Transação ou acordo: admissível sua homologação após o julgamento

31 de janeiro de 2010

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Com o advento do Código Civil de 2002, incluiu-se a transação na categoria de contrato inominado, conforme disciplina das regras contidas nos seus artigos 840 e seguintes, diversamente do que ocorrera com tratamento previsto no Código de 1916, em seus artigos 1025 a 1036, como uma das formas de extinção indireta das obrigações.

Segundo o Código de Processo Civil vigorante, a teor do seu art. 269, inciso III, trata-se de hipótese de extinção do processo com resolução de mérito.

No Código de Processo Civil de 1939, preconizava o seu art. 206 que “a cessação de instância[1] verificar-se-á por transação, ou desistência, homologada pelo juiz

Consoante observara Washington Barros Monteiro, a grande maioria dos Códigos contemporâneos considera a transação como contrato, atribuindo-lhe, por isso, efeitos translativos de direitos[2].

Nesse sentido, o Código Civil Francês e o Código Civil Italiano de 1942, como observado por Caio Mário da Silva Pereira[3].

O Código Civil Brasileiro de 1916, contudo, afastando-se dessa orientação, incluiu a transação entre os meios extintivos de obrigações, com efeitos meramente declarativos, orientação aplaudida por Clovis e Carvalho de Mendonça.

Opondo-se a essa posição, o eminente Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, já naquela época, sustentava, com invulgar e costumeiro brilho, que “a transação é contrato, porquanto resulta de acordo de vontades sobre determinado objeto”. Para tanto, invocava a frase genial de Carnelutti: transação “é a solução contratual da lide”.

Registre-se, a propósito, que os autores referidos já enfatizavam naquele tempo que não existia, em toda técnica jurídica, vocábulo tão frequentemente usado e tantas vezes radicalmente deturpado em seu significado como transação.

Com efeito, na linguagem comum, transação corresponde a “negócio”. Fala-se em transação comercial, transação bancária, transação de Bolsa e, hoje, até em transação eletrônica, com registros de débito e de crédito em cartões eletrônicos, na linguagem usual na área de informática.

De fato, trata-se de expressões que ensejam falsa idéia desse instituto, a ponto de a própria lei usá-lo no sentido vulgar[4], observando-se que, em todos esses casos, transigir significa apenas negociar.

Em seu sentido técnico, observara o emérito Professor da USP, que se tornava essencial à transação a existência de 2 elementos: (a) a reciprocidade do ônus e vantagens; e (b) existência de litígio, dúvida ou controvérsia entre as partes.

Por seu turno, Caio Mário da Silva Pereira incluiu o acordo, mediante declaração de vontade dos interessados; extinção ou prevenção de litígios e incerteza em torno do direito de cada um dos transatores, ou ao menos de um deles, como elementares à transação[5].

Postas tais considerações acerca da figura jurídica da transação, passa-se a examinar determinada questão surgida em processo judicial, em que as partes celebraram transação acerca de direitos disponíveis, sendo que, após haver sido julgada apelação, foi proferida a seguinte decisão: “Feito julgado. Estou deixando a homologação para o Juízo do 1o grau.”

Em seguida, o apelado requereu a “não-homologação da transação”, sendo acolhido esse pleito pelo Juízo de 2o grau, que o teria interpretado como tendo havido “retratação”, i.e., desistência da transação.

No primeiro momento, a eminente Magistrada de 2o grau entendeu que, após o julgamento da apelação pela Câmara Cível, ao Juízo de 2o grau falecia competência para homologar transação celebrada entre a apelante e o apelado.

No segundo, embora, literalmente, o apelado não haja utilizado tais termos, limitando-se tão-somente ao pedido de não-homologação, a eminente Magistrada interpretou esse pedido como sendo de “retratação”, i.e., de “desistência da transação”.

Essas são, pois, as duas questões:

Na primeira questão, caberia indagar se poderia a eminente Magistrada de 2o grau deixar de homologar a transação, se presentes se encontravam na espécie todos os seus elementos essenciais, eis que se estava diante de contrato de transação?

Na segunda, seria admissível a “desistência”, “retratação de transação” então formalizada pelas partes, a depender tão-somente da sentença homologatória?

Observe-se que, na primeira indagação, a questão coloca-se no plano processual; enquanto na segunda, situa-se no âmbito apenas de direito material.

Assim, com relação à primeira questão, urge salientar-se que, com o advento do Código Civil de 2002, a divergência que havia na doutrina acerca da natureza jurídica da transação ficou dissipada, pois entendeu o legislador ordinário que, deixando de ser “meio extintivo indireto de obrigações”, passou a categoria de “contrato”, resultante de acordo de vontades sobre determinado objeto.

Desse modo, em sintonia com a grande maioria dos Códigos contemporâneos, repita-se, ao contrato de transação, com o condão de atribuir efeitos translativos de direitos, aplica-se o princípio da força obrigatória que, em sua expressão mais objetiva, consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes, conforme advertia Orlando Gomes[6].

Celebrado com observância de todos os seus pressupostos e requisitos necessários à sua validade, o contrato deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos, asseverava o eminente e saudoso autor.

No processo ora referido, a servir de ilustração para o debate em tela, estavam presentes todos os elementos essenciais do contrato de transação, sendo que nenhum defeito insanável foi reconhecido na espécie (v.g. objeto ilícito, incapacidade das partes ou irregularidade do ato), sequer eventual incapacidade civil então alegada, por não se presumir e depender da interdição (art. 1.177 e segs. do CPC)[7].

Aliás, tornava-se necessário que se suspendesse o processo judicial, a teor da regra contida no art. 265, inciso I, do CPC, quando não se poderia prosseguir no feito.

Pois bem, uma de duas: ou se suspendia o processo para apurar eventual interdição de uma das partes; ou, ao contrário, se havia contrato de transação nos autos, essa avença deveria ter sido respeitada, por força da regra contida no art. 126 do CPC, a preconizar que ao Magistrado “no julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais”.

No entanto, a eminente Magistrada de 2o grau entendeu que: “(…) Conforme já analisado, o autor se retratou e desistiu do mesmo, e as apelações de há muito foram julgadas, cessando a competência desta Relatora para atuar”, negando, portanto, a aplicação do art. 840 e segs. do Código Civil e do art. 126 do CPC.

Como se observa, prosseguiu-se no feito, acolhendo-se a “não-homologação da transação”, porque teria havido “retratação”, i.e., desistência desse negócio jurídico.

Esse tema será examinado a seu tempo, ocupando-se, aqui, apenas da decisão da eminente Magistrada na parte grifada.

Com efeito, segundo acentua Aroldo Plínio Gonçalves, “registra-se forte tendência, no Direito brasileiro, de privilegiar a conciliação como meio de prevenir ou de solucionar litígios pela autocomposição dos interesses, dentro e fora do processo[8].

O acordo homologado em Juízo constitui meio hábil à resolução do conflito e não somente é admitido em qualquer fase do processo, como é amplamente incentivado no âmbito do Poder Judiciário, como melhor forma de solução de litígios.

Assim, sobrevindo, no processo, a transação, o Juiz não aprecia o pedido, não julga, nem resolve o mérito da lide, cabendo-lhe somente homologar o acordo celebrado, conforme adverte o ilustre autor.

Deve-se aduzir, igualmente, que o Magistrado dirigirá o processo, conforme as disposições do CPC, competindo-lhe “tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes”, segundo a regra contida no inciso IV, do art. 125, acrescentado pela Lei nº 8.952, de 13.12.94.

Esse é o sentido do moderno processo civil brasileiro, que inclui, dentre os deveres fundamentais do Juiz, para a definitiva pacificação dos litigantes, satisfação dos direitos e eliminação dos conflitos, o de tentar, em qualquer tempo, a conciliação entre as partes, consoante também enfatiza Cândido Dinamarco[9].

Daí o empenho da lei em exigir que o juiz se aplique nas tentativas de conciliação, não sendo essa regra uma simples recomendação aos juízes mais sensíveis ao valor da pacificação, mas um autêntico dever a ser cumprido, conforme expressão do emérito processualista.

Nesse sentido, são as campanhas promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos Tribunais, envolvendo os órgãos do Poder Judiciário em todos os graus de jurisdição, com o sloganConciliar é Legal”, com a promoção da “Semana Nacional de Conciliação”.

Nota-se, então, que é nesse contexto — pois, tudo adquire significado somente em relação a determinado contexto[10] — que foi proferida a referida decisão: “(…) as apelações de há muito foram julgadas, cessando a competência desta Relatora para atuar”, quando se propugna pela conciliação, em cujo campo encontra-se a transação e o acordo[11].

Desse modo, é à luz desse contexto que devem ser interpretadas as regras contidas no art. 521 do CPC  — que tem correspondência com o art. 463 do CPC (segundo o  qual o Magistrado não poderia inovar no processo) — e as contidas no art. 269, inciso III, também do CPC.

Ora, se se deve privilegiar a conciliação, em cujo campo se inclui a transação, admitida em qualquer fase (art. 125, inciso IV, do CPC), não há antinomia entre essa regra (em que teria o Magistrado encerrado o seu ofício) e o art. 269, inciso III, do  CPC, até porque o Juiz, no caso da transação, não julga, nem resolve o mérito da lide, apenas homologa o acordo.

Neste caso, o Magistrado apenas homologa, concorda, se ausente qualquer defeito insanável (v.g. objeto ilícito, incapacidade das partes ou irregularidade do ato).

Assim, no concernente a primeira questão suscitada, verifica-se que não há óbice, para que o Juízo de 2o grau homologue a transação, mesmo após o julgamento da apelação, quando presentes se encontrarem na espécie todos os seus elementos essenciais, posto que se está diante de contrato de transação.

Nesse sentido, é o julgado do STJ, da sua 5a Turma, REsp 50.669-7-SP, relator Ministro Assis Toledo, j. 8.3.95, v.u., DJU 27.3.95, p. 7.179: “Acordo homologado pelo juiz para pagamento parcelado da dívida, após sentença de mérito que julgara procedente a ação. Possibilidade, sem que isso implique afronta ao art. 471 do CPC”.

Na mesma linha desse entendimento, é outro julgado do STJ, que se encaixa como uma luva à hipótese sub examen:  3ª Turma – REsp 613.690 – ES, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16.6.05, v.u., DJU 26.9.05: “A oposição do sócio majoritário da sociedade de economia mista em regime de liquidação não impede que o Tribunal de origem examine o pedido de homologação de transação apresentada nos autos após o julgamento da apelação, na via dos embargos de declaração.”

No voto condutor, o saudoso Ministro Carlos Alberto Direito enfatizou que “(…) O óbice posto pelo Tribunal local não é pertinente. Se as partes envolvidas, devidamente representadas, isto é, o autor da ação e a sociedade de economia mista em regime de liquidação resolveram transacionar para pôr fim ao litígio, a eventual contrariedade do sócio majoritário, no caso, o Espírito Santo, não tem o condão de impedir as partes de realizarem transação, porquanto não é parte na lide. Esse é o comando dos artigos 1025 e 1028 do Código Civil de 1916 (artigos 840 e 842 do Código Civil de 2002). Vale lembrar que até mesmo em fase de recurso especial, já iniciado o julgamento, interrompido por sucessivos pedidos de vista, é possível examinar pedido de homologação de acordo (REsp no 237554/RS, relatora a Ministra Nacy Andrighy, DJ de 18.8.03).”

Consoante se infere, poderia e deveria ter sido homologada a transação no processo aqui mencionado, inexistindo qualquer óbice a que a eminente Magistrada de 2o grau, ou seja, que a Câmara Cível assim procedesse, porquanto a esse Juízo não falecia competência para homologá-la, naturalmente se ausentes qualquer defeito insanável (v.g. objeto ilícito, incapacidade das partes ou irregularidade do ato).

Quanto a segunda questão formulada, em que se indaga se seria admissível a desistência, retratação de transação então formalizada pelas partes, a depender tão-somente da sentença homologatória.

Para tanto, cumpre ressaltar-se, no plano do direito material, que, conforme observava Orlando Gomes, o contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido, sendo que, estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações correspondentes a cada parte, as cláusulas que o constituem têm, para os contratantes, força obrigatória.

Além desse princípio, diz-se que o contrato é intangível, para significar-se a sua irretratabilidade do acordo de vontades.

Nenhuma consideração de equidade justificaria a revogação unilateral do contrato ou alteração de suas cláusulas, que somente permitem um novo concurso de vontades, pois o contrato importa restrição voluntária da liberdade. Criado o vínculo, nenhuma das partes pode desligar-se sob o fundamento de que a execução a arruinará ou de que não o teria estabelecido se houvesse previsto a alteração radical das circunstâncias.

O princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos significa impossibilidade de revisão pelo juiz, ou de libertação por ato seu, valendo dizer que as cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, qualquer que seja a razão invocada por uma das partes.

Segundo o art. 421 do Código Civil de 2002, “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Consagra-se, assim, o princípio da autonomia da vontade, sendo que “o conjunto do regime contratual aí encontra seu fundamento com o princípio da liberdade contratual, o consensualismo, a força obrigatória e o efeito relativo do contrato, desde que observada a função social[12].

No Enunciado 22 aprovado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, destaca-se que “a função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.”

Na hipótese vertente, como o contrato obrigou os contratantes é inadmissível que um deles, unilateralmente, recuse-se a cumprir sua obrigação.

Para por fim a esse contrato, seria necessária a anuência dos contratantes ou a ocorrência de causa extintiva prevista em lei, sendo que a resilição unilateral somente seria admitida nos casos expressos em lei ou naqueles em que o contrato implicitamente a permitisse, operando-se mediante denúncia notificada ao outro contratante (art. 473 do Código Civil de 2002).

Se ocorrem motivos que justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação da nulidade ou da resolução do contrato, nunca para a modificação do seu conteúdo.

Irretratável o acordo, não há como as partes se desligarem do vínculo criado entre elas com a transação então celebrada, dada a força obrigatória do contrato.

Por isso, assim se entende no julgado do STJ, através da 3a Turma, no REsp 650.795, relatora a Ministra Nancy Andrighi, em 7.6.05, v.u., DJU 15.8.05, p. 309, no sentido de que “(…) efetuada e concluída a transação, é vedado a um dos transatores a rescisão unilateral, como também é obrigado o juiz homologar o negócio jurídico, desde que não esteja contaminado por defeito insanável (objeto ilícito, incapacidade das partes ou irregularidade do ato)”.

Ante essas premissas, conclui-se que, no caso sob análise, não seria possível a desistência ou retratação de uma das partes, até porque incabível a sua resilição unilateral.

Conforme se depreende, as respostas às duas indagações formuladas são negativas, a evidenciar que a transação celebrada, ainda que após o julgamento de apelação, pode ser homologada, desde que ausente qualquer defeito nos elementos essenciais do contrato.


[1] Instância – no sentido jurídico, é usado como designativo de grau de jurisdição: juízes de primeira ou segunda instância, havendo outras acepções, inclusive processual (Moacyr Amaral Santos, in “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, 2o V., 3a Ed., São Paulo: Max Limonad, 1968, pág. 190);

[2] Barros Monteiro, Washington. Curso de Direito Civil. 23a Ed. São Paulo: Saraiva, 1989. pp. 308 e segs. vol. 4.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil de acordo com o Código Civil de 2002. 11a Ed. Rio de Janeiro:Forense, 2003. p. 507. Vol. III.

[4] Decreto-lei no 6.430, de 17 de abril de 1944, art. 1o, ao aludir às transações de terras particulares nas faixas ao longo da fronteira;

[5] ob. cit. pp. 507/508.

[6] GOMES, Orlando. Contratos. 2a Ed. Rio de janeiro:Forense, 1966. p. 36.

[7] NEGRÃO, Theotônio. Código Civil e legislação civil em vigor. 27a ed. São Paulo: Saraiva, 2008, art. 3o, nota 7, p. 45.

[8] Gonçalves, Aroldo Plínio. in Revista Dialética no 74. 2009, PP.. 9/16

[9] DINAMARCO, Cândido. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, p. 239. Vol. II.

[10] Conforme acentua Maria Celina Bodin de Moraes (in “Constituição e Direito Civil”, artigo encartada na RT – 779 – setembro de 2000) afirma que o escritor Umberto Eco, querendo exemplificar essa assertiva, imagina uma situação prosaica. Diz ele: se indagarmos a uma pessoa normal se é lícito introduzir um instrumento cortante na barriga de outro ser humano, a resposta deveria ser negativa, porquanto isto é proibido por lei. Se, no entanto, especificarmos que quem introduz a lâmina é um cirurgião em uma sala de operação, então as pessoas normais estariam dispostas a reconsiderar o caso. Daí o significado (e, portanto, o conhecimento) advir sempre do contexto e o que parece coisa muito simples, às vezes e por circunstâncias variadas, pode tornar-se complexa e tortuosa;

[11] Na doutrina tem-se distinguido, no âmbito processual, a conciliação, como transação provocada pelo Magistrado, e o acordo, como transação celebrada por iniciativa das partes e levada aos autos para ser homologada (cf. Aroldo Plínio Gonçalves, ob. cit. pág.9)

[12] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Método, 2002, p. 45.