O instituto da Comissão Parlamentar de Inquérito pelo Congresso Nacional

16 de setembro de 2021

Compartilhe:

Legislar não é a única função pública do Parlamento, em qualquer democracia parlamentar: dentre outras funções, especialmente em relação a outros poderes de Estado (principalmente ao Executivo), se destaca – mesmo sob regime presidencial de governo – sua fiscalização governamental. Ainda quando não, exclusivamente, de sua alçada e atribuída, também, a outros órgãos estatais, o Parlamento tem nela o corolário de acompanhar a própria aplicação das leis que formulou, pelos Poderes que as aplicam de ofício (Executivo) ou sob controvérsia interpretativa (Judicial).

No Brasil atual, isto não somente decorre da representação política democrática (§ único do art. 1°) adotada: adquire máxima relevância à medida que a ordem de 1988, embora não tenha assumido o regime parlamentarista, também não reproduziu o regime presidencial de nossa tradição republicana, mas um presidencialismo semiparlamentar, no qual Câmara dos Deputados e Senado Federal exercem funções cogovernamentais com a Presidência da República, caracterizando regime misto (embora presidencial) de governo, tanto por sinergias parlamentares e executivas (mormente sob iniciativa legislativa presidencial, leis delegadas, decretos legislativos e medidas provisórias presidenciais) para a produção legislativa, quanto para a accountability (responsabilização perante governados) em geral.

No umbral da Organização dos Poderes (capítulo 1 do Título IV), ao Congresso Nacional cabe “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (art. 49, X), enquanto seus aspectos fiscais contábeis, financeiros, orçamentários, operacionais e patrimoniais integram o controle externo parlamentar sobre quaisquer órgãos federais, inclusive da administração indireta de todo Poder (art. 70, caput) e auxílio técnico pelo Tribunal de Contas da União (art. 71). No mesmo sentido, a proeminência parlamentar no regime misto de governo brasileiro, na fiscalização dos demais Poderes públicos, é atestada por duas inovações constitucionais ausentes da tradição constitucional brasileira anterior a 1988 e que propiciam um controle externo mais amplo do que o tradicional parâmetro de legalidade, pelo caput do art.70: O critério de legitimidade (pela Constituição de 1988), ensejando controle da finalidade e razoabilidade públicas da atividade administrativa, segundo uma inclusão social pertinente à ordem democrática; e o critério de economicidade (pela emenda revisora 02/1994), impositivo de considerações estratégicas (que não se esgotem em situações pontuais) à administração pública.

Dentre as comissões parlamentares (permanentes ou não) para exercício direto de ambas funções típicas do Parlamento (art. 58, § 2°) – que reúnem alguns membros na discussão pública de temas a serem legislados e/ou fiscalizados – se destaca a comissão parlamentar de inquérito. Eminentemente temporária, ela tem prazo certo para concluir sobre certo fato e é a única cuja apuração basta que minoria qualificada (1/3) do Parlamento considere, nacionalmente, necessária (art. 58 § 3°): uma excepcionalidade institucional que torna o inquérito parlamentar expressão máxima da função fiscalizatória do Congresso Nacional. 

Pela sindicância parlamentar sistêmica – Toda a elaboração jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e doutrinária da bibliografia jurídica, desde 1988, têm focado em delinear os limites funcionais e institucionais das comissões parlamentares de inquérito, mormente as provenientes das Casas do Congresso Nacional, mistas (conjuntas entre Câmara dos Deputados e Senado Federal) ou não (somente uma delas). São calcadas nos seguintes parâmetros: direitos fundamentais do art. 5°, mormente dos incisos LV, LVI, LXI, LXII e LXIII ; princípios da independência entre Poderes (art. 2°) e da simetria federativa (implícito na estrutura do Estado e pela cláusula do art. 60, § 4° a reformas constitucionais).

Direitos fundamentais individuais, à medida que confrontados com arbitrariedades inquisitoriais das comissões, passaram, progressivamente, a limitá-las na coerção de investigados e testemunhas, depoentes ou não. Assim, dado que o inquérito parlamentar detém “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (art. 58 § 3°), as mesmas limitações processuais aplicadas aos juízes e, consequentemente, demais autoridades inquisidoras, em geral, se tornaram aplicáveis às comissões parlamentares de inquérito, nos âmbitos federal, estaduais (pelas assembleias legislativas) e municipais (pelas câmaras de vereadores). 

A independência entre Poderes e a simetria federativa têm ensejado interpretações restritivas do inquérito parlamentar sobre presidente da República, autoridades judiciais e governadores ou prefeitos (ambos, mesmo quando conexos ao fato em apuração), à medida que o art. 50 apenas sujeita ministros de Estado e gestores da administração federal a convocações de comparecimento e prazos para informações.

Embora direitos e garantias individuais sejam limites constitucionais incontestes (inclusive porque também à reforma constitucional pelo art. 60, §4°) ao Estado, em geral e, portanto, ao Parlamento e suas funções, a independência do Poderes ou a simetria federativa, desde que assumidos no quadro dos outros princípios fundamentais, não vedam a investigação parlamentar nacional de autoridades presidencial, judiciárias, estaduais e municipais: 

1. Presidência da República pode ser objeto de investigação parlamentar, porque ao Parlamento cabe a sindicância geral de todos os atos do Poder Executivo (art.49, X) e por CPI federal quando o fato certo apurável contiver crime presidencial em tese, seja de responsabilidade político-administrativa (art.85) ou criminal comum. À medida que eventuais processos presidenciais, em ambas hipóteses, dependem estritamente das casas legislativas (art. 51, I e 52, I), suas competências constitucionais para, eventualmente, processar ou autorizar processamento presidencial, também incluem (logicamente e como poder implícito) a de investigar e, portanto, eventualmente, indiciar (embora jamais de acusar), criminalmente, a Presidência da República. A vedação convocatória da chefia do Executivo (art. 50), evitando sua exposição involuntária às audiências parlamentares, preserva a independência do Poder, sem tolher outros poderes investigatórios parlamentares condizentes com a harmonia constitucional (art.2°), da qual também decorre a prestação obrigatória de informações executivas ao Parlamento; 

2. Autoridades judiciárias e agentes ministeriais ou de advocacia governamental podem ser objetos de investigação (embora também vedada, pelo art. 50, sua exposição involuntária em audiências públicas), por comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal quando o fato certo apurável contiver crime de responsabilidade político-administrativa em tese de ministros do STF, membros dos conselhos nacionais de Justiça ou do Ministério Público, procurador-geral da República e advogado-geral da União ou administrações federais, tanto judiciárias quanto ministeriais, por comissões parlamentares de inquérito de ambas casas do Congresso Nacional, quando seu fato certo apurável consistir em atividades estritamente administrativas (contábeis, financeiras, orçamentárias, operacionais ou patrimoniais) judiciárias ou ministeriais. Tais conclusões decorrem, respectivamente, da competência, tão privativa quanto mais ampla, de senadores para processarem e julgarem estas cúpulas institucionais, inclusive correicionais, do Poder Judiciário e do Ministério Público (art. 52, II); e do controle externo, tanto parlamentar quanto geral, da administração pública federal (art. 70 e 71, mormente seu inciso IV), inclusive sobreposto aos controles judiciário (art. 103-B) e ministerial (art. 130-A);

3. Governadores e prefeitos podem ser investigados por comissões parlamentares de inquérito somente do Senado federal e quando seu fato certo apurável contiver cooperação (técnica ou financeira) entre Estados ou Municípios com a União. Porque a vedação à convocação dos mesmos a audiências (art. 50) preserva a simetria federativa que impõe sindicâncias parlamentares por respectivas assembleias legislativas (ou Câmara Legislativa no Distrito Federal) e câmaras de vereadores (artigo 60, §4°, I), mas não afasta deveres federativos cooperativos entre entes federados (§ único do art. 23), cujo zelo senatorial (como Casa da Federação) é inafastável (art. 52, VII, VIII e IX).

Em suma, inquéritos parlamentares, pelo Congresso Nacional, ainda carecem de interpretações (mormente jurisprudenciais, pelo Supremo Tribunal Federal) jurídicas que os tornem mais instrumentais à sua função fiscalizatória. Inclusive de iniciativas internas às casas legislativas, pois o art. 58, §3° não confere a essas comissões parlamentares apenas poderes judiciais, mas também “outros previstos nos regimentos”, cuja mera alteração as pode prover.