos éticos e aí, exatamente, é que se situa a atividade médica.

Os direitos humanos tão arduamente conquistados no sentido da defesa da pessoa e da vida devem estar necessariamente conjugados com a bioética.

O Eminente jurista patrício Dalmo de Abreu Dallari em artigo publicado pelo Conselho Federal de Medicina na Revista “Iniciação à Bioética”, fls. 241, assim pontifica:

“Os direitos humanos  não são uma nova moral nem uma religião leiga, mas são muito mais do que um idioma comum para toda a humanidade. São requisitos que o pesquisador deve estudar e integrar em seus conhecimentos utilizando as normas e os métodos de sua ciência, seja esta a filosofia, as humanidades,  as ciências naturais, a sociologia, o direito, a história ou a geografia.

A consciência dos direitos humanos é uma conquista fundamental da humanidade. A Bioética está inserida nessa conquista e, longe  de se opor a ela, ou de existir numa área autônoma que não a considera, é instrumento valioso para dar efetividade aos seus preceitos numa esfera dos conhecimentos e das ações humanas diretamente relacionadas com a vida, valor e direito fundamental da pessoal humana.”

O médico tem o dever de agir com diligência e cuidado no exercício da sua profissão, exigíveis de acordo com o estado da ciência e as regras consagradas pela prática médica, descurando-se de qualquer dessas circunstâncias, sujeita-se a ser chamado à responsabilidade sofrendo as conseqüências que daí advirão.