O Sistema Tributário Nacional e o princípio da segurança jurídica

6 de maio de 2019

Professor de Direto Administrativo, Financeiro e Tributário

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Frise-se, desde logo, que a tão falada insegurança jurídica em matéria tributária não reside no Sistema Tributário Nacional, esculpido com maestria pelo legislador constituinte original no Capítulo I, do Título VI da Constituição Federal (CF), entregando-o pronto e acabado, nada deixando à eventual colaboração do legislador infraconstitucional para acrescer ou alterar. Por isso, sempre ponderamos que não expressa a realidade a costumeira invocação da reforma tributária para simplificar o Sistema e diminuir o custo do cumprimento das obrigações tributárias.

Contudo, na prática, nosso Sistema Tributário, estruturado de forma segura na Constituição, tornou-se um dos mais inseguros do mundo, tendo em vista a legislação ordinária que se desenvolve com impressionante dinamismo caótico, não respeitando as normas e os princípios constitucionais expressos ou implícitos. A impressão que se tem é que estamos convivendo com o princípio da ilegalidade ou da inconstitucionalidade eficaz.

Qual o conteúdo e o alcance da segurança jurídica em matéria tributária? 

O princípio da segurança jurídica costuma ser ancorado no caput do art. 5º da CF, que assegura, entre outras coisas, o direito à segurança, que indubitavelmente abrange a segurança física e a segurança jurídica. Preferimos ancorá-lo no art. 1º da CF:

“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Realmente, não se pode cogitar Estado Democrático de Direito sem que haja a segurança jurídica que decorre do governo de leis, e não do governo de homens, cuja vontade, ao contrário da vontade objetiva da lei, varia no tempo e no espaço de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto. Apenas e tão somente as leis elaboradas pelos legítimos representantes do povo têm o condão de conferir segurança jurídica. Contudo, não se trata da legalidade meramente formal, mas daquela legalidade conformada com os textos constitucionais. Outrossim, não bastam leis conformadas com a Constituição, pois elas não são auto-operativas. Alguém precisa aplicá-las. O Executivo, quando as aplica o faz no interesse próprio, interpretando-as de forma distorcida e parcial, principalmente quando se trata de cobrar tributos. Outras vezes viola o princípio da proteção da confiança ao descumprir a lei que o próprio Estado elaborou. Quem age em conformidade com a lei o faz no pressuposto de que o Estado que produziu a lei a cumpra. Do contrário, de nada adiantaria o disposto no inciso II, do art. 5º da CF, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

O conceito de segurança jurídica está intimamente ligado àquele princípio da estrita legalidade, esculpido no inciso I, do art. 150 da CF, não comportando qualquer tipo de flexibilização, porque é exatamente o princípio que permite a previsibilidade do que o poder político do Estado pode fazer e não pode fazer.

O princípio da segurança jurídica na seara do Direito Tributário no Estado Democrático de Direito assume a feição de verdadeiro pressuposto do Direito, caracterizado pela existência de sistema jurídico regular do ponto de vista estrutural e funcional. Por um lado, requer a elaboração de normas jurídico-tributárias estáveis, claras e objetivas, conformadas com os textos constitucionais. Se as leis mudam com frequência, não para reger situações futuras, mas para atingir o passado, o Estado estará afrontando o princípio da proteção da confiança que igualmente decorre do citado art. 1º da Constituição. O princípio da segurança jurídica que decorre da lei estável, sem o respeito ao princípio da proteção da confiança, cairá no vazio, será princípio inútil. Por outro lado, esse princípio pressupõe a existência do Poder Judiciário para fazer cumprir com celeridade e de forma contínua aquelas normas jurídicas conformadas com os textos constitucionais, e rejeitar em tempo razoável as normas não conformadas com os princípios tributários. São os aspectos – objetivo e subjetivo – da segurança jurídica.

A segurança jurídica em matéria tributária vista sob o prisma substancial é uma das piores do mundo. Continuamente são despejadas leis nas três esferas políticas, nas quais prevalece a feitura de normas dúbias, complexas e lacunosas que se prestam a toda sorte de interpretações. Esse quadro é agravado pela complementação por meio de decretos regulamentadores que, na maioria das vezes, inovam as disposições legais. O que é pior, os decretos, por sua vez, quase sempre delegam a feitura de detalhes por normas complementares – instruções normativas, pareceres, portarias, atos declaratórios interpretativos, etc. – que não obedecem a hierarquia vertical das leis. Resulta disso um cipoal de normas confusas, dúbias e contraditórias compondo o Sistema Tributário, caracterizado por dinamismo caótico, no qual ninguém tem a necessária segurança jurídica.

A burocracia infernal a que são submetidos diuturnamente os contribuintes constitui matéria prima para a expansão da corrupção no âmbito da administração. No dizer de Héctor Mairal, que escreveu sobre as “raízes legais da corrupção”, o Direito Público ao invés de combater a corrupção  vem fomentando-a.

Outro aspecto da segurança jurídica diz respeito à correta e célere aplicação da lei pelo Poder Judiciário, que detém o monopólio estatal da jurisdição. Isso, também, não vem acontecendo, em parte, como decorrência da morosidade causada pela massificação de processos envolvendo questões tributárias, que representam 60% dos processos em curso nos tribunais, agravada pelo dinamismo caótico da legislação que confunde os julgadores, abrindo caminho para crescente jurisprudência defensiva; de outra parte, como resultado da perda do princípio da colegialidade de alguns anos para cá, em que cada julgador, às vezes, decide de conformidade com suas convicções pessoais, formadas à luz de considerações de natureza extrajurídica, como as questões da moralidade, da escassez de recursos financeiros do Estado, noções de justiça, etc. Não cabe ao juiz substituir-se no critério de justiça adotado pelo legislador, sob pena de gerar total instabilidade na jurisprudência com consequente insegurança jurídica.

Estas são, em apertada síntese, as causas da insegurança jurídica em matéria tributária. Como restabelecê-la?

O princípio da legalidade, que permite a previsibilidade da ação do poder político do Estado, depende da observância do princípio da proteção da confiança, que se assenta no princípio da boa-fé objetiva do Estado em aplicar efetivamente a lei que elaborou. Os princípios da segurança jurídica,  da proteção da confiança e da boa fé objetiva são corolários do princípio da legalidade e estão todos eles abrigados no art. 1º da CF, que consagra o Estado Democrático de Direito como elemento constitutivo da Federação Brasileira. Sem a imbricação desses três princípios, o princípio da estrita legalidade tributária de nada adiantará. A elaboração de leis claras e objetivas, justas e sábias, de nada valerá se elas não forem aplicadas, ou se forem aplicadas de forma divorciada da vontade objetiva das leis.

Enquanto não enfrentadas e solucionadas, as questões enfocadas nesse artigo – dinamismo caótico da legislação tributária, respeito ao princípio da proteção da confiança, estabilidade da jurisprudência dos tribunais superiores – de nada adiantará a pretendida reforma tributária, como a que está em discussão no Congresso Nacional, pois a complexidade e o elevado custo operacional do Sistema Tributário Nacional não reside e nunca residiu na CF.

A proposta em discussão (PEC no 293-A/2004), se aprovada, trará com certeza inúmeras incertezas, mexendo e remexendo em conceitos já pacificados à duras penas pelos tribunais, além de acarretar aumento tributário na contramão do discurso governamental, pois a União passará a ter o oitavo imposto seletivo, incidente sobre operações rendosas e de fácil arrecadação, e o Estado passará a deter competência para instituir o quarto imposto, o imposto sobre operações com bens e serviços, que certamente consumirá décadas para fixar seu exato significado. Além disso, a proposta sob exame traz para o bojo da Constituição os defeitos da legislação ordinária, incorporando normas casuísticas que não se revestem de natureza constitucional, tornando o Sistema Tributário tão complexo e confuso quanto a legislação infraconstitucional.

O razoável seria efetuar emendas pontuais, nos termos das sugestões por nós oferecidas na Comissão Especial de Reforma Tributária, para explicitar princípios tributários implícitos, visando diminuir as controvérsias jurídicas. Essas propostas simples e de fácil compreensão, em número de nove, estão reproduzidas em nosso livro Direito financeiro e tributário1.

Notas___________________

1 Direito financeiro e tributário, 27ª Ed., São Paulo, Atlas, 2018, p. 863-866