PEC do calote – OAB contra a violação de direitos

3 de janeiro de 2022

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Arrisco começar este artigo com a seguinte afirmação: o Brasil talvez seja o único País do mundo em que permanece a cultura do calote do poder público. Vigora, por aqui, o pensamento enraizado e generalizado da inadimplência estatal no qual o “não pagar”, ou “pagar o mínimo possível” para favorecer o Estado tem sido discurso contumaz. 

Acontece que a inadimplência estatal no Brasil é extremamente grave se comparada a outros países. No mundo inteiro, as dívidas judiciais do poder público são pagas. Transitou em julgado, o juiz manda intimar. Intimou, deposita e libera o dinheiro para o credor.

Nos Estados Unidos, por exemplo, foi criado um Fundo Judicial, que realiza o pagamento por meio de transferência eletrônica para a conta do credor no prazo de duas semanas, se o pedido for eletrônico e, se não for, dentro de quatro e seis semanas. Em Portugal, o pagamento é feito diretamente ao credor por transferência bancária e/ou emissão de cheque. 

Ao contrário do que ocorre em outros países, no Brasil a perpetuidade da inadimplência do Poder Público tem se consagrado pelas sucessivas emendas constitucionais que trataram, como até hoje tratam, de estabelecer intermináveis “moratórias”, perpetrando verdadeiras violações aos direitos fundamentais dos credores da Fazenda Pública. 

Nunca é demais relembrar que os ataques do Poder Público contra direitos dos credores, ao longo de mais de 30 anos, já foram definitivamente rechaçados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando nas Ações Diretas de Inconstitucionalidades nº 4.357/DF e nº 4.425/DF reputou incompatíveis com a Constituição Federal quaisquer medidas que postergassem o pagamento de precatórios, impusessem a compensação forçada com débitos fiscais dos credores, ou alterassem os índices de juros de mora e correção monetária incidentes sobre créditos contra a Fazenda Pública.

Por esse motivo é que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem se posicionado firmemente contra qualquer violação ao direito de recebimento dos precatórios pelos credores. Tanto assim que em diversas oportunidades não só reiterou sua insurgência contra propostas manifestamente inconstitucionais, como, em contrapartida e sempre no intuito de colaborar para o avanço dessa questão, apresentou inúmeras soluções para resolver definitivamente o sistema perverso dos precatórios no Brasil. 

Não obstante os precedentes firmados pelo STF, as “tentativas” de “calote” tem sido pautadas pelos poderes Executivo e Legislativo em diversas oportunidades mediante apresentação de propostas de emenda constitucional (PECs) no Congresso Nacional. 

A mais recente é a PEC 23/2021, apresentada pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados, em agosto do presente ano, cujo objeto é estabelecer o novo regime de pagamentos de precatórios, por meio das modificações das normas relativas ao Novo Regime Fiscal e parcelamento dos precatórios do Fundef. 

No novo cenário, o texto da PEC, da forma como se encontra, viola duas cláusulas pétreas: o Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, e o princípio da separação dos Poderes, previsto no art. 2º, ambos da Constituição Federal, além de impor, nada mais nada menos, que outras mais de 30 inconstitucionalidades, se contadas ao longo do texto. 

Em outras palavras, a PEC 23 já nasce inconstitucional, porque contraria também o direito de propriedade, o princípio da isonomia, o direito à tutela jurisdicional efetiva e razoável duração do processo, o princípio da segurança jurídica, o respeito à coisa julgada e ao direito adquirido e, por fim, o princípio da moralidade administrativa. 

É certo que diante da aprovação de uma proposta tão prejudicial à democracia, a OAB ingressará com Ação Direta de Inconstitucionalidade junto aos STF, inclusive com pedido de liminar para suspender imediatamente eventual emenda constitucional, com objetivo de impedir consequências jurídicas e econômicas de gravidade sem precedentes. 

A lamentável PEC contempla contornos ainda mais graves pois, ao lançar um olhar além das inconstitucionalidades, chegamos à inevitável constatação de que a proposta do Governo trará mais prejuízos que benefícios, sobretudo porque estabelecer nova moratória não resolverá a situação orçamentária dos entes públicos, mas, ao contrário, representará um inquestionável retrocesso que agravará a situação fiscal da União e demais entes públicos e, ainda, ocasionará a retração da economia em prejuízo do País. 

A demonstração do Estado brasileiro de que não quer honrar suas próprias obrigações, reflete diretamente nas comunidades econômicas, e a gravidade e repercussão desses impactos no País podem ser resumidos aqui.

Em primeiro lugar, a PEC criará insegurança jurídica e enfraquecimento da imagem do Brasil no exterior, considerando que o texto proposto vilipendia direitos e garantias constitucionais, desampara os idosos, doentes e portadores de doenças graves, e empresas, a curto e médio prazos. 

As alterações acarretarão vertiginosa instabilidade macroeconômica, tendo em vista que diminui o potencial de crescimento econômico do Brasil, com o afastamento dos investidores internacionais, queda da Bolsa de Valores e aumento expressivo do dólar. Prova disso é que cada vez que submetida à votação em uma das duas Casas legislativas, há imediata reação negativa que repercute no Risco Brasil, na curva de juros da dívida e na confiança do mercado na economia brasileira. 

Aliado a tudo isso, o estabelecimento de “novo calote” contribuirá para a destruição de riquezas, inflação e retração da economia. 

Outro impacto de extrema gravidade econômica decorrente da inadimplência dos precatórios será o aumento exponencial da dívida consolidada, uma vez que sobre dívidas dessa natureza incidem juros e correção monetária, gerando, ao final, valores vultuosos com impactos diretos na atividade econômica. 

Para além das questões financeiras, como se já não fosse demasiado crítico o panorama de caos econômico, avalia-se também a instauração de verdadeiro caos administrativo no Poder Judiciário. Chama-se atenção a isto: A PEC estabelece um sistema de pagamentos inexequível!

Prevê-se uma crise sem precedentes na gestão dos precatórios pelos tribunais de Justiça estaduais e tribunais federais, com possibilidade factível de paralisar o pagamento dos precatórios.

Outro ponto que não se deve desconsiderar é o expressivo aumento no número de novas judicializações a médio e longo prazos, acarretando expedição de novos precatórios e, via de consequência, aumentando sobremaneira as despesas públicas, em verdadeira “bola de neve”.

Entretanto, o contexto que se apresenta pode ser analisado sob perspectiva mais otimista, desde que os atores políticos se conscientizem da necessidade de adoção de outros mecanismos para solucionar definitivamente a problemática situação dos precatórios no Brasil. Mas para isso é preciso um esforço conjunto na construção de entendimento entre os poderes, para encerrar, definitivamente, essa cultura nociva do “calote dos precatórios” no País. 

É nesse novo cenário de convergência e alinhamento que a OAB tem firmemente se posicionado, com apresentação de soluções efetivas, constitucionais e imediatas para resolver definitivamente o sistema de precatórios do Brasil.

Uma das alternativas que a OAB tem apresentado é da compensação fiscal, mas não aquela proposta pela PEC 23, na qual se estabelece a compensação obrigatória entre os créditos (precatórios) e as dívidas do credor com o Poder Público, uma compensação “compulsória” já declarada inconstitucional pelo STF. De outra forma, a compensação fiscal amparada no poder de escolha do credor é defendida como uma das formas mais rápidas e menos onerosas para os devedores. 

Somam-se à compensação fiscal outras tantas possibilidades constitucionais, como é o caso da criação das Certificados de Créditos Judiciais; possibilidade de utilização dos créditos em precatórios para compra de imóveis; criação de Fundos em Direitos Creditórios (FIDCs) para antecipação do pagamento dos precatórios pelos entes devedores; instituição de Câmaras Específicas de Conciliação e Mediação nos tribunais de Justiça, conferindo maior flexibilidade e rapidez nos acordos entre credores e devedores, entre outros. 

É possível otimizar o sistema, e a solução passa pela discussão ética e transparente, com e colaboração técnica entre os Poderes, para formular as bases de uma composição equânime entre interesses jurídicos distintos e de extrema relevância.  

O momento é, pois, o mais oportuno para o engrandecimento do debate, com a contribuição dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário na implementação de soluções nas quais credores tenham seus direitos efetivamente respeitados e os devedores possam adimplir seus compromissos sem onerar excessivamente seu orçamento.