Nova Competência da Justiça Militar

12 de fevereiro de 2020

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“Os soldados não são como os outros homens – eis a lição que aprendi de uma vida entre guerreiros”. Esta frase é do historiador britânico John Keegan, antigo mestre da Real Academia Militar de Sandhurts – Inglaterra, autor do livro “Uma história da guerra”. A meu ver, traduz com perfeição a ideia sobre o profissional das armas.

Únicos cidadãos com legitimidade constitucional para o uso letal da força, tem como dever o sacrifício da própria vida em prol da nação e dos seus concidadãos. Exercem a coragem como dever, o preparo permanente como condição inalienável da sua existência e o cumprimento da missão como objetivo.

mais de dois séculos, se estruturou em nosso país uma justiça especializada, a qual não pode desprezar que uma força guerreira se sustenta em princípios de hierarquia e disciplina, e que a aplicação justa e efetiva da justiça é fator indispensável ao exercício do comando. Esse órgão do Poder Judiciário próprio a que estão regularmente submetidos é a Justiça Militar (JM), também denominada Justiça Castrense ou Justiça das Armas.

O Superior Tribunal Militar (STM) funciona interruptamente desde 1808. É o mais antigo tribunal superior do país. Criado em 1o de abril daquele ano, devido à mudança da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, o então Conselho Supremo Militar e de Justiça sucedia o Conselho de Guerra de Portugal instituído em 1640. Com a República, passou a ser Supremo Tribunal Militar, e recebeu a denominação atual na Constituição de 1946. Sua marcante característica desde a origem é o escabinato, corte composta de militares e civis desde 1640, quando três desembargadores do Paço integravam o Conselho de Guerra de Lisboa ao lado de sete Generais, Marechais e Almirante, sendo um deles designado “promotor da justiça” (Regimento do Conselho de Guerra – Decreto Real de 23.02.1640 in ANTUNES, 1895)

A jurisdição militar brasileira é formada pela Justiça Militar da União (JMU) e a Justiça Militar dos Estados (JME). A primeira destinada às Forças Armadas. A segunda, para as Polícias Militares (PM’s) e Corpos de Bombeiros Militares (CBM’s).

A JMU é constituída de 19 Auditorias, tendo o Superior Tribunal Militar como órgão de segunda instância. Seus jurisdicionados são os membros das Forças Armadas e, excepcionalmente, civis que cometam condutas ilícitas contra as Instituições Militares ou a ordem administrativa militar.

Sob a inspiração das Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ações subsidiárias  e a necessidade de aperfeiçoar a segurança jurídica afeta aos militares empenhados em missões, surge a Lei 13.491, promulgada em 13.10.2017, alterando o Código Penal Militar de 1969. Trata-se da mais profunda alteração da Justiça Militar desde 1920.

A Justiça Castrenseobteve status constitucional na Carta de 1934. Órgão jurisdicional especializado, recebeua competência para processar e julgar o “crime militar”, além da perda do posto e da patente dos oficiais das Forças Armadas,naquela época conhecida pela abreviatura FFAA.

O legislador deixou a definição de “crime militar” para a lei ordinária, ou seja, o Código Penal Militar (CPM). Nele, estão previstos tipos penais que configuram “crime militar”, além das condições que caracterizam uma infração penal, como tal espécie delitiva especial, considerados o local em que foi praticada, a pessoa do transgressor e da vítima, e a instituição ofendida. Enfim, diversas hipóteses em que um comportamento ilícito é delito castrense, o que o torna de competência da Justiça Militar.

Pois bem, além das figuras criminais existentes no Código Penal Militar, a Lei 13.491/17 ampliou sobremodo esse elenco para incluir, na competência da Justiça Militar, todos “os crimes previstos na legislação penal” brasileira. A meu entender, excetuou apenas crimes eleitorais, contra criança e adolescente, da lei de segurança nacional, e contravenções penais.

Sendo assim, a conduta ilícita que atente contra a Instituição Militar ou a sua ordem administrativa, praticada por ou contra militar em serviço, mesmo não inserida no CPM, mas que tenha previsão em alguma lei penal brasileira, está afeta à competência da Justiça Militar.

Nesse rol entram as seguintes leis, por exemplo: crimes ambientais, de licitações, crimes hediondos, crimes informáticos, organizações criminosas, “Maria da Penha”, lavagem de dinheiro, tráfico internacional de drogas, abuso de autoridade, assédio sexual, estupro de vulnerável, preconceito de raça e de cor, etc. Além destes, todos os delitos previstos no Código Penal brasileiro que não encontram assento no CPM, em determinadas condições, podem ser considerados crimes militares extravagantes ou crimes militares por extensão.

A nova norma permite à JM aplicar toda a legislação penal brasileira. Como exemplo, a lei de crimes hediondos em casos criminais a envolver militares como vítima. Nesse aspecto, a prática de disparos contra aeronave do Exército a configurar tentativa de homicídio contra a tripulação, poderá ser enquadrada como crime hediondo (Lei 13.142/15), insuscetível de indulto, com penas mais severas, cumprimento da pena em regime fechado, entre outras restrições.

Outros exemplos importantes são os delitos de Tortura, previsto na Lei 9.455/1997, e também inserido no âmbito da Lei de Crimes Hediondos e de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/1965), que antes da Lei 13.491/17, embora praticados por membros das Forças Armadas e auxiliares, eram julgados pela Justiça comum.

Algumas normas, por sua vez, em que pesem elencarem tipos com redação similar a do CPM, trazem elementos especiais referentes a determinado contexto. Cito o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Nesse caso, a doutrina ainda não é uníssona, mas se inclina pela aplicação do crime específico do CTB na Justiça Militar em detrimento daquele constante no codex castrense.

Acrescento a possibilidade de utilização da Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13) e do instituto da colaboração premiada, a qual já era admissível inclusive antes da entrada em vigor do novo diploma.

A alteração do artigo 9o do CPM criou a figura do “crime militar por extensão”, isto é, passou a caracterizar como “crime militar” qualquer figura delituosa fora do CPM, mas assim considerada em face de certas condições em que for cometida.

No modelo anterior, diversas condutas ilícitas, mesmo que praticadas em local sob Administração Militar ou contra ela, estavam excluídas da competência castrense, como por exemplo, crimes licitatórios previstos na Lei 8.666/1993 e crimes hediondos. Isto porque a JM só processava os crimes previstos no Código Penal Militar. Todos os demais, ainda que praticados por militar em função, contra integrante das FFAA ou contra a Administração Militar, recaía na competência da Justiça Ordinária comum ou federal.

Além da formidável expansão da definição de “crime militar” nas leis extravagantes e no Código Penal brasileiro, o crime doloso contra a vida – homicídio doloso, praticado contra civil por militar nas condições de serviço, sai da competência da Justiça Comum e Tribunal do Júri e retorna à Justiça Militar da União – após a alteração que havia sido dada pela Lei 9.266/96, visando reprimir casos de confronto entre policiais militares e civis. No entanto, o STM jamais a aceitou, tendo declarado sua inconstitucionalidade. Segundo levantamento estatístico confiável, esse número em dez anos não ultrapassou seis casos.

Especificamente sobre a atual redação do art. 9o do CPM, quanto aos delitos supracitados, a nova norma revogou o parágrafo único do dispositivo e, em seu lugar, inseriu os §§ 1o e 2o.

Da leitura do § 1o se observa que a regra geral inserida pela Lei 9.299/96 foi mantida: compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis.

Não obstante, o § 2o define situações em que tais delitos serão julgados pela JMU. Cuida-se de fatos inseridos no contexto da atuação em serviço e soma à exceção já prevista pela Lei 12.432/11, que trouxe para a Justiça Castrense da União o chamado “abate de aeronave”. Trata-se de missões designadas pelo Presidente da República ou pelo Ministro da Defesa; ações que envolvam a segurança de Instituição Militar; e atividades envolvendo operações de paz, GLO ou atribuição subsidiária.

A bem da verdade, aliado à posição adotada pelo STM, entendo que o dispositivo permanece inconstitucional, diante da clara violação ao art. 124 da Carta Magna, que trata sobre a competência da Justiça Castrense para o julgamento dos “crimes militares”. Em nada se alteraria a jurisprudência consolidada pela Corte, sobretudo porque o fundamento até então esposado permanece o mesmo. Cito julgado nesse sentido:

“EMBARGOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. I- A competência da Justiça Militar da União, no caso concreto, é constitucional e em razão da lei. Atribuir, no caso vertente, a competência ao Tribunal do Júri para processá-lo e julgá-lo, o que só poderia ser alcançado, via mudança constitucional, porque o conceito de crime começou pela Constituição que dá competência exclusiva à Justiça Militar da União para processar e julgar os crimes militares definidos em lei, sem especificar em que situações, deixando isso a cargo da lei ordinária, como se vê do art. 124, preenchido o requisito constitucional, só então, passa-se ao art. 9o, do CPM, juntamente, com o tipo incriminador. […]”. (STM. EIFNU 57-90.2008.7.01.0301. Relator Ministro Sergio Ernesto Alves Conforto. Julgado em 18.2.2010. Publicado DJE 26.3.2010, grifo nosso).

Dito de outra forma, se não houve alteração do art. 124 da CF, permanece a atribuição da Justiça Militar da União para o julgamento dos crimes castrenses. De igual sorte, sabe-se que não é possível a norma infraconstitucional alterar regra de competência definida pela Carta Magna.

Outro modo de se analisar o dispositivo, seguindo a denominada interpretação conforme à Constituição Federal (CF), seria dissociar os crimes dolosos contra a vida praticados no contexto do art. 9o, § 1o, do CPM, da natureza de “crime militar”. Ou seja: nessa situação, para que a norma seja declarada constitucional, o fato deve ser considerado como crime comum, e então a competência para o julgamento corretamente designada para o Tribunal do Júri, na forma do art. 5o, XXXVIII, alínea “d”, da Carta Magna. Assim vem entendendo parcela da doutrina.

Portanto, e como exemplo prático, caso um militar pratique um homicídio contra civil, para se verificar o órgão do Poder Judiciário responsável pelo julgamento, deve-se ter em mente o contexto em que o ato foi realizado: se o membro das Forças Armadas atuou em situação particular, aplica-se o § 1o do art. 9o do CPM e a competência, de acordo com a orientação acima ventilada, cabe ao Tribunal do Júri. No entanto, caso ocorra, por exemplo, em operação de GLO, incorre-se no § 2o do mesmo dispositivo, pelo que o fato é caracterizado como “crime militar” de competência da Justiça Castrense.

A doutrina aponta também a possibilidade de instituição do Tribunal do Júri no âmbito da JMU. A tese, defendida inclusive em Voto-Vista proferido pelo Ministro Dr. José Barroso Filho, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito 144-54.2014.7.01.0101/RJ, julgado em 9.6.2016, não prevaleceu na Corte Castrense e nem encontra amparo na legislação vigente.

Vale asseverar que o art. 125, § 4o, da CF, estabelece expressamente a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de militares dos Estados acusados da prática de delitos dolosos contra a vida de civis, pelo que norma infraconstitucional não poderia prever situação diversa. Dessa forma, a alteração inserida pela Lei 13.491/17 no § 2o do art. 9o do CPM não pode ser aplicada aos policiais e bombeiros militares.

Analisado o conteúdo material da norma, cabe-nos lembrar que a constitucionalidade da Lei 13.491/17 é objeto de impugnação no Supremo Tribunal Federal (STF). Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) foram propostas: a ADI 5901 pelo PSOL e a 5804 pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil. Não houve liminar. Ambas são da relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

No que toca à natureza jurídica da Lei, a doutrina se inclina para uma vertente híbrida. Sabe-se de sua natureza material, uma vez que os crimes comuns passam a ser tratados como crimes militares por extensão ou por equiparação. Isso porque, como dispõe o art. 124 da Constituição Federal, à Justiça Militar apenas compete o julgamento dos “crimes militares”, assim definidos em lei.

No entanto, essa alteração de natureza jurídica traz uma importante repercussão processual, porque dispõe sobre competência. Dessa forma, tem vigência imediata, inclusive para fatos praticados antes de sua entrada em vigor, desde que não prejudique o réu.  Decisões do Superior Tribunal de Justiça remeteram processos criminais que tramitavam em varas federais para a Justiça Militar da União, cujos fatos delituosos ocorreram em data anterior à promulgação dessa lei.

Conclui-se, portanto, que o alargamento da competência da JMU, assim como o retorno de sua competência para processar e julgar o integrante das Forças Armadas, autor de crime doloso contra a vida de civil, constitui indispensável fator de segurança jurídica aos oficiais e às praças empenhados em missões das mais diversas fora do quartel, sejam elas Operações GLO ou ações subsidiárias.

Ao meu ver, constituirá fator de combate à impunidade, rapidez na apuração e no julgamento de fatos a envolver militares e civis, com reflexos positivos à hierarquia e disciplina.

Amplamente noticiados na imprensa, os fatos ocorridos no Morro da Providência, em 14.6.2008, quando um Oficial subalterno do Exército descumpriu ordem superior e liberou três jovens em área de facção rival, o que os levou a óbito. Passados dez anos, o processo que tramita em uma vara federal do Rio de Janeiro ainda não foi concluído. O julgamento do crime militar de recusa de obediência (art. 163 do CPM) foi sancionado pela Justiça Militar e teve o trânsito em julgado no STM em maio de 2011.

Segurança jurídica ou princípio da confiança ou da proteção legítima, conceito extraído do Direito Constitucional, condição inerente ao Estado Democrático de Direito, é tornar claríssimas as “regras do jogo”, o arcabouço das leis do país a que está submetido o cidadão.

No caso, o servidor militar em operações ou empenhado em atividade no âmbito criminal responderá perante a JM, preservando-se a celeridade do processo e julgamento, além de serem observados os princípios de hierarquia e disciplina.

A estrutura da Justiça Militar apresenta-se perfeitamente apta para cumprir sua destinação constitucional: processar e julgar os crimes de sua competência, com rapidez, especialização e imparcialidade. A nova lei consolida, no aspecto penal, a segurança jurídica que o país deve atribuir aos membros das Instituições Militares nacionais – Forças Armadas e Corporações estaduais.

Nota____________________________

1 ANTUNES, José Ricardo da Costa Silva. “Compilação da Legislação Penal Militar Portuguesa – Desde 1446 até 30 de junho de 1895”. Lisboa, Imprensa Nacional. 1895. P. 10.