Mulheres continuam em movimento por pães e paz

12 de março de 2024

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Ministra Cármen Lúcia discursou por ocasião do Dia Internacional das Mulheres em sessão Plenária no STF realizada no dia 7 de março

“Não vou falar nem de lutas, nem de guerras, nem de guerreiras porque, como mulher brasileira, nesses tempos alucinados e adoecidos em que nós vivemos, também são tempos promissores para o aproveitamento de oportunidades e de chances de andarmos mais e melhor, na efetividade dos Direitos Humanos, entre os quais, o direito à igualdade de mulheres e de homens que querem colaborar, trabalhar juntos, se divertir juntos, para termos um mundo mais saudável e mais em paz. 

Prefiro pensar neste dia como um momento que foi posto para isso no calendário da Organização das Nações Unidas, para refletir sobre como aperfeiçoar e melhorar na efetivação desse princípio constitucional do primórdio do constitucionalismo moderno quer o da busca da felicidade. Quem é discriminado, é indignado, portanto, como somos nós mulheres, e mesmo entre nós mulheres os recortes são muitos, não se tem um tratamento igual mesmo entre nós. Portanto, essa meta precisa ser atingida com proposições e com vontade principalmente de vivermos com dignidade e com alegrias. Este é um tempo que tem nos dado muitas tristezas. Basta qualquer um de nós ler os jornais de manhã, assistir os telejornais, que parece que a humanidade só produz coisas ruins, não. Produz coisas boas. A busca da felicidade continua a ser um princípio do Direito para que a gente tenha verdadeiramente uma justiça. 

Uma das explicações para a ONU ter acolhido esse dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher teria sido por causa do movimento das mulheres russas em 1917, quando saíram às ruas de São Petersburgo, período da Primeira Guerra Mundial, pedindo, o que se conheceu como a marcha para pães e paz. Pães para nossos filhos, paz para nossos homens que estavam na guerra. Esse 8 de março foi acolhido exatamente entre outras datas que são rememoradas por este movimento. 

Como a mulher brasileira desses tempos, como aquelas russas, eu também continuo, e continuamos nós, mulheres, em movimento por pães e paz. Nesse mundo faminto, e são tantas a fomes, odientos, cheio de guerras, as mulheres querem continuar a cumprir o destino ligado a trabalhar para suprir todas as fomes de justiça, de pães, de diversão, de todas as naturezas. Queremos continuar a trabalhar para apaziguar os ódios e pacificar as pessoas, porque o cuidado é da nossa natureza: o cuidado de si, o cuidado do outro. 

Segundo a representante da ONU no Brasil, são 52 países em guerra, e se formos contar os conflitos são mais de 70, se tomar que o mesmo país, às vezes, tem mais de um foco de conflito, mais as guerras particulares. Os depoimentos são todos de que temos conflitos graves e sérios mesmo no nosso País. É preciso, portanto, que nós nos lembremos que precisamos não de continuar com o discurso, que é muito violento também, de combater a violência. Nós mulheres queremos promover a pacificação entre as pessoas. 

Num país que assassina mulheres, no ano passado foram aproximadamente 1.700 feminicídios consumados e 988 feminicídios tentados, dos que são notificados. Num país em que as crianças são também assassinadas, até mesmo no espaço doméstico, é preciso se dizer que esse país precisa muito de que nós todos comecemos a pensar sobre o prisma da promoção da paz e não apenas de combate, e o combate já é de alguma coisa que se enfrenta, porque nós estamos, acho, descartando o presente e destruindo ilusão com o futuro de humanidades e de respeito à vida. 

A justiça é representada por uma mulher. A República moderna na França, Marianne, é uma mulher. A própria ideia de Justiça com Democracia com a balança é feminina. No entanto, nós continuamos em desvalor profissional, social e econômico, e é exatamente sobre a égide de uma Constituição que 35 anos depois de seu primeiro momento de vigência estampou expressamente que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. E mesmo sendo obrigação atuar igualmente, as possibilidades desta construção conjunta muitas vezes nos é negada. 

Dizem que nós fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas. 

Ano passado, um grupo de historiadores, como a Heloísa Starling, e eu, desde 1999, quando conseguimos colocar no Panteão dos Inconfidentes Mineiros a única mulher, Hipólita Jacinta, que tinha participado ativamente das reuniões da chamada conjuração, que eram feitas em sua residência. Ela que teve a notícia da prisão de Tiradentes, ela que promoveu, no primeiro momento, que ele não fosse preso, até depois ser capturado. Ela não era mencionada, mas teve todos os seus bens confiscados, não conseguiu readquirir parte deles, não foi mencionada na devassa, e não era sequer lembrada. 

Em 1999, o então governador Itamar Franco, fez a homenagem póstuma e entregou a medalha Tiradentes a dona Hipólita, e somente o ano passado, em 2023, nós, um grupo de pessoas, conseguimos levar ao Panteão dos Inconfidentes, que ela também estivesse presente. Era a única mulher presente. Lembramos que a chamada Conjuração foi em 1789. 

Tudo isso para dizer que, a despeito de tudo, é por isso que disse que prefiro falar da promoção da paz e de alegrias, a marca que fica, especialmente para nós mineiras, mas não só mineiras, mulheres do mundo inteiro, é a marca de “Maria Maria”, da música de Milton Nascimento e Fernando Brant, que conheceu a Maria sobre quem ele fez a música, que diz que “a gente mantém a estranha mania de ter fé na vida”. E temos mesmo, porque vivemos uma labuta diária, e a gente não se entrega. 

Mas a democracia, e é esse o tema deste encontro e dessa reflexão, de igualdade de mulheres e homens. O viver democrático que impõe a dignidade de mulheres e homens é mesmo um modelo de quem não pode se entregar, que são todos os viventes do nosso tempo. E continuamos a ter que ter a gana e a graça de viver com o outro. 

Quero chegar aos 104 anos podendo repetir como Cora Coralina dizia ao final de sua vida: “Isto aqui foi escrito por uma mulher que fez a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores”. As pedras fazem parte. Eu quero continuar acreditando que nós somos capazes de superar e tirá-las do caminho para não ferir os pés, mas continuar seguindo. Não há como desconhecer tantas e quantas pedras, e às vezes elas são literais, como nesses tempos de cancelamento, que é uma nova forma de apedrejamento contra as desiguais. 

Disse à Vossa Excelência, há um tempo atrás, que tenho um sonho concreto que espero realizar ainda esse semestre que é a campanha “Justiça Pela Paz” em Casa que iniciei, depois institucionalizei no Conselho Nacional de Justiça, que três vezes por ano faz com que todos os juízes brasileiros se reúnam e julguem os casos que têm como prioridade violência doméstica. 

O outro sonho que tenho é de ainda ver em vida que somos capazes de provar que não somos parecidas aos humanos, somos iguais na dignidade para ter sossego e, como diria Guimarães Rosa, umas horinhas de descuido para muitas alegrias. 

Eu homenageio a mulher brasileira em nome deste Supremo Tribunal Federal, quem tem esta graça de seguir o caminho da promoção da paz e dos cuidados com os que têm fome de pães e paz, que mantém os seus cantos e encantos da vida apesar dos pesares e das catimbas, que são muitas. 

Homenageio aquelas que compõem a comunidade jurídica, advogadas, promotoras, procuradoras e, especialmente, as juízas brasileiras, que muitas vezes são “mãegistradas”, que, por serem mães não podem se dar a uma promoção, pois precisam de cuidar e não podem se deslocar de comarcas ou de seções para outras exatamente para dar atenção aos filhos, diferente dos homens. Que meu abraço chegue a cada uma delas. 

Em nome da Doutora Carmem Lilian, homenageio todas as servidoras do Poder Judiciário Brasileiro, do Judiciário Eleitoral, que no período eleitoral varam madrugadas e deixam suas famílias para o bem do Brasil. 

Mas termino fazendo uma homenagem especial às mães brasileiras que tiram de si para dar para cada filho. Às mães que nos fazem seguir, sabendo que dificuldades são para serem superadas, não para desistir, que seguem junto com a gente. E às filhas para as quais nós sonhamos com um mundo de igualdade e dignidade para todas.”