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O Rol de Procedimentos da ANS e o STJ

31 de julho de 2022

Luiz Felipe Conde Presidente da Comissão de Direito Sanitário e Saúde da OABRJ

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A economia é uma ciência triste, como ensina Luiz Felipe Pondé, talvez a mais aborrecida e taciturna das ciências sociais. Estaria a ciência jurídica acometida do mesmo mal? A problemática enfrentada no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp) 1886929 e 1889704 parece demonstrar com precisão o contraponto perfeito entre as infinitas demandas de parcelas da sociedade civil e a “sisudez” impopular dos argumentos das operadoras e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que aparentam cingir-se apenas a aspectos econômicos e atuariais (o que não é verdade, conforme será demonstrado a seguir).

O fato da prestação de serviços de saúde das operadoras consistir em atividade privada de relevante interesse público (art. 197 da Constituição Federal de 1988) não conduz necessariamente à taxatividade do rol. A exemplo do rol de coberturas obrigatórias elaborado pela ANS, o Sistema Único de Saúde (SUS) possui uma listagem de procedimentos e medicamentos, cuja cobertura é de caráter obrigatório, não sendo concedidos indistintamente os recursos requeridos por todo e qualquer usuário ao seu talante. Por conseguinte, não há razão para se admitir a cobertura universal de tratamentos no âmbito da saúde suplementar. Inclusive, tal raciocínio encontra amparo no princípio da livre iniciativa (art. 170 caput e parágrafo único, e art. 1º, IV, da Constituição) e no interesse público do fomento das atividades no setor. Explica-se: a adoção de um rol exemplificativo promove o desequilíbrio do sistema, ao passo que impede a estimação dos riscos e a precificação dos contratos. Assim, é criada uma barreira de manutenção no mercado, que somada a todas as outras existentes o torna pouco atrativo à iniciativa privada, o que tende a longo prazo a deixar os planos cada vez mais onerosos aos beneficiários, impedindo a manutenção de seu custeio, de forma a promover a fuga dos consumidores para o SUS.

No contexto recente da pandemia de covid-19, presenciamos uma série de fake news e até mesmo a prescrição de procedimentos e medicamentos por profissionais de saúde sem a comprovação da eficácia curativa para o combate ao coronavírus, o que promove um olhar sobre o rol não enquanto uma garantia de restrição de coberturas obrigatórias a beneficiar as operadoras, mas sim sob uma ótica humanista, de proteção da dignidade e da incolumidade física dos cidadãos, garantindo que estes não terão prescritos tratamentos sem eficácia cientifica comprovada e que, portanto, não ameacem sua saúde.

Igualmente, não merece acolhida o argumento no sentido de que ao estipular o rol de coberturas obrigatórias na forma estatuída na atualidade, a ANS teria ultrapassado a competência regulamentar que lhe é conferida pela Lei nº 9.656/1998, pois não excluiu do rol apenas os tratamentos previstos no art. 10º do aludido diploma. Salvo melhor juízo, entender que a ANS pode estabelecer o rol de coberturas, com base em estudos técnicos conduzidos por experts no setor, para além dos limites do art. 10º da Lei nº 9656/1998, consiste em exercício hermenêutico que não prima pela interpretação teleológica, esvazia as competências e a ratio de sua criação, além de negar vigor à previsão do plano referência, constante no caput do art. 10º.

A par de toda a controvérsia, a 2ª Seção do egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), em conclusão do julgamento, realizada no dia 8/6/2022, por maioria de votos, definiu a seguinte tese: (I) O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo; (II) A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol; (III) É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol; (IV) Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS/ Conitec e os Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário/ Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

A hermenêutica consequencialista, que hoje vigora em nosso ordenamento como regra geral de interpretação e aplicação do Direito, por força do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), ao que nos parece, inspirou a elaboração da tese vencedora, que consagrou uma espécie de “taxatividade mitigada”, trazendo exceções que se inserem em uma ótica de harmonização dos interesses constitucionais da livre iniciativa, direito à saúde, segurança jurídica e proteção ao consumidor em matéria de cobertura dos serviços de saúde. Tal linha, inclusive, já foi consagrada pelo egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) do julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 500, a qual analisou a cobertura de medicamentos não aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e suas exceções.

O item III da tese se alinha perfeitamente com o princípio da autonomia privada, insculpido no art. 425 do Código Civil. Espera-se que tal previsão estimule a ANS a inserir em sua agenda regulatória de forma concreta a implantação do sandbox regulatório em matéria de saúde suplementar. Tal instrumento de política regulatória e os recursos a ele inerentes estariam aptos a proporcionar a criação de novos produtos, com potencial para suprir os reclames da parcela da sociedade que defende o rol de coberturas exemplificativo, sem onerar excessivamente a todos os demais beneficiários ou inviabilizar a existência de operadoras de pequeno porte e a sustentabilidade do sistema.

Os itens I e II do julgado merecem aplauso, pois consagram a deferência judicial às decisões técnicas da agência reguladora, o que sempre deve ser a regra, e lançam um olhar atento sobre a realidade brasileira visivelmente distante, por uma série de problemas institucionais e sociais, do que a moderna doutrina em direito médico denomina como medicina baseada em evidências. Tal linha metodológica consiste na aplicação do método científico a toda a prática médica e ao estabelecimento de protocolos a serem seguidos com base em pesquisas. Exatamente em tal base de entendimento se insere a última parte da tese formulada pelo STJ (item IV). Esbarramos aqui em algumas questões, que merecem ser desde já postas à reflexão.

Foi compreendida a tentativa do egrégio STJ em pautar critérios objetivos, de cunho técnico, a fim de mitigar a ausência de expertise sobre o setor que aflige algumas instâncias decisórias, notadamente o Judiciário, sendo que a decisão em tela decerto não impedirá a judicialização, tendo em verdade o efeito contrário: aqueles que possuem tratamentos custeados fora do rol devem ajuizar demandas para conferir um carimbo de regularidade e continuidade quanto aos procedimentos já cobertos ou que pretendem obter.

Contudo, o que fazer nas hipóteses em que houver posicionamentos científicos contrários? Por exemplo, caso haja pareceres distintos sobre a matéria em mais de um Natjus ou entre uma autoridade estrangeira e o Conitec, como proceder? Qual é o grau de robustez exigido do estudo, para ser considerado como apto a alçar determinado tratamento como “medicina baseada em evidências”? Basta um artigo na Internet ou o estudo deve ser reconhecido e validado mediantes testes homologados por autoridade? Será feita uma análise ampla e multidisciplinar, tal como no processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) existente no âmbito do SUS? 

Cumpre nunca olvidar que por vezes o silêncio administrativo é eloquente, sobremaneira em matéria de cunho técnico como o rol, sendo certo que a não submissão de um dado procedimento comumente ocorre em virtude da ausência de maturação acerca da quaestio. Nesse sentido, destaca-se que a mitigação da taxatividade pode comprometer a almejada medicina baseada em evidências, que tem como um de seus instrumentos a ATS, cujos critérios são utilizados na elaboração do rol, conforme se extrai da redação do art. 10º, §§ 3º e 4º da Lei nº 9.656/1998, com a redação conferida pela Lei nº 14.307/2022.

Neste passo, a interpretação das exceções expostas pelo egrégio STJ deve ser realizada com extrema parcimônia e, caso não submetido um procedimento à ANS para sua inclusão na listagem e haja posicionamentos científicos divergentes, não deve ser concedida a cobertura. Nesse caso, não restará atendida a exigência da medicina baseada em evidências, pois aquilo que é evidente, sem dúvidas, não é incerto.

No que diz respeito ao requisito cumulativo para a concessão fora do rol acerca do procedimento que não tenha sido indeferido expressamente pela ANS, tal medida se coaduna com a redação do art. 10º, § 9º, da Lei nº 9.656/1998. Trata o aludido dispositivo de hipótese de silêncio administrativo com efeitos positivos no qual a mora do agente regulado faz surgir o direito do postulante à inclusão do procedimento no rol. O comando referente à realização “quando possível”, do diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, conduz a um “poder dever” imposto ao Poder Judiciário, de forma a garantir que a decisão seja pautada em critérios técnicos e sob uma hermenêutica consequencialista, afeta ao setor de saúde.

Há diversos projetos de lei tornando o rol exemplificativo, em trâmite após a decisão do STJ e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 986. Não restam dúvidas que, apesar de todas as críticas, a decisão posta em análise representa um importante avanço na consolidação da deferência pelo Poder Judiciário das escolhas regulatórias. Todavia, nunca é demais olvidar a preciosa lição de Ingo Sarlet, quando da sua fala na audiência pública nº 4 no STF, que versou sobre os limites da atuação judicial no âmbito do direito à saúde: 

É necessário superar a era dos extremos, tanto a rejeição da mera programaticidade é necessária, quanto também rejeitar e controlar o famoso “pediu-levou”, não importa quem pediu, o que pediu, as consequências da decisão. A busca, portanto, de uma conciliação entre a dimensão subjetiva, individual e coletiva do direito à saúde e a dimensão objetiva da saúde como dever da sociedade e do Estado, e de como a judicialização deve ser sensível a ambas as dimensões.

Notas___________________

1 VALLE, Vanice. “Rol taxativo de cobertura de saúde suplementar: um exercício de retórica”. 16/6/2022, 8h04. Extraído de https://www.conjur.com.br/2022-jun-16/interesse-publico-rol-taxativo-saude-suplementar, acesso em 20/6/2022.

2 Para mais informações vide o artigo extraído de http://www.coc.fiocruz.br/index.php/pt/todas-as-noticias/1940-estamos-distantes-da-pratica-damedicina-baseada-em-evidencias-afirma-pesquisadora.html?tmpl=component&print=1&page=, acesso em 20/6/2022.

3 O que é medicina baseada em evidência e como ela pode ajudar na segurança e qualidade da sua saúde. Acesso em 20/6/2022, op cit.

4 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/06/10/decisao-do-stj-une-senado-contra-limitacao-de-tratamentos-em-planos-de-saude

5 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=489010&ori=1

6 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Sr._Ingo_Sarlet__titular_da_PUC_.pdf