Edição

“Negro entoou, um canto de revolta pelos ares”

8 de novembro de 2019

Defensor Público do Estado do Pará / Membro da Comissão da Igualdade Étnico-Racial ANADEP

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Em cada quilombo a luta contra o racismo continua na busca da autodeterminação

Nosso passado escravocrata, racista, fundiário, pautado em uma cultura “universalista”, perdura na sociedade brasileira ainda nos dias de hoje, em um agir e pensar baseados em práticas de segregação. No campo das políticas públicas, a “ideologia escravocrata” persiste na construção de ações públicas que poderiam tornar nossa “democracia” realmente plural, desde que rompessem com uma “tradição” racista e escravocrata.

“Diz-se que entre nós a escravidão é suave, e os senhores são bons. A verdade, porém, é que toda a escravidão é a mesma, e que quanto á bondade dos senhores esta não passa da resignação dos escravos” (NABUCO, 2011, p.166).

O Brasil colônia, teve seu modelo econômico fundamentado no tripé escravidão, latifúndio/monocultura e produção voltada à exportação, onde o signo do processo escravocrata estava na propriedade e na produção. O Estado passa a ser o protetor da “raça” superior, em uma perspectiva biológica, que rotulou os povos Africanos como seres sem alma, onde “o racismo é um fenômeno que tem como um de seus suportes a crença na naturalização da superioridade do colonizador e, em consequência, na existência de grupos naturalmente hierarquizados” (AMADOR DE DEUS, 2019, p.45).

Temos uma longa história com a escravidão, somente nos fins do século XIX que encontra seu fim formal no Brasil, tendo sido implantada desde o início da colonização, resistido inclusive ao processo de independência, onde mesmo com a independência, continuamos uma economia que não via o povo Africano como “cidadãos” e sim como “objetos” passíveis de integrar o “patrimônio” de um cidadão de bem (NABUCO, 2011, p.09).

“O racismo, hoje, pode ser definido como um fenômeno que traz consigo uma história de negação dos direitos políticos, cívicos e sociais. O racismo contemporâneo emergiu como uma doutrina de exclusão, para legitimar a dominação de grupos fenotipicamente diferentes, e tem-se mostrado decisivo na criação e na reprodução de estruturas de classe, fundadas na subordinação daqueles definidos como inferiores por natureza” (AMADOR DE DEUS, 2019, p.42).

Entre os séculos XVI a XIX, nas Américas, se formaram as sociedades coloniais, baseadas no trabalho forçoso de indígenas e especialmente de africanos. Embora tenham sido retirados do continente Africano, descendendo de vários impérios e reinos, na visão europeia foram transformados em “africanos” como se houvesse uma homogeneidade de povos, línguas, culturas e religiões.

O sistema colonial nas Américas, portanto vai se desenhando e se sustentando a partir da mão de obra escrava no trabalho na terra e na agricultura, buscando atingir o mercado mundial. Neste sentido os primeiros africanos que chegaram nas Américas foram pioneiros, sendo obrigados a adaptar suas linguagens, locais de morada, forma de alimentação, seus idiomas e cultura.

Na crença do colonizador, o fosso de separação entre ele e o colonizado deve ser mantido, com práticas e palavras que buscam traçar diferenças entre ele e o colonizado, após deveria colocar essas diferenças em uma perspectiva negativa, diminuindo e subalternizando o colonizado, como se fosse incapaz, ou se biologicamente e moralmente fosse inferior em relação ao colonizador. Buscando nesta construção, criar uma narrativa que impossibilite o colonizado, de passar para um outro grupo, impedindo que as realidades sociais, econômicas, políticas e culturais que permeia a personalidade de cada um deles, possa ser exercida com liberdade (AMADOR DE DEUS, 2019, p.47).

Em um levantamento realizado pela Fundação Cultural Palmares, foram mapeadas cerca de 3.524 comunidades em todo o Brasil, contudo existem informações da existência de mais de cinco mil comunidades remanescentes de quilombos no Brasil, desta forma “o termo ‘quilombo’ deixa de ser considerado unicamente como uma categoria histórica ou uma definição jurídico-formal, para se transformar, nas mãos de centenas de comunidades rurais e urbanas, em instrumento de luta pelo reconhecimento de direitos territoriais” (TRECCANI, 2006, p.13).

Em um processo histórico de resistência e luta contra as práticas racistas de dominação, as leis em alguns momentos, desempenham um papel importante, como uma forma de tencionar e tentar construir uma sociedade mais justa, onde os “seres humanos” não sejam subjugados ou segregados por construções fenotípicas, de gênero, e tantas outras que são utilizadas para justificar violações de direitos.

Buscando garantir o direito à autodeterminação dos povos quilombolas, e dos herdeiros da diáspora Africana, bem como o direito dos povos originários, no ano de 1989 no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi promulgada a Convenção 169. No Brasil a Convenção foi ratificada no ano de 2002 pelo Congresso Nacional, sendo transformada em lei no ano de 2004 com a edição do Decreto no 5.051.

O referido instrumento normativo, tem como objetivo garantir o direito à autodeterminação e a identidade das comunidades negras, quilombolas, tradicionais e os povos originários, protegendo os direitos à educação, saúde, direito à terra e à participação de forma diferenciada para os povos tribais e os povos indígenas. No que se refere ao direito de participação, prevê a Convenção que será garantidos a esses povos o direito de serem consultados, de boa-fé e previamente, a partir de seus procedimentos adequados, toda vez que uma decisão administrativa ou legislativa poder afetar os direitos e os modos de vida coletivos das comunidades e dos povos tradicionais (YAMADA, OLIEIRA, 2013, p.7).

Em todo o Brasil, cotidianamente as comunidades quilombolas são vítimas, dentre outras violações de direitos, ao racismo institucional decorrente do modelo econômico desenvolvimentista, que opta em explorar os territórios dos povos quilombolas para extração de minério, construção de hidrovias, rodovias, hidroelétricas, bases do exército, estradas de ferro, termoelétricas, roubo de materiais decorrentes da biodiversidade existente dentro dos seus territórios ancestrais.

Um dos maiores questionamentos que fazemos constantemente, diz respeito ao motivo de que quilombolas não tem seus territórios ancestrais titulados, que a educação prestada aos quilombos é de péssima qualidade, que muitos deles tem seus territórios afetados por grandes obras de infraestrutura, ou que estes povos são expulsos de seus territórios tradicionais, porque tais empreendimentos passam a afetar seus territórios, impedindo seu modo tradicional e ancestral de vida.

Um dos direitos mais importantes positivados pela Convenção 169 da OIT, em seu art. 6o, garante aos povos Indígenas e Tribais o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado que dispõe que os povos indígenas e tribais deverão ser consultados sempre que medidas administrativas ou legislativas possam afetá-los diretamente (OLIVEIRA, 2017, pág. 156).

Importante ressaltar que a Consulta Prévia, difere dos mecanismos de participação social existentes, pois garante o direito de intervirem no planejamento, formulação, elaboração e execução de quaisquer medidas legislativas ou administrativas que intervenham diretamente em seu meio de vida e de relacionamento com seu território.

A Consulta e a participação dos povos tradicionais nos processos de tomada de decisões a respeito de seu território, são objetivos importantes por si só, todavia são também os meios pelos quais os povos indígenas e tribais podem participar plenamente na adoção das decisões que os afetem (OIT, 2013, 11). Os Governos Estaduais e as empresas que executam empreendimentos de exploração de recursos naturais-ambientais em territórios Quilombolas, por outro lado, reproduzem práticas racistas ao negar aplicação a dimensão dos direitos assegurados aos Quilombolas pela Convenção 169 da OIT.

A negação aos povos quilombolas de seu direito à autodeterminação, bem como da liberdade de gestão de seus territórios tradicionais, espaços de reprodução de sua ancestralidade Africana e da sua forma de vida, de sua religiosidade, de sua cultura e organização social, são formas de expressão do “racismo” hoje. Desta forma, a garantia do direito à consulta prévia, livre e informada é estabelecer uma fenda dentro do processo do racismo institucional, possibilitando que tais povos possam efetivamente vivenciar seus direitos fundamentais.

Término com as celebres palavras da Professora e Militante Negra Zélia Amador de Deus, onde:

“(…) as histórias do povo negro nas Américas inscrevem-se em narrativas que incluem migrações e travessias, nas quais a vivência do sagrado, de um modo particular, constitui um índice de resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social. Os africanos arrancados à força de seu continente e transplantados para as Américas, na condição de escravos, por meio da diáspora negra, foram destituídos de tudo, inclusive de sua humanidade, ao serem transformados em mercadorias e coisificados. Nele o colonizador imprimiu o código dos europeus e dele se apossou, na condição de proprietário, senhor. Contudo, os africanos que cruzaram os oceanos não vieram só. Com eles viram divindades, visões do mundo, alteridades – linguística, artística, étnica, religiosa – , diferentes formas de organização social e diferentes modos de simbolização do real” (AMADOR DE DEUS, 2019, p.142).

Que a luta do povo Quilombola em todo o Brasil para ter seu direito à consulta garantido, torne-se uma bandeira de luta em todas as Defensoria Públicas do Brasil, bem como de cada uma das operadoras e operadores do direito que acreditam que podemos viver em uma democracia multicultural, acabando de vez com as práticas racistas que permeiam nossa sociedade, pois “E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra, quando pode cantar, canta de dor”.

Motumbá, Salve Dandara! Salve Zumbi!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_________________________________

AMADOR DE DEUS, Zélia. Ananse tecendo teias na diáspora: uma narrativa de resistência e luta das herdeiras e dos herdeiros de Ananse. – Belém: Secult/PA, 2019.

FREITAS, Décio. O escravismo brasileiro. 3a ed. Porto Alegre, Mercado Alberto, 1991.

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1a reimpressão, 2011.

OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Comprender el Convenio sobre pueblos indígenas y tribales, 1989 (núm. 169). Manual para los mandantes tripartitos de la OIT. Oficina Internacional del Trabajo, Departamento de Normas Internacionales del Trabajo. – Ginebra: OIT, 2013.

OLIVEIRA, Rodrigo. “Agora, nós é que decidimos”: o direito à consulta e o consentimento prévio. In BELTRÃO, Jane Felipe e LACERDA, Paula Mendes. Amazônias em tempo contemporâneos: entre diversidade e adversidades. Rio de Janeiro: ABA Publicações e Mórula editorial. 2017. pp. 153-169.

TRECCANI, Girolamo Domenico. Terras de Quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação. – Belém: Secretaria Executiva de Justiça. Programa Raízes, 2006. Acessado em 15 de abril de 2019. Disponível no endereço eletrônico: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Girolamo.pdf.

YAMADA, Erika M.; OLIVEIRA, Lúcia Alberta Andrade de. (Orgs.). A Convenção 169 da OIT e o Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada. – Brasília: Funai/GIZ, 2013.