Edição

Notários e Registradores no Combate à Corrupção, à Lavagem de Dinheiro E AO Financiamento do Terrorismo

16 de abril de 2020

Compartilhe:

Muito se tem falado sobre a criação de mecanismos para a prevenção e combate à corrupção e crimes de lavagem de dinheiro em nosso País.

Nos últimos anos, vivenciamos um processo de real transformação da sociedade e dos órgãos públicos no combate a esse tipo de criminalidade. Operações policiais, sempre sob a vigilância inafastável do Poder Judiciário, foram realizadas por órgãos estaduais e federais objetivando desmantelar organizações criminosas com atuação em todo o território nacional e, até mesmo, em outros países.

Ao mesmo tempo em que ações de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro foram colocadas em prática, a engenhosidade criminosa também foi aperfeiçoada, impondo aos órgãos de persecução penal e ao Estado brasileiro o aperfeiçoamento dos métodos investigativos, bem como a modernização da legislação sobre a matéria.

A adoção de medidas preventivas e de controle, tanto para pessoas jurídicas, e para pessoas físicas, quanto para entidades que desenvolvem atividades de alto risco torna-se, portanto, medida urgente, eficaz e importante.

É nesse contexto que a regulamentação da atuação dos notários e registradores no combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo se insere, tendo ganhado força após a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) a ter estabelecido como uma de suas ações para ano de 2019 (Ação no 12).

A ENCCLA é a principal rede de articulação composta por órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, das esferas federal e estadual, para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao combate daqueles tipos de crime.

Por qual razão a ENCCLA estabeleceu essa regulação como uma de suas ações?

O principal motivo é porque essa regulamentação é vital para que o Brasil suba de patamar na avaliação mundial que será feita, neste ano de 2020, pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (GAFI).

O GAFI é uma entidade intergovernamental responsável por estabelecer padrões e implementar leis, regulamentos e outras medidas visando o combate a esses tipos de crimes, com o objetivo primordial de manter a integridade do sistema financeiro internacional.

Para isso, o GAFI realiza avaliações periódicas em todos os países que o integram, a fim de verificar se suas recomendações estão sendo efetivamente aplicadas, impactando, significativamente, na força econômica dos países avaliados.

Na última avaliação do GAFI no Brasil, no ano de 2010, foi recomendada a imediata inclusão dos notários e registradores como forma de prevenção à lavagem de capitais.

A falta dessa regulamentação não representava apenas e tão somente uma lacuna normativa, mas sim, e principalmente, a possibilidade da suspensão do Brasil dessa organização, o que poderia ocasionar um mal irreparável à imagem internacional do País, bem como aos seus negócios.

A inclusão da atividade extrajudicial no combate à corrupção e à lavagem de capitais é imprescindível, já que, na maioria dos negócios realizados, os registros públicos são utilizados, muitas das vezes, para dar aparência de legalidade a atos ilícitos.

A título de exemplo, na Espanha, onde essa participação já está consolidada, a atuação dos notários é a principal atividade não financeira colaboradora do combate à lavagem de capitais.

Diante dessa realidade, da urgência e relevância do tema, a Presidência e a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça elegeram a Ação 12 da ENCCLA como prioridade institucional no ano de 2019, já que se trata de uma nítida ação de Estado coordenada pelo Poder Judiciário brasileiro.

Publicado no dia 1o de outubro de 2019 e com data de vigência a partir de 3 de fevereiro de 2020, o Provimento no 88, de 1o de outubro de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça, insere definitivamente os notários e registradores de todo o Brasil no protocolo internacional de prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

A norma foi construída observando-se os padrões internacionais mais modernos de prevenção à lavagem de capitais, estabelecidos pelo GAFI, tendo como fundamento maior a prevenção como a melhor forma de proteção.

Ao editar o Provimento no 88/2019, a Corregedoria Nacional de Justiça, com a colaboração da ENCCLA, adotou a avaliação do risco como mecanismo principal de proteção.

Ou seja, as medidas de prevenção e de mitigação da lavagem de dinheiro estabelecidas no provimento são proporcionais aos riscos identificados na atividade extrajudicial, tornando-as mais baratas e eficientes.

A abordagem baseada no risco impõe a realização de comunicações ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), de forma mais inteligente, com qualidade e com efetivo monitoramento.

Esses parâmetros foram utilizados para a elaboração dos 45 artigos constantes do Provimento no 88/2019 da Corregedoria Nacional de Justiça.

Partindo desse contexto, analisaremos de forma sucinta os principais mecanismos de prevenção adotados pela norma.

Universalidade de alcance

Em seu art. 2o a norma deixa claro o seu alcance, devendo ser observada pelos tabeliães de notas, tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos, tabeliães de protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis, oficiais de registro de títulos e documentos e civis de pessoas jurídicas, sejam titulares, interinos ou interventores da respectiva serventia.

Por ora, apenas os registros civis de pessoas naturais não foram inseridos no sistema de prevenção, o que não impede a sua inserção posteriormente caso surjam hipóteses da utilização desse serviço no cometimento de crimes de lavagem de dinheiro.

Política de compliance

A norma determinou a implementação de políticas de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo compatíveis com o volume de operações e porte de cada cartório, com o objetivo de mitigar os riscos da utilização da atividade extrajudicial na prática desse tipo de crime.

Para isso, estabeleceu procedimentos e controles mínimos, de observância obrigatória, que deverão ser fiscalizados pelas corregedorias dos tribunais de justiçados estados e do Distrito Federal, entre as quais podemos destacar:

• a realização de diligência razoável para a qualificação dos clientes, beneficiários finais e demais envolvidos nas operações;

• obtenção de informações sobre o propósito e a natureza da relação de negócios;

• a identificação de operações ou propostas de operações suspeitas ou de comunicação obrigatória;

• a mitigação dos riscos de que novos produtos, serviços e tecnologias possam ser utilizados para a lavagem de dinheiro e para o financiamento do terrorismo; e,

• a verificação periódica da eficácia da política e dos procedimentos e controles internos
adotados.

A política de compliance implementada pelos cartórios é o mecanismo que vai permitir a condução da atividade extrajudicial de forma segura.

Como parte dessas medidas, foi criada a figura do Oficial de Cumprimento, que será o responsável pelo envio de informações ao COAF.

O Oficial de Cumprimento poderá ser o próprio delegatário, pessoa por ele indicada, ou o interino e interventor responsável pela serventia, havendo responsabilidade solidária de todos na execução de seus deveres (art. 8o. §3o)

Vale ressaltar que na política de compliance está incluído o treinamento de todos os notários, registradores, oficiais de cumprimento e empregados contratados, a fim de que se crie um protocolo de prevenção institucionalizado no âmbito das serventias de todo País.

Cadastro Único de Clientes

Os notários e registradores deverão avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns ou que, por suas características, no que se refere a partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou pela falta de fundamento econômico ou legal possam configurar indícios dos crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se (art. 5o.).

Para tanto, foi criado o Cadastro Único de Clientes. O GAFI estabelece como um de seus padrões de prevenção a identificação do cliente, na medida
em que, conhecendo o seu cliente, mais fácil será identificar a prática de operações suspeitas por ele realizadas.

Assim, o Cadastro conterá a identificação pormenorizada das pessoas físicas e de pessoas jurídicas que utilizam os serviços extrajudiciais, proporcionando dados confiáveis em relação aos usuários dos serviços, bem como de seus negócios.

Dentre os dados que constarão do cadastro único, um se apresenta com grande relevância: o enquadramento na condição de Pessoa Exposta Politicamente.

As recomendações do GAFI impõem uma atenção especial às pessoas expostas politicamente, em razão da possibilidade de apresentarem um risco mais acentuado da prática de atos de corrupção, pela simples razão de ocuparem cargos públicos relevantes.

Em razão dessa prioridade, o Provimento determina que notários e registradores, sempre que possível, identifiquem essa condição naqueles que procuram os serviços extrajudiciais, observando a Resolução no 29, de 07 de dezembro de 2017, do COAF (art. 9o. §1o, III, “k”).

Cadastro Único de Beneficiários Finais

Este cadastro possui por objetivo fundamental a identificação do verdadeiro beneficiário de toda e qualquer operação realizada nos cartórios extrajudiciais brasileiros.

Trata-se de uma medida de transparência que impõe aos notários e registradores a identificação do verdadeiro titular/beneficiado do negócio a ser realizado nos cartórios.

Tudo isso não adiantaria se os cartórios extrajudiciais não tivessem meios de manter atualizados esses cadastros. Para tanto, foi prevista a possibilidade de realização de convênios com a Receita Federal do Brasil, as juntas comerciais dos estados, o Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e quaisquer outros órgãos, organismos internacionais ou instituições que detenham dados sobre atos constitutivos, modificativos, extintivos ou que informem participações societárias em pessoas jurídicas.

Comunicações automáticas e suspeitas

O trabalho de toda unidade de inteligência financeira ao redor do mundo dá-se por intermédio das comunicações realizadas pelas entidades obrigadas, sejam financeiras ou não financeiras.

No Brasil não é diferente.

O COAF produz a inteligência financeira por intermédio dos dados de operações que lhes são encaminhados pelos setores obrigados (instituições financeiras e consórcios, empresas seguradoras e de previdência suplementar, instituições que atuam no mercado de valores imobiliários, joalherias, comércio de bens de luxo e de alto valor, comércio de imóveis, juntas comerciais e registros públicos).

Essas informações são consolidadas nos Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) e, posteriormente, encaminhadas aos órgãos competentes para subsidiar procedimentos investigativos.

As comunicações podem ser classificadas como automáticas ou suspeitas. As automáticas são aquelas comunicações de operações descritas taxativamente pela norma aplicável que, se ocorrendo, impõe a realização da comunicação ao COAF, independentemente de qualquer juízo de valor por parte do obrigado.

Por exemplo, o art. 25, I, do Provimento no 88/2019 da Corregedoria Nacional de Justiça estabelece que o registrador de imóvel comunicará obrigatoriamente ao COAF, independentemente da análise de qualquer outra condição, o registro de transmissão sucessiva do mesmo bem, em período não superior a seis meses, se a diferença entre os valores declarados for superior a 50%.

Assim, ocorrendo a hipótese acima, o registrador de imóveis deve efetuar a comunicação ao COAF.

Já as comunicações de operações suspeitas são aquelas que necessitam de um juízo de valor por parte do obrigado, observando-se parâmetros mínimos estabelecidos na norma.

O art. 20, I, do Provimento no 88/2019, estabelece que pode configurar operação suspeita aquela incompatível com o patrimônio ou com a capacidade econômico-financeira do cliente. Ou seja, a comunicação dessa operação depende da identificação de indícios da lavagem de dinheiro pelo notário e registrador, levando em consideração outras informações relacionadas à parte envolvida, ao valor e à falta de fundamento econômico ou legal.

Daí a importância dos cadastros dos clientes, pois, como dito acima, apenas conhecendo o cliente será possível identificar a suspeição nas operações por ele praticadas.

Ressalta-se que as comunicações de operações suspeitas são a principal fonte de informação de toda e qualquer unidade de inteligência financeira, sendo procedimento padrão na política de combate à lavagem de capitais dos países que integram o GAFI.

As comunicações automáticas e suspeitas serão encaminhadas diretamente e em sigilo ao COAF, por intermédio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras (SISCOAF), sendo certo que as comunicações realizadas de boa-fé não acarretarão responsabilidade administrativa, civil ou penal (art. 11, da Lei n. 9.613/1998).

Deve-se destacar, ainda, a participação fundamental dos órgãos e colaboradores da Ação no 12, da ENCCLA, pois cada ramo da atividade extrajudicial apresentou situações fáticas que ocorrem diariamente e que podem caracterizar a prática de corrupção e de lavagem de dinheiro com a utilização dos serviços extrajudiciais.

Esse diálogo aberto com as entidades reguladas permitiu a construção de um provimento com a identificação de aproximadamente 40 hipóteses, em capítulos próprios a cada ramo do serviço extrajudicial, criando uma metodologia de identificação de operações suspeitas de fácil compreensão, assimilação e execução por todos os notários e registradores do País.

Tudo em nome da transparência e da segurança na atividade extrajudicial!

Como se verifica, o Provimento no 88/2019 foi construído por órgão regulador e por setores regulados, dentro dos padrões internacionais de excelência estabelecidos pelo GAFI, o que a torna a norma mais moderna de prevenção e combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, atualmente existente no Brasil.

A qualidade técnica dos notários e registradores brasileiros, que permitiu o reconhecimento internacional na prestação de outros serviços, além de ter sido fundamental para a formulação da norma, será imprescindível para a consolidação dessa nova atividade, contribuindo, de forma significativa, na prevenção e no combate a esse tipo de criminalidade em nosso País.

O Provimento no 88/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça, coloca o Conselho Nacional de Justiça, definitivamente, em posição de protagonista nacional no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à prevenção e ao combate da corrupção e da lavagem de dinheiro, servindo de paradigma para outras atividades não financeiras ainda não integradas a esse protocolo internacional.

Em curto espaço de tempo, as informações prestadas por notários e registradores brasileiros serão a principal fonte de informações não financeiras utilizada pelo COAF, no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro em nosso País, resultando em expressivos ganhos para o cidadão, para a sociedade e para o Estado brasileiro.

Notas_____________________

1 Lei no 13.974, de 7 de janeiro de 2020, dispôs sobre o COAF.

2 Foram colaboradores da Ação no 12, da ENCCLA: MPF (coordenador adjunto), COAF, Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública; Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União; Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional; INSS; Ministério Público dos estados de Sergipe, São Paulo e do Distrito Federal; Policia Federal; Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; Rede Nacional de Laboratório de Tecnologia; Secretaria da Receita Federal; Tribunal Superior Eleitoral; Associação dos Magistrados Brasileiros; Associação dos Juízes Federais; Associação Nacional do Ministério Público de Contas; ANOREG SP, ANOREG Brasil, ARPEN Brasil, Colégio Notarial Brasil-CF Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil; Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.