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O impacto da Lei Anticorrupção na recuperação judicial de empresas

22 de setembro de 2016

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Professor Supervisor do Centro de Justiça e Sociedade — CJUS da FGV Direito Rio, mestre em Direito Processual Civil e bacharel em Direito. Juiz Titular da 1º Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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Luiz Roberto AyoubA Lei no 12.846/2013, também conhecidacomo Lei Anticorrupção, em vigor desde 29 de janeiro de 2014, surge com o objetivo de suprir uma lacuna existente no sistema jurídico brasileiro no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos.

Referida lei ganhou projeção em meio às recentes investigações da Lava Jato, operação anticorrupção conduzida pela Procuradoria da República no Paraná e pela Polícia Federal, e muda o cenário das punições para as empresas envolvidas com as mencionadas atividades transgressivas. Por certo, o Código Penal (Decreto-lei no 2.848/1940) e a Lei de Licitações (Lei no 8.666/1993) já discorrem sobre práticas ilícitas contra a Administração Pública há décadas, porém somente pessoas físicas podiam ser punidas por esses crimes. Com a nova legislação, as empresas estarão aptas a serem responsabilizadas, no âmbito administrativo e civil, mesmo se não houver envoltura por parte dos seus sócios e/ou administradores.[1]

Se, por um lado, a Lei Anticorrupção prestigia a opção político-legislativa de atribuir responsabilidade às pessoas jurídicas pelos atos ilícitos cometidos, preenchendo o vazio até então existente no sistema jurídico brasileiro, sob outro ângulo amarga objeção. A pessoa jurídica enquadrada nas penalidades da citada lei, por limitação natural, não age em consciência própria e, portanto, depende de ato culposo ou doloso de um agente físico.

Mencionado argumento está apoiado na premissa de que não se pode admitir que qualquer pessoa – inclusive jurídica – responda por uma infração sem que ao menos lhe tenha dado causa de forma dolosa ou culposa, sendo imprescindível, para isso, que se demonstre a sua responsabilidade subjetiva, sem a qual não é legítima a imposição de pena.

Assim, as empresas poderão ser penalizadas de maneira desvinculada da responsabilidade de seus sócios e/ou administradores. Poder-se-ia, nesse sentido, ter sido encampada uma predileção político-legislativa de se continuar punindo tão somente as pessoas físicas que praticaram o ilícito e não a pessoa jurídica – ficção legal que desempenha relevante papel socioeconômico como fonte produtora de bens e serviços, geradora de empregos e pagadora de tributos –, aspirando não sobrecarregar as finanças da empresa que nada fez.

De acordo com o art. 6o, inciso I da Lei Anticorrupção, na esfera administrativa, as multas aplicadas às empresas condenadas variarão no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos. Não poderá a penalidade, todavia, ser inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação. Caso não seja viável utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), conforme versa o parágrafo 4o do supradito dispositivo.

Já o art. 19, inciso I, por sua vez, dispõe a responsabilização judicial, atribuindo ao ente público lesado pelo ato violador (a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) e ao Ministério Público, a legitimidade para propor demanda com vistas, dentre outras medidas, ao perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração.

Dessa forma, a seara administrativa é capaz de impor a multa sancionadora, ao passo que a judicial tem força para tomar de volta a vantagem ou o proveito indevido percebido.

A nova legislação prevê ainda um pacto que permite amenizar os corretivos para as empresas que colaborarem com as investigações – os acordos de leniência. Além do reconhecimento da prática do ato ilícito e da delação no processo, as empresas devem reparar integralmente o dano causado aos cofres públicos (parágrafo 3o do art. 16 da lei), contando com o incentivo da redução em até 2/3 (dois terços) do valor da multa administrativa aplicável. Os efeitos do acordo de leniência poderão ser estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o compromisso em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas (parágrafo 5o).

O art. 4o, no que lhe concerne, com o intuito de preservar que reorganizações societárias fossem desenhadas de modo a elidir com a responsabilidade daquela empresa específica sentenciada, instituiu que subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.

Sublinhe-se que o parágrafo 1o do art. 4o revela que, nas situações únicas de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora deve ficar restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido. Para a circunstância de alteração contratual e cisão, no entanto, deve a sucessora pagar por toda a dívida da sucedida, derivada da Lei Anticorrupção.

Veja-se a redação do reportado dispositivo da Lei Anticorrupção:

Art. 4o. Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.

§ 1o  Nas hipóteses de fusão e incorporação, a res­ponsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados.

O cenário, contudo, se mostra desassossegador, quando pesquisa da consultoria KPMG com 80 (oitenta) companhias brasileiras de grande porte mostra que 80% (oitenta por cento) dessas não conhecem bem a nova lei. Esse porcentual foi verificado em levantamento efetuado durante a 40a mesa de debates do ACI (Audit Committee Institute), iniciativa independente promovida pela KPMG para discutir temas relacionados à governança corporativa, riscos, compliance, entre outros assuntos.[2]

Frise-se, por oportuno, que não se trata somente das finanças das empresas que restarão combalidas com as multas administrativas vultuosas e a determinação judicial de restituição das vantagens indevidamente obtidas. Deve ser levado em consideração, de igual modo, o potencial efeito negativo da condenação – ou mesmo da mera divulgação pela imprensa de que determinada empresa está sendo investigada – no valor das ações das companhias negociadas nas principais bolsas de valores mundiais, da reputação, da imagem, da perda de vantagem competitiva das empresas implicadas e o possível rebaixamento da nota de crédito pelas agências de avaliação de risco. Se não for firmado acordo de leniência e decorrer condenação administrativa e/ou judicial, há, além do mais, a possibilidade de se seguir a declaração de inidoneidade da companhia para impedi-la de participar em licitações e/ou contratar com a Administração Pública.

Sucede-se uma peculiaridade relativa à economia nacional a justificar a preocupação com o tema. A figura do Estado como indutor de políticas econômicas, no chamado “capitalismo de Estado”, combina as forças do Estado com as forças do capitalismo, ajudando a explicar resultados de políticas públicas envolvendo atores empresariais do país.

O Estado é participante e influente, talvez mais atuante do que nunca na configuração do capitalismo brasileiro, podendo ser visto até mesmo como o mais destacado financiador da atividade econômica. Os empréstimos e financiamentos concedidos pelas agências e bancos de fomento, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e a atuação dos fundos de pensão dos servidores das empresas estatais demonstram a existência de um Estado protagonista, que conforma e conduz o mercado.

Há grande espaço, do mesmo modo, para as empresas contratarem com a Administração Pública de um país de extensão territorial continental, desde a construção de grandes obras públicas até o fornecimento de insumos para a prestação de serviço público, como material escolar e fármacos. A própria reforma do Estado, com a redução do tamanho do setor público, trouxe consigo as privatizações e as concessões e a resultante criação das agências reguladoras, tornando frequente a comunicação e a proximidade das esferas pública e privada.

Esse complexo emaranhado de relações entre as forças do Estado com as forças do capitalismo propiciam um contato intenso e repetido, contudo também semeador de um terreno fértil para que se possa praticar atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos, incidindo a Lei Anticorrupção – um bebê de quase três anos e, repise-se, com conteúdo desconhecido por 80% (oitenta por cento) das grandes companhias nacionais – como medida de repressão e correção às empresas privadas.

Por conseguinte, uma empresa anunciada pelos meios de difusão da informação por relações controvertidas com o Estado, sendo (i) meramente investigada, tendo (ii) assinado acordo de leniência ou (iii) já condenada administrativa e/ou judicialmente, se encontra passível de sofrer significativo abalo e danos financeiros em suas atividades.

Aqui o caminho pode ser de “fora” para “dentro” ou, ao reverso, de “dentro” para “fora”. No primeiro caso, tem-se uma empresa que, por efeito de escândalos de práticas ilícitas contra a Administração Pública, sofre sucessivos prejuízos relativos às suas finanças e postula recuperação judicial. O segundo se configura quando, já no curso do processo de recuperação judicial originado por fundamentos diversos, se descobre algum ato de antijuridicidade contra determinado ente público.

A recuperação judicial, na outra ponta, tem por objetivo, nos termos do art. 47 da Lei no 11.101/2005, marco legal que a disciplina, tornar viável a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. É, portanto, a ferramenta jurídica para solucionar a crise empresarial, reorganizando a sociedade e permitindo a equalização do passivo e que não se paralise o funcionamento e as operações, dando-lhe nova chance de êxito.

Ocorre que se apresenta extremamente árdua a recuperação de uma situação de crise financeira sem a possibilidade de contar com novos recursos. Nesse momento de dificuldade, a empresa necessita de capital para dar andamento em suas atividades normais ou mesmo para que possa se reinventar rumo à superação da crise. Ciente dessa necessidade, a Lei no 11.101/2005 prevê algumas alternativas, como o benefício concedido ao credor que continua apostando na empresa insolvente e que fornece bens, serviços ou mesmo recursos durante o processo de recuperação judicial (os créditos extraconcursais do art. 67) e o extenso rol exemplificativo de meios de recuperação, com vistas a permitir todas as formas que se mostrem viáveis à continuidade das atividades empresariais (art. 50).

Dentre os procedimentos listados no art. 50 da Lei no 11.101/2005 têm-se, como mais conhecidos: a) a cisão[3], incorporação[4], fusão[5] da sociedade empresária (inciso II); b) a constituição de subsidiária integral[6] (inciso II); c) a alteração do controle societário (inciso III); d) a substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos (inciso IV); e) o trespasse do estabelecimento (inciso VII); f) a dação em pagamento de bens (inciso IX); g) a constituição de sociedade de credores (inciso X) ou de propósito específico, para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor (inciso XVI); e h) a venda parcial dos bens (inciso XI).

A controvérsia, identificada de forma precursora pelo eminente professor Cássio Cavalli, em simpósio na Associação Comercial do Rio de Janeiro, reside em identificar quais dos mecanismos reparatórios de uma empresa em processo de recuperação judicial (art. 50), que já foi ou deve ser condenada por ato ilícito contra a Administração Pública, podem causar a aludida transmissão de responsabilidade do art. 4o da Lei Anticorrupção, com a obrigação do pagamento da multa administrativa e/ou da restituição das vantagens indevidamente obtidas.

O mais forte argumento, favorável à transmissão, está no limite específico ao plano de recuperação judicial encontrado no caput do art. 50 da Lei no 11.101/2005, que, ao arrolar exemplificativamente os meios de recuperação judicial, ordena obedecer a “legislação pertinente a cada caso”.

Assim, na hipótese do plano prever a cisão, incorporação ou transformação da sociedade, ou transformações de quotas ou ações (inciso II do art. 50); bem como a alteração do controle societário (inciso III do art. 50) e a substituição dos administradores da empresa devedora (inciso IV do art. 50), que são espécies de mecanismos reparatórios por reorganização societária, deverá ser observada a legislação societária aplicável (como a Lei no 6.404/1976) a cada caso. Se o plano, de outra parte, resultar em ato de concentração que deverá ser analisado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, empenha-se a legislação concorrencial. Se, de outro ponto de bens vista, o plano envolver reorganização societária de empresa enredada com ato ilícito contra a Administração Pública, emprega-se a legislação anticorrupção e, consequentemente, seu art. 4o, subsistindo a responsabilidade ao produto resultante.

Especialmente no que toca à alienação de ativos (inciso VII do art. 50), inovou a Lei no 11.101/2005, bem como o parágrafo 1° do art. 133 do Código Tributário Nacional, com as alterações da Lei Complementar no 118/2005, ao tratarem das chamadas “unidades produtivas isoladas”, popularizadas sob a sigla UPI, dando tratamento ao tema da sucessão de dívidas, excluindo a sucessão de qualquer natureza, incluindo a referente a débitos tributários, quando da alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada em processo de recuperação judicial.

O propósito do legislador foi claro: viabilizar e, sobretudo, incentivar o ingresso de recursos na empresa com dificuldade financeira por meio da venda de parte de seus estabelecimentos e/ou bens, agregando o benefício da ausência de sucessão e, com isso, potencialmente aumentando o número de compradores interessados e melhorando o preço desses ativos.

Assim, conforme a dicção do art. 1.142 do Código Civil, a fábrica, a usina, o estaleiro, a refinaria, a destilaria, a transportadora, o estabelecimento industrial ou comercial, com todos os seus bens, imóveis, instalações, equipamentos, maquinário, elementos materiais e imateriais, ou porventura um conjunto separado dessas unidades produtivas, ou ainda bens incorpóreos como o direito à titularidade de slots e holtrans em aeroportos, vendidos judicialmente, passam a pertencer a outra empresa, sob novo controle e administração.

Confira-se, a propósito, a redação do parágrafo único do art. 6º:

Art. 6º. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei.

Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1o do art. 141 desta Lei. (grifou-se)

E do parágrafo 1o do art. 133 do Código Tributário Nacional:

Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato:

(…)

§ 1o O disposto no caputdeste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: (Incluído pela Lcp no 118, de 2005)

(…)

II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. (Incluído pela Lcp no 118, de 2005) (grifou-se)

Dessa forma, no tocante ao trespasse de estabe­lecimento, o parágrafo único do art. 60 da Lei no 11.101/2005, expressa uma cláusula absoluta que estabelece que a alienação judicial pura, simples e única de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor (inciso VII do art. 50) as deixam inteiramente livres e desembaraçadas de quaisquer ônus. Uma sanção administrativa e/ou judicial, assim, seja por ausência de previsão na Lei Anticorrupção, seja pelo disposto no parágrafo único do art. 60, não poderá alcançar o estabelecimento alienado.

Repare-se que o caput do art. 60 faz referência à “alienação judicial” e a parte final do dispositivo pormenoriza o dever do juiz, na hipótese, de ordenar a sua realização, observando o disposto no art. 142 da lei.

O art. 142, visando assegurar a impessoalidade e o princípio da igualdade ao longo do processo, retrata:

Art. 142. O juiz, ouvido o administrador judicial e atendendo à orientação do Comitê, se houver, ordenará que se proceda à alienação do ativo em uma das seguintes modalidades:

I – leilão, por lances orais;

II – propostas fechadas;

III – pregão.

§ 1o A realização da alienação em quaisquer das modalidades de que trata este artigo será antecedida por publicação de anúncio em jornal de ampla circulação, com 15 (quinze) dias de antecedência, em se tratando de bens móveis, e com 30 (trinta) dias na alienação da empresa ou de bens imóveis, facultada a divulgação por outros meios que contribuam para o amplo conhecimento da venda.

§ 2o A alienação dar-se-á pelo maior valor oferecido, ainda que seja inferior ao valor de avaliação.

(…)

O art. 144 ainda no mesmo capítulo, por seu turno, consagra verdadeira cláusula geral que que permite ao juiz, diante da porosidade da cláusula – textura aberta – possibilitar o manejo da regra geral do art. 142, ajustando o direito à realidade e dimensão do caso concreto.

Art. 144. Havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta Lei.

 O conjunto de problemas surge quando a alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial, vem acompanhada de reorganização societária.

No ponto, convém relembrar que a Lei Anticorrupção, em seu art. 4o, consagra a vontade do legislador de limitar a transferência da responsabilidade por sucessão a determinados cenários taxativos e expressos, notadamente às hipóteses de reorganização societária, dentre as quais se inclui a cisão, a incorporação, a fusão e a alteração contratual. Essas opções, lembre-se, são consideradas como meios de recuperação judicial nos incisos II e III do art. 50 da Lei no 11.101/2005.

Como exemplo bem-sucedido de recuperação judicial por intermédio de um mecanismo de reorganização societária incutida também com alienação judicial de unidades produtivas isoladas, tem-se o precedente da “Casa & Vídeo”, rede que comercializa de eletrodomésticos a ferramentas, em fase final de tramitação na 5a Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e conduzido pela eminente juíza Mariada Penha Victorino.

O estopim da crise da varejista foi a Operação “Negócios da China”, em atuação conjunta da Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal, em novembro de 2008, que investigava crimes de sonegação fiscal, contrabando e lavagem de dinheiro por parte dos gestores da companhia e chegou a prender treze membros da administração do conglomerado.[7]

Três sociedades do grupo postularam recuperação: “Mobilitá Comércio, Indústria e Representações LTDA” e “Lar e Lazer Comércio e Representações LTDA”, que eram as empresas operacionais, e “Paraibuna Participações LTDA”, detentora original de direitos contratuais de uso, gozo e fruição da maioria dos pontos comerciais de “Mobilitá” e de “Lar e Lazer”.

A continuidade da realização da atividade econômica ocorreu através da segregação das atividades das empresas em recuperação em três unidades produtivas isoladas: a “Casa e Vídeo Licenciamentos” (sociedade cuja atividade exclusiva é o licenciamento de marcas “Casa & Vídeo” e outras para exploração econômica nos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e demais Estados da Federação); a “Casa e Vídeo Rio de Janeiro” (sociedade cuja atividade é a operação de atividade de varejo no Estado do Rio de Janeiro, admitindo expansão, vendas web e vendas televendas; e a “Casa e Vídeo Espírito Santo” (sociedade cuja atividade é a operação de varejo no Estado do Espírito Santo, admitindo expansão, possuindo uma loja em Juiz de Fora e excluindo as vendas web e vendas televendas).

O plano de recuperação, homologado em outubro de 2009, previu também a alienação judicial de cada uma das unidades produtivas com a aquisição do controle acionário pela sociedade anônima “Casa e Vídeo Holding S/A”, controlada por um fundo de investimentos denominado “FIP Controle”, constituído por credores optantes que converteram os seus créditos em quotas do referido fundo com deságio de 50% (cinquenta por cento) e por investidores financeiros.

Se, à época dos fatos, existisse e vigorasse a Lei Anticorrupção, poderia o Grupo “Casa & Vídeo” ter sido, dada à natureza das práticas lesivas à Administração Pública pelo qual foi investigado, condenado nas sanções administrativas e cíveis da normativa de referência. Caso isto acontecesse, além de grave dificultador à recuperação judicial, haveria uma sensível antinomia jurídica entre o art. 4o da Lei Anticorrupção e o art. 60, parágrafo único da Lei Recuperacional e de especial afeição à “Casa e Vídeo Holding S/A”.

De um lado, a regra que subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de cisão societária e de alteração contratual quando praticado ato ilícito em face da Administração Pública (art. 4o). De outro, a norma que dispõe livre de qualquer ônus a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor no processo de recuperação judicial (art. 60, parágrafo único).

Já que, no distante, escapou-se de materializar o referido paradoxo, o porvir prenuncia ser assertivo.

A inclusão da OAS, uma das maiores construtoras do Brasil, na investigação da Operação Lava Jato, restringiu a oferta de crédito à empresa e trouxe dúvida quanto à sua capacidade de conseguir novos contratos com o governo. Nesse contexto, a nota de crédito da empreiteira foi rebaixada pela agência de rating Standard & Poors, em janeiro de 2015, o que resultou no vencimento antecipado de suas dívidas.[8]

Foi nesse cenário que, de forma abrupta, a situação de caixa de curto prazo das empresas do conglomerado sofreu deterioração, circunstância que provocou um inevitável calote em credores nacionais e estrangeiros. Para evitar a falência, dez sociedades do Grupo OAS, sediadas no Brasil e no exterior, apresentaram, em março de 2015[9], requerimento único de recuperação judicial, ora em tramitação na 1a Vara Especializada de Falência e Recuperações Judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo. O plano de recuperação da OAS foi homologado pelo juízo em 27 de janeiro de 2016, sendo, concomitantemente, concedida a recuperação judicial.

No referido plano recuperacional, consta na página 15, nos itens 3.1.1 e 3.1.4, como meios de recuperação, precisamente a alienação de bens do ativo permanente em conjunto com a reorganização societária:

3. Meios de Recuperação

3.1. Visão Geral dos Meios de Recuperação. Para que as Sociedades Integrantes do Grupo OAS possam recompor o capital de giro necessário para continuidade de suas atividades e preservação de seus ativos, bem como para o desenvolvimento de seu plano de negócios de forma redimensionada, sem prejuízo do Financiamento DIP, é i dispensável que as Sociedades Integrantes do Grupo OAS possa, no âmbito da Recuperação Judicial e dentro dos limites estabelecidos pela Lei de Falências e por este Plano, adotar os seguintes meios de recuperação:

(…)

3.1.1. Alienação de Bens do Ativo Permanente. As Sociedades Integrantes do Grupo OAS, quando cabíveis, pretendem promover a alienação e/ou oneração de bens que integram seu ativo permanente, com exceção daqueles que integram o novo plano de negócios das Sociedades Integrantes do Grupo OAS, nos termos do quanto disposto na Cláusula 5a. Assim, serão alienadas algumas das participações societárias detidas pela OASI.

(…)

3.1.4. Reorganização Societária. As Sociedades Integrantes do Grupo OAS poderão submeter‐se a procedimentos para reorganização societária, de forma a obter a estrutura societária mais adequada para o desenvolvimento de suas atividades tal como redimensionadas no contexto da Recuperação Judicial e do plano de negócios decorrente da implementação deste Plano, sempre no melhor interesse das Sociedades Integrantes do Grupo OAS, dos seus Credores e visando ao sucesso da Recuperação Judicial.[10]

Somando a estipulação do meio de reorganização societária no plano de recuperação da OAS, com o fato da companhia não ter logrado êxito – pelo menos ainda – em celebrar o acordo de leniência com as autoridades competentes (ou ainda que o tivesse firmado, posto que desinfluente para o resultado), tem-se o cenário de eminência do conflito normativo.

De qualquer forma, a OAS já está com a recuperação judicial concedida e pode ser surpreendida a todo instante com um processo administrativo e/ou judicial de responsabilização e, mais à frente, com possível condenação. Esse quadro de hesitação, especialmente quanto à sucessão, inquieta e afugenta investidores em potencial da alienação de estabelecimentos e/ou de bens e da reorganização societária, prejudicando o próprio sucesso da recuperação judicial do grupo.

E, afinal, verifica-se a transferência da responsabilidade por sucessão quando há uma recuperação judicial com reorganização da sociedade cumulada com a venda judicial de ativos?

Argumenta-se, do lado simpatizante, de início, pela necessidade de se garantir e reafirmar a ordem jurídica. Assim, não se pode abrir uma exceção para deixar de punir uma empresa pecuniariamente porque está em situação de crise.

Sabe-se que a corrupção é um dos grandes males que afetam a sociedade. São notórios os custos políticos, sociais e econômicos que acarreta. Compromete-se a legitimidade política, enfraquece-se as instituições democráticas e os valores morais da sociedade, além de também produzir um ambiente de insegurança no mercado econômico, comprometendo o crescimento econômico e afugentando novos investimentos. O controle da corrupção assume, portanto, papel fundamental no fortalecimento das instituições democráticas e na viabilização do crescimento econômico do país, sendo que as punições com base na Lei Anticorrupção agem como fator dissuasivo e inibidor de novas práticas pelo corpo social.

Além disso, por uma razão jurídica, a Lei Anticorrupção, de 2014, é cronologicamente mais nova que a Lei Recuperacional de 2005, devendo prevalecer a norma posterior. Designa-se a este princípio o termo em latim “lex posterior derogat legi priori”, ou seja, lei posterior derroga leis anteriores.

E pelo critério específico, entende-se a supremacia da norma mais específica ao caso em questão. Desta forma, no caso da existência de duas normas incoerentes uma com a outra, observa-se se ao dispor sobre o objeto conflituoso, que uma delas possui caráter mais específico, em oposição a uma compleição mais genérica. Na conflagração de dispositivos analisada, a norma geral versa sobre a transmissão da responsabilidade por sucessão na hipótese de alienação judicial de unidades produtivas isoladas de empresas com reorganização societária (Lei Recuperacional). Já a norma específica reza sobre a idêntica situação, adicionando a peculiaridade de se tratar de empresas envolvidas com atos ilícitos contra a Administração Pública (Lei Anticorrupção).

De mais a mais, repisa-se, o caput do art. 50 da Lei no 11.101/2005, que, ao arrolar exemplificativamente os meios de recuperação judicial, impõe o dever de se observar a “legislação pertinente a cada caso”, devendo, por isso, ser empenhada a transmissão da responsabilidade assentada na Lei Anticorrupção.

Além de tudo, para se livrar dos efeitos das condenações com base na Lei Anticorrupção, as recuperandas terão o incentivo de introduzir no plano e, posteriormente, operar uma alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada, por mais mínima e desnecessária que seja à superação da crise, mas com o escopo de tão somente escapar do art. 4o da referida lei, tornando-o letra morta e desatendendo sua função originária.

No sentido contrário, apresenta-se a primordialidade de se preservar a empresa (art. 47 da Lei no 11.101/2005). Deve-se, pois, privilegiar a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Eventual decisão em contrário, para mais, poderia maltratar o princípio da proporcionalidade. Vale lembrar que o artigo 8o do novo Código de Processo Civil determina que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum”, além de observar “a proporcionalidade”. Uma medida tomada com o fim de ratificar o combate à corrupção gera, como efeito colateral, restrições à coletividade de credores, aos trabalhadores da companhia, à própria Administração Pública como destinatária dos tributos e aos próprios consumidores (se a recuperanda for concessionária de serviços públicos), sendo necessária a meticulosa ponderação entre dano e benefícios para que se avalie a validade da medida.

O critério específico, por seu turno, pode servir também para o outro lado. Por se estar no bojo de um processo de recuperação judicial, pode-se entender a Lei no 11.101/2005 como a mais específica ao problema concreto, sendo a Lei Anticorrupção mais genérica, e aplicável às hipóteses não reguladas por legislação especial (como a recuperacional).

E, completando este último argumento, pode-se sustentar que o único meio de recuperação judicial arrolado no art. 50 da Lei no 11.105/2005, ao qual não se aplica a legislação extraconcursal consiste na alienação de unidade produtiva isolada (inc. VII do art. 50 da LRF), devido a matéria ser expressamente disciplinada pela Lei no a11.101/2005.[11]

Seja qual for a alternativa a ser adotada, por certo, tanto a Lei no 11.101/2005 como a Lei no 12.846/2013 trazem enormes desafios que o tempo e os tribunais superiores serão os responsáveis por darem a solução correta, mormente tratando-se de uma legislação pintada com tintas jurídicas e econômicas que têm reflexos imediatos e importantes na economia do país.

Enquanto não há resposta certa para o deslinde da questão, com efeito, a indefinição sobre a possibilidade de sucessão de dívidas causa instabilidade e inconsistência aos investidores e potenciais interessados na aquisição dos bens da empresa em recuperação e/ou na reorganização societária desta. Estes deixarão, afinal, de aportar recursos, diante do magnânimo risco de se ver o produto sucessor da reorganização societária ser alcançado pelas iras da legislação anticorrupção.

Se o legislador não se preocupou em minimizar esse cenário de incerteza, é dever dos operadores do direito implicados (o juízo recuperacional, o Ministério Público e as autoridades administrativas responsáveis) estabelecerem recíproca cooperação jurídica interna, como sugere o art. 67 e seguintes do novo CPC.

No tocante, é preciosa a lição do eminente Ministro Marco Aurélio Mello, ao dizer, em palestra na Universidade de Coimbra em julho de 2015, que:

(…) O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas. Ante tal quadro, eis a pergunta que embasa esta breve exposição: O Direito ainda nos oferece segurança?[12]

Se a ausência de resposta definitiva à questão exposta não proporciona segurança aos investidores, de modo que estes necessitam dela e de previsibilidade para conduzir, planificar e conformar seus investimentos financeiros em empresas em recuperação judicial; devem os atores supraditos exercer um papel mais proativo e de cooperação jurídica interna, como sugere o CPC-2015, tencionando o afastamento das incertezas jurídicas para se preservar a empresa.

Pode-se, assim, em caráter antecedente e sem qualquer precipitação de julgamento, estimar a precificação do valor da multa administrativa e da restituição da vantagem ou do proveito indevidamente percebido, bem como avaliar-se a possibilidade da recuperanda preencher ou não os requisitos do acordo de leniência e também orçar suas potenciais deduções. Dessa maneira, aquele que deseja colocar dinheiro na empresa, terá antevisão da possível dívida total da companhia (incluindo as penas milionárias que podem advir da Lei Anticorrupção), estando mais apto a decidir se vale a pena realizar o investimento e para calcular com mais agudez a taxa de retorno.

Tal mecanismo visa também resguardar os acionistas da recuperanda, minimizando especulações no mercado em torno do valor das ações e, de igual forma, objetiva restringir a volatilidade financeira da empresa, isto é, delimitar a variável que mostra a intensidade e a frequência das oscilações nas cotações dos seus mais diversos ativos.

Em arremate, com esta exposição, a pretensão é a de provocar uma reflexão sobre a antinomia jurídica oriunda de duas importantes legislações – o art. 60, parágrafo único da lei recuperacional e o art. 4o da lei anticorrupção – que transportam reflexos na economia do país.

Por isso, é de vital importância a participação do juízo recuperacional, do Ministério Público e das autoridades administrativas responsáveis para, em um ambiente de cooperação jurídica interna, como instiga o art. 67 e seguintes do Código de Processo Civil recém-editado, trazer luzes para o investidor interessado em aportar recursos na recuperanda, enquanto não é definida pela jurisprudência dos tribunais superiores, se transmissível a responsabilidade à sucessora na hipótese do plano de recuperação prever alienação de ativos comungada à reorganização societária. Equaliza-se, deste modo, a necessidade de estimativa e previsibilidade do aportador de riquezas com a avidez da empresa por ter quem a capitalize, enquanto o Direito não oferece a segurança inapelável e terminante sobre ao tema.

 

Notas__________________

1 É o que dispõe o §1o do art. 3o da Lei Anticorrupção: “Art. 3o A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. § 1o A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput.

2 Disponível em <https://www.kpmg.com/BR/PT/Estudos_Analises/artigosepublicacoes/Documents/Advisory/pesquisa-compliance-no-brasil.pdf> Acesso em 24 jul. 2016.

3 Nos termos do art. 229 da Lei no 6.404/1976, que trata das sociedades por ações, “cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.”

4 Nos termos do art. 227 da Lei no 6.404/1976: “incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.”

5 Nos termos do art. 228 da Lei no 6.404/1976: “fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações”

6 De acordo com o art. 251 da Lei no 6.404/1976, “a companhia pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira.” Há ainda, conforme o art. 252 da mesma lei, a possibilidade de estabelecer uma subsidiária integral com “a incorporação de todas as ações do capital social ao patrimônio de outra companhia brasileira.”

7Polícia Federal e Receita fazem operação em grande rede varejista. Disponível em <http://oglobo.globo.com/economia/policia-federal-receita-fazem-operacao-em-grande-rede-varejista-3815152> Acesso em 25 jul. 2016.

8OAS deixa de fazer pagamento e tem rating rebaixado pela S&P. Disponível em <http://www.valor.com.br/empresas/3844994/oas-deixa-de-fazer-pagamento-e-tem-rating-rebaixado-pela-sp> Acesso em 25 jul. 2016.

9 Empresas da OAS pedem Recuperação Judicial. Disponível em <http://www.oas.com/oas-com/noticias/empresas-da-oas-pedem-recuperacao-judicial.htm> Acesso em 25 jul. 2016.

10 Disponível em <http://www.oas.com/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81A3934D2F94C8014E3FE249C81C4B> Acesso em 25 jul. 2016.

11 AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 231.

12O Direito em tempos de incertezas, por Marco Aurélio Mello. Disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI223331,41046-O+Direito+em+tempos+de+incertezas+por+Marco+Aurelio+Mello> Acesso em 26 jul. 2016.