Novo Código Civil deve propor valores para século 21, diz ministro argentino
26 de fevereiro de 2024
Ricardo Lorenzetti, ministro da Suprema Corte da Argentina, fala em audiência pública, ao lado de Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
O novo Código Civil deve estabelecer “grandes princípios e valores” para regular as relações sociais no século 21. A avaliação é de Ricardo Lorenzetti, ministro da Suprema Corte da Argentina, que coordenou o trabalho de revisão da legislação civil no país vizinho. Lorenzetti participou nesta segunda-feira (26) de uma audiência pública da comissão de juristas criada pelo Senado para atualizar o Código Civil em vigor (Lei 10.406, de 2002).
— São princípios norteadores, como respeito à privacidade, liberdade de expressão, acessibilidade, proteção das crianças. A abrangência desses princípios estabelece uma conexão com todos os microssistemas. Para alguém que tenha uma formação clássica, isso é heterodoxo. Mas não é no século 21. A construção de emoções coletivas é uma maneira fundamental de orientação do comportamento coletivo atual. Incorporar princípios e valores na regulação não é uma questão meramente técnica, jurídica, abstrata ou neutra. É um modo de regulação das sociedades atuais: ninguém pode reconhecer todas as regras do Direito, a gente se conduz por grandes valores. Temos uma verdadeira crise de valores. Por isso, é importante termos clareza nesse mundo de confusões — afirmou Ricardo Lorenzetti.
A comissão de juristas é presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A audiência pública contou com a participação da relatora do colegiado que revisou o Código Civil argentino, Aida Kemelmajer, e do vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin. Durante a tarde, os relatores gerais da comissão de juristas, Flavio Tartuce e Rosa Nery, devem apresentar o relatório final dos trabalhos.
“Princípios claros”
Para o ministro Ricardo Lorenzetti, o novo Código Civil brasileiro deve funcionar como “um sistema articulador de princípios e valores”. Ele salientou que a futura legislação deve prover os instrumentos necessários para que juízes, advogados “e sobretudo o povo” possam entender como funciona o sistema judicial.
— Temos uma relação atual entre o Direito Público e o Direito Privado muito diferente do que era no século 19. Agora, temos tratados de direitos humanos e de integração que mudaram amplamente. Temos tratados comerciais, sobre meio ambiente, sobre discriminação, sobre crianças. Todos esses tratados têm uma aplicação no Direito interno, ainda que não sejam obrigatórios. O Código Civil é o sistema que permite coordenar as várias partes e aportar flexibilidade e uma certa comunicabilidade com a Constituição e com os tratados internacionais — argumentou.
O magistrado argentino classificou como “muito interessante” o capítulo sobre Direito Digital proposto pela comissão de juristas brasileiros. Ele salientou, no entanto, que o novo Código Civil deve prever, em um título introdutório, balizas de interpretação que assegurem a proteção de direitos não apenas à pessoa humana, mas aos chamados bens comuns.
— O problema metodológico é que, se vocês têm essa previsão somente focada na proteção humana, há um vazio legal a respeito dos bens comuns. Por exemplo: hoje, o mais importante é a proteção de contexto, do ambiente, do mercado. Se isso está na parte geral, o título introdutório aplica-se a tudo, e não apenas a pessoa humana. (Focar apenas na proteção humana) pode ser interpretado como individualismo. Tem que ter princípios de interpretação favoráveis, por exemplo, ao consumidor e à proteção do ambiente. São princípios de interpretação muito importantes como guia para as decisões do Judiciário — afirmou.
Tutela preventiva
O ministro Ricardo Lorenzetti sugeriu ainda a inclusão de mecanismos para prevenir danos às pessoas, e não apenas à propriedade. Segundo o magistrado, essa foi uma das inovações incorporadas no novo Código Civil argentino.
— Atualmente, não é possível falar só de reparação. Temos que falar de prevenção. Temos muitos casos em que não há possibilidade de reparar. Se uma pessoa agride ou causa um dano à propriedade, ela pode ser freada. Há uma tutela inibitória preventiva. Mas, se ela quer agredir ou danificar a honra de uma pessoa, pode. Não tem tutela preventiva, basta pagar um dinheiro. Se o dano é ao ambiente, é a mesma coisa: paga um dinheiro e segue. Isso é uma desarticulação de valores. Se sustentamos que o sistema jurídico protege a pessoa, mas, na prática, tem mais instrumentos para proteger a propriedade, há uma incoerência lógica — explica.
O presidente da comissão de juristas, ministro Luis Felipe Salomão, agradeceu o ministro Ricardo Lorenzetti pelas sugestões apresentadas. O magistrado brasileiro defendeu a construção de consensos na definição da minuta a ser sugerida ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
— Os relatores vão apresentar seus projetos. É um começo de debate. Estamos só iniciando o trabalho. Vamos levar em conta todos os aspectos que vão surgir a partir do debate. Por isso mesmo, a primeira semana de abril vai ser inteira dedicada a esses debates e a essas votações. É importante que tenhamos um consenso em grande parte do texto para que ele possa ter legitimidade e força para caminhar no Parlamento. Não vai faltar diálogo, debate e disposição para acertar — afirmou Salomão.
“Notável encontro”
Para o ministro Edson Fachin, vice-presidente do STF, o novo código é necessário para o Brasil “fazer esse notável encontro” entre a legislação civil e a Constituição Federal. Para ele, o texto deve promover “a democracia, a liberdade, a dignidade, a solidariedade e a responsabilidade”.
Segundo o ministro, o novo Código Civil “levará o Brasil ao século 21, em matéria de regulação das relações sociais fotografadas pelo Direito Privado”. A exemplo do colega argentino, ministro Ricardo Lorenzetti, Edson Fachin também elogiou o capítulo específico sobre Direito Digital, proposto pela comissão de juristas.
— Impende respeitar a autodeterminação informativa, atenta à segurança no ambiente digital, ao desenvolvimento econômico e tecnológico, à inovação, à livre iniciativa, e sobranceiramente ao exercício da cidadania. Com acerto, acentuam-se aí as preocupações com a inclusão e a acessibilidade digital, a ética e a proteção integral da criança e dos adolescentes. Desafios esses que não são ínfimos — afirmou.
Direito da família
A relatora da comissão de juristas que elaborou o Código Civil argentino, Aida Kemelmajer, destacou que uma das preocupações do colegiado foi manter na legislação do país vizinho o direito das famílias. Ela explicou que, em outras nações latinoamericanas, o tema foi excluído dos respectivos códigos e tratado em leis autônomas.
— No nosso critério, e creio que nisso Brasil e Argentina estão unidos, consideramos os direitos da pessoa individualmente e nas suas relações de família como algo que deve pertencer à estrutura do Código Civil. O direito das pessoas e das famílias integra hoje não apenas o Código Civil, mas forma o que chamamos de bloco de constitucionalidade. Há muitos princípios constitucionais e nos tratados de Direitos Humanos que impactam as relações de família — explicou.
Aida Kemelmajer destacou a “coragem” demonstrada pela comissão de juristas brasileiros, que a inclusão no Código Civil de temas considerados tabu na Argentina.
— Vocês tiveram coragem e se animaram a incorporar ao projeto — e nós não — a multiparentalidade. Vocês estão regulando por um critério mais moderno que o nosso temas como o respeito à reprodução humana assistida. Nós tivermos muitos problemas para regular isso. Entre os artigos, estão a gestação por substituição e a incorporação do embrião após a morte (dos pais). Aplauso para o Brasil, que se anima a regular esses temas — afirmou.