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O TSE e a fidelidade partidária

30 de abril de 2007

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A decisão do Tribunal Superior Eleitoral proferida na terça-feira (27.3.07) é histórica e de inestimável alcance para a correção das deformações do sistema político-eleitoral brasileiro. Em síntese, ao responder

à Consulta 1398, do PFL, proclamou o TSE (antes tarde do que nunca!), segundo o impecável voto do Relator, Ministro César Asfor Rocha “que os partidos políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda”.

Tudo porque “os Partidos Políticos adquiriram a qualidade de autênticos protagonistas da democracia representativa, não se encontrando, no mundo ocidental, nenhum sistema político que prescinda de sua intermediação…”

Por isso “é equivocada e injurídica a suposição de que o mandato eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que o candidato eleito se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, transformando-a em propriedade sua à moda do exercício de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o de dele dispor”.

O acerto dessa decisão é inconteste, uma vez que a Constituição determina, como condição de elegibilidade do cidadão, dentre outras, a filiação partidária (art.14, § 3º, V), e impõe aos partidos estabelecer, em seu estatuto, normas de disciplina e fidelidade partidária (art. 17, § 1º).

Acredito ser, hoje, unânime no Brasil, o sentimento da urgência quanto à reforma política saneadora de nossas mazelas institucionais. Esta há de começar pela afirmação enérgica do princípio da fidelidade partidária, na convicção de que não há nada mais destrutivo da ética pública do que a insignificância social dos partidos.

O descrédito popular, em face dos mecanismos da democracia representativa, deve-se, em grande parte, à desmoralização do compromisso partidário entre o candidato eleito e a legenda que promoveu sua eleição. Essa situação patológica confunde o eleitor, deseduca a cidadania e contamina as instituições de governo. Além disso, a promiscuidade das relações partidárias conspira contra a aglutinação sadia e programática dos segmentos da sociedade, instala a corrupção na carreira política e empurra a massa de eleitores, como gado no corredor do abate, para a devora do charlatanismo eleitoral.

Nos últimos anos, observou-se indecorosa movimentação de deputados e senadores como estratégia governista de enfraquecer as oposições e ampliar o arco de alianças de apoio ao governo no Congresso Nacional. Tudo não passa de ocupação predatória do espaço político, a demonstrar a dicotomia entre o universo axiológico da Moral e a prática do Poder (Celso Lafer, Desafios – ética e política, p. 17).

A política de desmantelamento dos partidos vem de longe. O Ato Institucional nº 2, de 1964, com a cerimônia da ditadura militar, extinguiu as siglas partidárias tradicionais (PSD, PTB, UDN etc.), as quais, até então, bem ou mal, traduziam as principais correntes ideológicas da vida brasileira. Tal se fez com o propósito deliberado de desarticular a expressão maior da sociedade civil e, com isso, deixar à deriva os anseios de redemocratização.

O próprio vocábulo “partido” foi considerado subversivo à ordem autoritária, quando então os situacionistas agruparam-se na legenda da ARENA e a resistência democrática abrigou-se no MDB. Com as retumbantes vitórias eleitorais da frente de oposição nos idos de 1974 e 1978, os mentores do regime militar perceberam que o modelo bipartidário estava exaurido. Aliás, justamente para impedir defecções partidárias, que pudessem comprometer a tutela do Executivo militar sobre o Poder Legislativo, o regime pós-64, em manobra espúria e sem nenhum idealismo institucional, fez incluir, no art. 152, § 5º, da E/C nº 1/69, a penalidade da perda de mandato para o parlamentar que deixar o partido pelo qual foi eleito.

Hoje, o que se verifica é o mesmo projeto de debilitação das instituições partidárias. Basta ver que, dentre os deputados federais eleitos no ano de 2006, nada menos do que 36 parlamentares abandonaram o partido pelo qual se elegeram. Além do mais, dos 513 deputados eleitos no último pleito, apenas 31, ou seja, 6,04% alcançaram por si só a votação nominal necessária para atingir o quociente eleitoral. Todos os demais foram eleitos em razão da soma dos votos sufragados para as legendas partidárias.

Em cada eleição, dá-se a mesma revoada e o aliciamento governista para formar e ampliar a base de apoio no Congresso Nacional. Daí o inchaço ocorrido no PTB, PP e PL, legendas auxiliares do 1º mandato do governo do Presidente Lula, que haviam elegido 52 deputados e contam hoje com mais de 100. Por coincidência, ou não, esses partidos estiveram diretamente envolvidos, juntamente com algumas lideranças do PT, no chamado escândalo do “mensalão”, que horrorizou a nação.

A Constituição democrática de 1988, em boa hora, incluiu a fidelidade partidária dentre os princípios da organização dos partidos (art. 17, § 1º). Trata-se de norma integrante do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais) nessa qualidade alçada em cláusula pétrea. Sucede, porém, que o mesmo estatuto supremo, ao elencar, no art. 55, as hipóteses de perda de mandato parlamentar, deixou de mencionar a conduta mais radical de deslealdade partidária: o abandono da legenda política. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal tem decidido, com infeliz inspiração, que o postulado da fidelidade partidária não alcança a conseqüência da perda do mandato (v.g. MS  nº 20.927-5-DF, Rel. Ministro Moreira Alves).

Contudo, pela via da interpretação sistêmica da Consti-tuição e da aplicação do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, poder-se-ia estender a sanção da destituição do mandato ao parlamentar que abandonar o partido pelo qual concorreu às eleições. De todo modo, a decisão do TSE, corajosa e pioneira, em boa hora, cumpre o grandioso papel de abrir caminhos ao aperfeiçoamento da democracia representativa em nosso país.