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Prisão alimentar: entre o cárcere e a tornozeleira

6 de agosto de 2019

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Não obstante as precárias e desumanas condições dos presídios brasileiros, em se consultando os elementos disponibilizados pelos tribunais conclui-se que, enquanto os juízos criminais, a cada dia, valem-se mais e mais da prisão domiciliar monitorada eletronicamente por tornozeleira, o juízo civil, ao contrário, insiste em decretar a prisão civil em regime fechado diante da inadimplência da verba alimentar, cujo devedor tem grau de periculosidade zero.

O fundamento jurídico que alicerça a prevalência da prisão civil em regime fechado sobre a domiciliar monitorada por tornozeleira está na autorização constitucional (art. 5º, LXVII, da CR) e no disposto no art. 528, §4º, do CPC, in verbis: “a prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns”.

Portanto, impõe-se reconhecer que o decreto de prisão do devedor de alimentos tem sólida sustentação jurídica. Ocorre que, à luz da interpretação teleológica e sistemática, não se nos parece possível interpretar o art. 528, §4º, sem considerar o disposto no art. 805 do CPC, “norma meio” nas palavras do Prof. Dierle Nunes, cuja redação preceitua que, na hipótese de execução, em havendo mais de um meio de se exigir a obrigação, adotar-se-á o meio menos gravoso ao devedor. O dispositivo é assim interpretado pela doutrina:

“[…] prevê o art. 805 do CPC, que, sempre que a execução possa desenvolver-se por mais de um meio, deve-se optar por aquele que seja menos gravoso ao executado. Ou seja, se coexistirem várias técnicas de efetivação judicial das prestações que tenham o mesmo grau de eficácia, então não se justifica o emprego da técnica mais onerosa ao executado, sob pena de transformar-se a execução em simples mecanismo de desforra do credor. […] sempre que coexistirem mais de um mecanismo igualmente hábil para esse resultado efetivo, deve-se sempre optar pelo caminho menos gravoso ao executado.” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, v. 2, p. 714/715).

À luz do que dispõem o art. 528, §4º, e o art. 805, ambos do CPC, cumpre recordar que, mais que um mero aplicador mecânico da lei, que se vale do silogismo para dizer o direito, cabe ao magistrado identificar o alcance e o sentido da norma aplicanda que melhor garanta sua dela eficácia à luz das circunstâncias fáticas, isto é, ao interpretar e aplicar a norma, ao magistrado incumbe, mediante ação cognitiva hermenêutica, fazer com que essa norma cumpra sua finalidade, alcance o seu sentido teleológico. Em verdade, o ordenamento jurídico apresenta ao intérprete inúmeras disposições normativas; cabe-lhe hierarquizá-las mediante juízos de ponderação, de modo a identificar, dentre elas e os sentidos que cada qual contém, a hipótese de incidência e sua consequência jurídica, sem se descurar, nunca, dos elementos históricos, institucionais culturais, sociais, morais e econômicos que integram o contexto em que se encontra o caso concreto. É pela valoração jurídica contextualizada que o intérprete escolhe, dentre as diferentes opções, qual solução irá adotar. A arte de interpretar e aplicar a norma constitui algo harmonioso, dinâmico, vivo, trata-se de uma operação intelectual em que o intérprete deve se empenhar para encontrar soluções socialmente aceitáveis, razoáveis ou proporcionais.

O cânone  da proporcionalidade, a meu inteligir, é aplicável à espécie porquanto à luz do postulado da  proporcionalidade o que se investiga é se há relação de causalidade entre meio e fim, entre a ofensa e os objetivos da exemplaridade; no tocante ao cânone da razoabilidade, este  é aplicável quando há conflito entre a norma geral e a norma individual concreta, entre o critério e a medida. Preleciona Humberto Ávila:

“O postulado da proporcionalidade aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. Um meio é adequado quando promove minimamente o fim. Na hipótese de atos jurídicos gerais a adequação deve ser analisada do ponto de vista abstrato, geral e prévio. Na hipótese de atos jurídicos individuais a adequação deve ser analisada no plano concreto, individual e prévio. O controle da adequação deve limitar-se, em razão do princípio da separação dos Poderes, à anulação de meios manifestamente inadequados. Um meio é necessário quando não houver meios alternativos que possam promover igualmente o fim sem restringir na mesma intensidade os direitos fundamentais afetados. O controle da necessidade deve limitar-se, em razão do princípio da separação dos Poderes, à anulação do meio escolhido quando há um meio alternativo que, em aspectos considerados fundamentais, promove igualmente o fim causando menores restrições. Um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção ao fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.” (ÁVILA, Humberto Bergmann. A teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 131).

É de se pontuar que, tendo em vista a extenuação do sistema prisional de nosso País, mesmo na esfera do direito penal, já se admite a substituição da prisão domiciliar monitorada pela tornozeleira eletrônica. Senão, vejamos:

Ementa: EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO. PRISÃO DOMICILIAR. MONITORAMENTO ELETRÔNICO. POSSIBILIDADE. DECISÃO MANTIDA. Prisão Domiciliar. É possível a imposição da prisão domiciliar fora dos casos estritamente previstos no artigo 117 da Lei de Execução Penal, devido à ausência de vagas em estabelecimento prisional adequado ao cumprimento da pena. Rol não taxativo. Precedentes da Câmara e do Supremo Tribunal Federal. Monitoramento Eletrônico. A concessão do benefício da prisão domiciliar com monitoramento eletrônico ao apenado tem como objetivo minimizar a problemática da ausência da vaga em estabelecimento prisional adequado. Medida que garante o controle e a fiscalização do cumprimento da pena. Precedentes da Câmara. RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRS – Agravo Nº 70065947400, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Redator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 10/09/2015, Publ. em 15/12/2015).

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO MINISTERIAL. DECISÃO HOSTILIZADA QUE DEFERE PRISÃO DOMICILIAR MEDIANTE CONDIÇÕES. PEDIDO DE REFORMA, PARA QUE O APENADO SEJA POSTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL DO REGIME SEMIABERTO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO FORA DAS HIPÓTESES ELENCADAS PELO ARTIGO 117 DA LEI 7.210/1984. PRECEDENTES DO STF, DO STJ E DA TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TJ/RS. HIPÓTESE QUE JUSTIFICA A ESPECIAL CONCESSÃO. RECURSO DESPROVIDO. (TJRS – Agravo Nº 70062020656, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 23/04/2015).

Não bastasse a superlotação do sistema prisional de nosso país, que, segundo dados do CNJ, conta com 719.969 presos no Brasil (Fonte: CNJ/BNMP 2.0 – Cadastro Nacional de Presos, 2018 – Acesso em: 10 jul. 2019), número que inviabiliza que o encarceramento do devedor alimentar se dê numa cela apartada dos homicidas, dos membros de quadrilha organizada, dos latrocidas, dos estupradores e demais criminosos de alta periculosidade. Ademais, no tocante à eficácia do decreto de prisão, cabe pontuar que, em consulta ao sistema de mandado, em julho de 2019, apurou-se que 389.049 ordens de prisão aguardam cumprimento (Fonte: CNJ / Banco Nacional de Mandados de Prisão – BNMP – Res. n. 37 – Acesso em: 10 jul. 2019), sendo que, somente em Minas Gerais, esse número chega a 31.453 ordens de prisão expedidas.

No que tange à eficácia do uso de tornozeleiras, como substituto da prisão, nosso Tribunal, até o momento, expediu três ordens, uma delas já confirmada pela 5ª Câmara Civil. Das três expedidas, um devedor apresentou um apartamento como caução; outro, ofereceu caução de objetos móveis, que estão sendo avaliados pelo Juízo a quo; e o terceiro, que não se apresentou para que lhe fosse implantada a tornozeleira, e teve a medida convertida em prisão por não ter se apresentado até 11/julho/2019. Não bastassem as razões jurídicas e humanitárias, sob o ponto de vista financeiro, enquanto o Estado consome R$ 2.640 reais por mês com um único detento, a tornozeleira lhe custa R$164,00 reais/mês.

Por último, cumpre recordar que às vezes é necessário que a letra da lei se dobre ante a realidade, a lei tem compromisso com a realidade. Por isso, mesmo que a forma continue intocada, para que continue lei justa, deve ela, através da revolução inocente que produz a interpretação, curvar-se às exigências impostas pela realidade. Ao magistrado e ao cientista do direito compete superar os impasses que se apresentam, e não, render-se, deixar-se capitular pelos crescentes conflitos da civilização. Ciência é abstração, vida é vida. “Soberana não é a lei, é a vida” – dizia o saudoso Min. do STJ, Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Referências_____________________

ÁVILA, Humberto Bergmann. A teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 jul. 2019.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 jul. 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ / Banco Nacional de Mandados de Prisão – BNMP – Res. n. 37.  Disponível em: https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/captcha/%2Fpesquisa-peca. Acesso em: 10 jul. 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ/BNMP 2.0 – Cadastro Nacional de Presos, 2018. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0. Acesso em: 10 jul. 2019.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, v. 2.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de justiça. TJRS – Agravo Nº 70062020656, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 23/04/2015.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de justiça. TJRS – Agravo Nº 70065947400, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Redator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 10/09/2015, Publ. em 15/12/2015.