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O decreto presidencial nº 11.150/2022 e seus efeitos sociais

24 de outubro de 2022

Defensor Público do Distrito Federal/ Coordenador da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Anadep

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O abandono das famílias superendividadas a um regime de escravidão moderna

Em julho do ano passado, comemorou-se com esperança a chegada da Lei nº 14.181/2021, a Lei do Superendividamento, que promoveu mudanças no Código de Defesa do Consumidor (CDC), a fim de prevenir e tratar o problema endêmico do superendividamento, mediante mecanismos que possibilitam que o devedor cumpra suas obrigações com seus credores, sem que tenha a sua renda comprometida a ponto de não conseguir manter as suas despesas básicas.

Com base nas finalidades acima expostas, a Lei nº 14.181/2021 adotou o princípio da proteção do mínimo existencial, acrescentando o inciso XII ao art. 6º do CDC. A definição do valor, patamar ou percentual do mínimo existencial, entretanto, não foi estabelecida pela Lei do Superendividamento, sendo seu conceito objeto de posterior regulamentação.

Por mais de um ano esteve a Lei em vigência, sem que houvesse qualquer regulamentação. Nesse período, a doutrina pátria vinha definindo-o como além do mínimo vital ou de sobrevivência, remetendo ao conceito de dignidade em sua dimensão sociocultural e ao supra princípio da dignidade da pessoa humana, abrangendo os direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, previstos no art. 6º da Magna Carta.

Nos bastidores, as instituições financeiras faziam seu lobby. Falava-se no valor do salário mínimo, enquanto os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor argumentavam pela necessidade de um percentual da renda, de modo a não promover alterações profundamente radicais na vida de tantas famílias.

O poder de influência do sistema financeiro foi maior do que o previsto e, em 26 de julho de 2022, a Presidência da República editou o Decreto nº 11.150/2022, definindo o mínimo existencial como 25% do salário mínimo vigente na data de publicação do decreto (não reajustável pela alteração do salário mínimo), o que representa o valor de R$ 303,00, sem fazer menção alguma a quantas pessoas seriam sustentadas por aquela renda (uma família com uma pessoa teria o mesmo mínimo existencial que uma família com três ou quatro integrantes).

Em escala global, estão na linha de extrema pobreza, as pessoas que sobrevivem com menos de U$ 1,90 por dia (R$ 293,55 ao mês no câmbio de hoje), valor extremamente próximo ao que foi estabelecido como mínimo existencial. Tratando-se de unidade familiar (mais de uma pessoa) sustentada por essa renda, estará abaixo da linha de pobreza.

Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o custo dos alimentos básicos componentes de uma cesta básica mensal, no mês de junho de 2022, foi de R$ 777,01 em São Paulo e de R$ 733,14 no Rio de Janeiro. Os menores valores médios foram registrados em Aracaju (R$ 549,91), Salvador (R$ 580,82) e João Pessoa (R$ 586,73). Ou seja, o mínimo existencial no valor de R$ 303,00 não garante sequer a alimentação básico do mês, que dirá as demais despesas com água, energia elétrica, aluguel, vestuário, transporte, saúde e outros.

Ante o exposto, torna-se claro que o valor determinado como mínimo existencial não leva em consideração a realidade atual da população brasileira. Inclusive, segundo afirma o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), o recente aumento no valor do Auxílio Brasil também ficará prejudicado com o novo decreto, uma vez que a população endividada no Brasil alcança o patamar de 77% das famílias, e muitas destas possuem como única renda o referido programa social.

A despeito da patente desproporção, incoerência, inconstitucionalidade e outros adjetivos que por certo não soarão exagerados, percebe-se que há um sentimento social de pouca empatia com o tema. Algo que se traduz como a ideia de que um superendividada está simplesmente colhendo aquilo que semeou, tratando-se de pessoas que desejam viver além de suas condições salariais. Ainda que não se possa excluir a identificação de muitos nesse perfil, aqueles que atendem pessoas nessas condições todos os dias, como é o meu caso como Defensor Público do Núcleo de Defesa do Consumidor, sabem que há diversos outros fatores que levam a esta condição. Recentemente, o aumento do material de construção durante a pandemia, em patamares próximos a 300% levou a um endividamento daqueles que estavam a construir a casa própria. O aumento do divórcio (também atrelado ao período de pandemia), dividiu a renda de famílias. Problema de saúde, também evidentes em época de pandemia é outro problema comum.

De todo modo, é preciso lembrar que aos bancos é conferido o dever de conceder o crédito de modo responsável (art. 6º, XI e 54-D, II, do CDC). Isso implica dizer que o banco, que tem o conhecimento especializado da atividade que executa, o know how do negócio, sabe precisamente quando a concessão de crédito está a comprometer percentual da renda além do que o consumidor pode pagar e, nesses termos, é corresponsável pelo estado de superendividamento. 

Desse modo, ainda nos casos de um perdulário, pródigo, irresponsável (ou outros adjetivos que se possam lançar a fim de justificar o abandono do devedor a seu próprio destino), não se pode afastar a corresponsabilidade da instituição financeira. Ademais, assim como não abandonamos na saúde pública o portador de câncer de pulmão ao seu destino, simplesmente atribuindo-se culpa pelos anos de tabagismo, não se pode abandonar famílias para viverem abaixo da linha de pobreza em razão de suas dívidas.

Quando um banco retira da conta corrente do consumidor todo o seu salário, deixando apenas o mínimo ora referenciado de R$ 303,00, temos condição análoga à escravidão, em que todo o fruto do trabalho é destinado ao senhor. A Roma e a Grécia antiga permitiam expressamente em seu sistema a escravidão por dívida, mas, ainda assim, era surpreendentemente mais humana, pois ao escravo por dívida, deveria ser garantida a alimentação, moradia, vestuário e integridade física, direitos hoje não garantidos pelo mínimo de R$ 303,00.

É desnecessário lembrar que o Decreto Presidencial tem a função de regulamentar a Lei (art. 84, IV, da Constituição Federal), de dar-lhe eficácia, de modo que, toda vez que contraria ou mitiga seus dispositivos, princípios e a própria ratio legis, revela-se norma não escrita, que carece de validade, juridicidade e eficácia, pois não pode e não tem essa função.

Ex positis, as limitações impostas pelo Decreto nº 11.150/2022 representam um abuso do poder regulamentar, vez que desrespeitam os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da proteção ao consumidor, positivados, respectivamente, no inciso III do art. 1º, nos incisos II e XXXII do art. 5º, todos da Constituição Federal.

Nota_______________________________

1 Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202206cestabasica.pdf