Democracia e Cidadania – aspectos jurídicos – Parte 2

12 de janeiro de 2012

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Opta-se, portanto, por tal definição porque, sobretudo no que se refere à quinta acepção, parece conveniente o sentido protetivo da cidadania na acepção adotada, ou seja, a democracia enquanto regime que procura igualar as liberdades públicas, implantando-se um regime de representação política popular (embora até se possa aduzir que exista grande carga ideológica na adoção de um ou outro sentido da expressão democracia, o que não se pode evitar diante da amplitude do tema e da forma como foi e vem sendo tratado por inúmeros intelectuais e cientistas dos mais diversos matizes ideológicos).

Assim, sob a ótica desse prisma, malgrado os poliédricos aspectos que poderiam ser abordados a respeito do relacionamento dos termos democracia e cidadania, entende-se deva dar maior enfoque à questão da garantia das liberdades públicas e da busca das formas de representação política (o eminente Goffredo Telles Jr., citado por Ignácio Telles, na obra em comento, já assinalava que a democracia seria “o regime que procura introduzir a vontade dos governados nas decisões dos governantes”, o que ressalta a importância desse segundo aspecto).7

Pontuada tal questão, sempre se deve ressaltar que, de acordo com o nosso ordenamento constitucional vigente, a proteção que se pretendeu dar à garantia das liberdades individuais (alcançando não só os cidadãos brasileiros, como também qualquer pessoa domiciliada no país), não se fez acompanhar da respectiva amplitude no que se refere à participação política.

Deste modo, não obstante as liberdades públicas não apresentarem tal discriminação (o que poderia, inclusive, desafiar um dos preceitos maiores mencionados no caput do artigo 5° da Carta Política, que seria o princípio da igualdade), o mesmo não ocorreu em relação ao princípio da representação política.

Walter Ceneviva já abordava a questão da cidadania sob tal ótica, aduzindo que somente se adquiriria cidadania pelo nascimento (e aí variam os critérios em cada país, optando cada qual pelos critérios do jus sanguinis e do jus soli, ou ambos conjuntamente), ou pela adoção da cidadania nos termos da norma contida no artigo 12 e seus consectários da Magna Carta (malgrado se possa perder todos ou alguns dos direitos inerentes à cidadania pela chamada “objeção de consciência” e pela própria naturalização, nos termos das normas contidas nos artigos 15, inc. IV, e 12, inc. I, ambos da nossa Constituição Federal).

Tal distinção é importante, posto que, nas acepções de democracia e cidadania adotadas, haverá grande influência da questão da nacionalidade, posto que, se esta não será considerada como fator preponderante na garantia dos direitos e liberdades públicas inerentes à cidadania (será conferida extensivamente a estrangeiros), o mesmo não ocorrerá em relação à participação política, como se vem pontuando.

Com efeito, o mesmo Walter Ceneviva já enfatiza, ainda que de forma indireta, esse raciocínio, quando pondera que: “Estrangeiro é quem, não tendo nacionalidade brasileira, tem, quando residente no País, garantia de inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos definidos pelo artigo 5°, os quais incluem, especificamente, o direito de não ser extraditado por crime político (art. 5°, LIII). O estrangeiro sofre, porém, restrições inerentes a essa condição. São proibidos de se alistarem como eleitores (art. 14, § 2°); a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural são regulados e limitados na forma da lei (art. 190).”8

Na mesma esteira de raciocínio, inclusive, a lição de Alexandre de Moraes que, de um lado elenca os mecanismos pelos quais se faria a tutela constitucional das liberdades públicas, em referência aos institutos do habeas copus, do habeas data, do mandado de segurança, do mandado de injunção e da ação popular, sem se esquecer do importantíssimo direito de petição (na acepção constitucional vai muito além do direito de acionamento do Poder Judiciário), também apontou, com propriedade, outras hipóteses de restrição em relação a estrangeiros, o que se refletirá na harmonização do conceito de cidadania como liame entre pessoas nacionais e o Estado a que estão ligadas.9

E o fez asseverando que a própria ordem constitucional já asseverou que certos cargos somente poderão ser exercidos por brasileiros natos, excluindo, portanto, brasileiros naturalizados e estrangeiros, como os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, Presidente da Câmara de Deputados, do Senado Federal, Ministro do Supremo Tribunal Federal, membros da carreira diplomática, oficiais das Forças Armadas e Ministro de Estado da Defesa.10

Mas, mesmo assim, arremata o renomado autor, tal situação já representou uma amenização em relação ao rol previsto pela Constituição anterior, no qual a lista de cargos privativos de brasileiros natos era muito maior, o que representaria, sob a ótica da poliédrica questão, que se está a analisar um aumento da efetiva possibilidade de participação de estrangeiros, através da naturalização, em nossa democracia, o que mais se aproximaria do modelo que o legislador constituinte procurou estabelecer ao dispor a respeito da proteção das liberdades públicas.

E isso porque malgrado seja forçoso admitir que, não obstante se viva em tempos de globalização, e em que pese nossa posição de globalizados nesse processo, certas searas devam continuar sendo privativas para a garantia da segurança nacional em que pese, ainda, toda a carga ideológica que possa atribuir a essa expressão, sob pena, de, no campo da geopolítica atual, podermos sofrer ainda mais em desprestígio de nossa já maculada soberania no que se diga, en passant, não estamos sozinhos, tendo a globalização levado à necessidade de reestruturação do conceito de soberania para adequá-lo às novas exigências (tanto que, atualmente, já não são poucos os que defendem uma flexibilidade, inclusive, de nossas cláusulas pétreas, questão tormentosa do ponto de vista ideológico, a qual não abordarei no presente trabalho, por escapar ao âmbito do exame analítico proposto no preâmbulo).

Embora se deva fazer menção à existência de, pelo menos, dois matizes axiológicos principais, um de inclinação neoliberal, ansioso pela supressão das aludidas cláusulas em nome de uma inevitabilidade pretensiosa, privilegiando a aparente estabilidade econômica e outro menos preocupado com aspectos econômicos e mais voltado à proteção ética (num sentido eudaimonista, como preconizado por Aristóteles) da dignidade da pessoa humana, mais afeita à diminuição das desigualdades sociais, até para a garantia da estabilidade interna do Estado (os mass media constantemente alardeiam o crescente fluxo da violência que, às mais das vezes, é associado à precariedade das condições sociais da população brasileira).

Prosseguindo, em retomada ao tema proposto, entende-se que ainda se poderia acrescentar ao rol de instrumentos de tutela das liberdades públicas apontadas por Alexandre de Moraes aquelas ponderadas por Paulo Lúcio Nogueira na obra Instrumentos de tutela e Direitos constitucionais, posto que, o aludido autor, além daqueles mencionados nos vários parágrafos do artigo 5° da Magna Carta, faz referência à ação civil pública (inegavelmente utilizada pelo parquê na defesa da cidadania em sentido amplo), à ação direta de inconstitucionalidade (instrumento colocado à disposição do cidadão, que, em tese, pode pleitear providências junto aos legitimados pela Constituição, sobretudo à Ordem dos Advogados do Brasil), para evitar que a legislação infraconstitucional macule a ordem constitucional, desvirtuando a própria noção de legalidade, que seria um dos corolários da democracia não num sentido meramente formal e a própria ação de impeachment, para apurar crimes de responsabilidade do Presidente da República, o que também seria matéria correlata à proteção da cidadania lato sensu.

Aliás, por derradeiro, pediria vênia para destacar a opinião do eminente José Afonso da Silva a respeito da eficácia dos direitos fundamentais para que se tenha a exata dimensão da importância da questão concernente à necessidade de tutela das garantias constitucionais por uma ação declaratória de inconstitucionalidade (a congênere, declaratória da constitucionalidade, conforme é cediço, acaba por beneficiar o Estado em detrimento do cidadão, concentrando a decisão), posto que, neste sentido, como assevera o eminente constitucionalista: “Finalmente, a garantia das garantias consiste na eficácia e na aplicabilidade imediata das normas constitucionais. Os direitos, as liberdades e as prerrogativas consubstanciadas no título II, caracterizados como direitos fundamentais, só cumprem sua finalidade se as normas que os expressem tiverem efetividade.”11

Assim, em linhas gerais, pode-se concluir que, malgrado ainda que historicamente, se tenha pretendido relacionar a proteção da cidadania a uma nacionalidade qualquer (a questão da vinculação do indivíduo a uma ordem jurídica, evitando-se apátridas destituídos de qualquer proteção – tal como evidenciado a grupos étnicos na Alemanha nazista), dependendo da extensão que queira dar à expressão cidadania, ter-se-á que nosso constituinte, até por influxo do clima “pós” Golpe Militar de 1964 (malgrado alguns insistam em se referir à Revolução de 1964 em alusão à tecnicidade do termo, emprestado da ciência política) optou por uma interpretação menos dogmática e mais efetiva no que se refere à proteção da dignidade humana, estendendo efeitos da cidadania a pessoas que não seriam tecnicamente cidadãs brasileiras.

Resta, no entanto, aguardar para aferir qual a inclinação a ser manifestada na chamada “reforma” constitucional que o País vem assistindo, desejando-se que não se ocorra um retrocesso, calcado em ondas de inspiração conservadora (ao que parece, o País vivenciaria hoje um movimento menos zetético que o que se instaurou a partir de 1984, ápice da onda renovadora retromencionada).

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NOTAS
7 TELLES, Ignácio da Silva, op. cit., v.23, p. 265.
8 CENEVIVA, Walter, Direito constitucional brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 90.
9 MORAES, Alexandre de, Direito constitucional, referências ao conteúdo do Capítulo IV, São Paulo: Atlas, 2000.
10 MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 214.