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Prescrição e redirecionamento de cobranças

5 de dezembro de 2023

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A prescrição é tema tradicional, mas nunca estático: a constante renovação da matéria a tem feito ocupar parte relevante da jurisprudência brasileira.

O Superior Tribunal de Justiça pacificou nos últimos anos o prazo para reparação de danos decorrentes de ilícito contratual e a eficácia extrajudicial prescrição. Há, contudo, pontos importantes ainda carentes de estabilização. A lei não resolveu expressamente, e as cortes hesitam sobre o tema dessas linhas: a prescrição do redirecionamento de cobranças.

Para responder à questão, é preciso (i) definir o fenômeno, (ii) discernir se nele são identificados direito subjetivo e pretensão, ou outra posição jurídica alheia ao fenômeno prescricional; e, finalmente, (iii) definir qual o prazo e seu ponto de partida.

O problema – Propõe-se designar “redirecionamento de cobrança” a exigência de pagamento com relação a novo devedor, por fato superveniente à constituição originária do crédito. É o movimento de demanda que espelha a ampliação, a posteriori, do polo passivo da relação obrigacional.

O recorte é estrito: não se cuida de responsabilidade solidária “genética”, contemporânea ao nascimento do crédito, porque para esta a lei deu resposta expressa: na solidariedade, credores e devedores caminham pari passu, com a interrupção de fluência de prazo beneficiando (para aqueles) e prejudicando (para estes) todos os integrantes do polo obrigacional (Código Civil/ CC, art. 204).

Parece não ser evidente, contudo, a transposição dessa regra para hipóteses de expansão superveniente de responsabilidade. Esses casos são desconcertantes para a aplicação de um instituto fundado na fluência do tempo, porque o nascimento da relação jurídica que o legislador pressupõe uno é, aqui, cindido no tempo e na sua natureza.

Francisco é credor de dívida vencida de Pão Bom Ltda. em 2008, que, por trespasse, aliena estabelecimento a Cia. Panificadora S/A em 2010. Maria é credora de Pense TI Ltda. em 2017, que tem bens desviados em confusão patrimonial pela controladora TI Holding S/A em 2018 (nomes fictícios). No primeiro caso, a solidariedade advém do regime do trespasse (CC, art. 1.146); no segundo, da desconsideração de personalidade jurídica (CC, art. 50). Devedores ingressaram no jogo obrigacional com a partida em curso, e por porta diversa.

Prescrição ou decadência? – Em um precedente, afirmou-se que o redirecionamento de cobranças seria alheio à prescrição porque a ampliação de devedores seria direito potestativo do credor. A essa afirmação juntaram-se outras: direitos potestativos são sujeitos à decadência e, à míngua de prazo decadencial específico, esta prerrogativa sobreviveria indefinidamente (REsp nº 1.180.191/RJ).

Ninguém pode ter dúvida de que direitos potestativos perecem por decadência e que, para esta, não há prazo geral. O problema está na primeira premissa. Nos exemplos cogitados, a solidariedade advém da incidência da norma sobre o suporte fático (trespasse; abuso de personalidade), e nunca da vontade do credor em modificar a relação originária.

Quer por fonte lícita ou ilícita, é a lei que irradia efeitos de dívidas preexistentes sobre novos sujeitos. O credor, aqui, assiste a transformação da relação originária, não a promove. Para que se cogitasse de direito potestativo (unilateralmente criar, modificar ou extinguir relação), seria preciso que a norma outorgasse a prerrogativa do titular de crédito envolver terceiros, querendo-o. Não é isso o que faz a lei.

Verificada a responsabilidade do novo devedor, ao credor vai subitamente incorporada a nova feição de seu direito subjetivo de crédito e a possibilidade de exercê-lo ou não, mediante manejo da nova pretensão (= exigibilidade) contra o novo devedor.

A prescrição de redirecionamento de demandas – Prescrita a pretensão contra o devedor originário, é claro, a superveniência de devedor nada muda. Não há repristinação da pretensão originária, nem se pode cogitar do supervenientemente coobrigado se encontrar em estado mais grave que o devedor primário. A dúvida que releva é: pode haver pretensão ilesa contra o devedor originário (porque corre demanda judicial) e prescrita contra o superveniente (não demandado em juízo)?

A resposta é afirmativa.

A vaso-comunicação dos efeitos da interrupção prescricional a devedores solidários é regra excepcional que, como tal, deve ser interpretada restritivamente.

Nas hipóteses de solidariedade superveniente, a coobrigação tem natureza diversa da dívida originária. Tem suporte fático diverso, em tempo diverso. É fundada em nova pretensão para mesmo crédito. Para redirecionar a cobrança, ao credor não basta afirmar seu direito subjetivo remoto: deve invocar sua nova base de exigência, i.e., sua nova pretensão.

É preciso: (i) declarar o suporte fático da solidariedade, em declaração não-pura, porque voltada exclusivamente à cobrança; e (ii) postular o manejo da nova pretensão, para condenar o novo devedor ao pagamento. Todo esse suporte fático passa, por definição, ao largo da interrupção da prescrição contra o devedor originário. É fenômeno novo.

Desde os anos 1970 tem-se por claro que a condenação carrega pretensão material e esta, por princípio, está sob a ameaça da prescrição. Não é diferente, aqui. Muito diversamente de devedores de mesmo título, com an debeatur siameses, o devedor superveniente demanda análise fática, manejo pretensional e cálculo prescricional próprio.

Na contração de dívida solidária por empréstimo, a demanda contra um devedor demonstrará a existência do crédito, seu vencimento e os encargos de mora. Contra outro, demonstrará as exatas mesmas coisas. Não casualmente, a regra legal cogita também do fiador, que está em posição idêntica, salvo benefício de ordem.

Se em vez devedor solidário por mesmo título, cogitar-se de administrador atingível pela desconsideração da personalidade jurídica, a cobrança será diversa. O credor deverá demonstrar adicionalmente que houve fraude na administração, ou abuso da personalidade jurídica, debruçando-se sobre fatos, provas, causas de pedir e pedidos novos. Não é de se estranhar que as ramificações processuais sejam vastas (encapsuladas, inclusive, em incidente próprio), pois todas se instrumentalizam a uma nova pretensão, surgida posteriormente, conquanto voltada à satisfação do crédito originário.

Privado da prescrição, este administrador – sujeito a apenas três anos de exposição por atos de sua gestão – poderia se ver às voltas com sua defesa passada uma década, ou mais, de sua saída do seio social. Defesa, então, despida de memória e documentos essenciais à assertividade argumentativa, valor há séculos tutelado pela prescrição.

Isso leva, então, à última cogitação: qual é o prazo prescricional?

A resposta parece mais simples, para concluir que o prazo deve ser o mesmo da dívida originária, sempre sob a máxima de que ninguém pode se coobrigar por mais do que o devedor primário se obrigou.

Há, contudo, uma exceção. Quando a coobrigação advier de fato sujeito a regime prescricional mais breve, este deve ser aplicado. A uma, porque a norma especial (responsabilidade do coobrigado) prevalece sobre a geral (responsabilidade do devedor primário). A duas, porque incidiria na dúvida interpretativa (que não parece haver, diante da primeira razão) o princípio do favor debitoris, inclinando-se o ordenamento pela exoneração.

Se esta contagem de prescrição for interrompida contra o devedor primário, por demanda judicial em curso, o prazo fluirá da actio nata, i.e., a partir do aperfeiçoamento do suporte fático de ampliação da responsabilidade. Não se pode cogitar da fluência prescricional desde a exigibilidade da dívida originária, para não correr o risco de exoneração sumária do novo devedor sem chance real de exigência pelo credor (tecnicamente possível, a “prescrição de eficácia antecipada” reclama previsão legal expressa).

A conclusão civil a que se chega é, anote-se, coerente com o Tema 444 do Superior Tribunal de Justiça para matéria tributária. Sendo o ilícito causador do redirecionamento posterior ao início da demanda contra o devedor primário (como no caso de administradores que tenham inviabilizado a satisfação do crédito tributário), a Corte decidiu ser do dia do ilícito que se conta o prazo prescricional paralelo em desfavor dos coobrigados. Matéria pacificada.

Também assim no Código Civil. Não demandado o novo devedor pela integralidade do prazo prescricional, com o perdão do truísmo, a prescrição terá se operado. Sob pena de (i) se incorrer no que parece uma equivocada equiparação de situações diversas (codevedor genético e superveniente); e (ii) vulnerar a segurança jurídica, base da disciplina da prescrição, é preciso (iii) enterrar de uma vez por todas a ideia de um devedor novo, colhido em meio à lide do devedor originário, que possa se ver vinculado perpetuamente e às cegas. Não é assim, enquanto houver prescrição, racionalmente manejada.