Quem tem medo do voto facultativo?

16 de junho de 2014

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Marcelo-Nobre_1. Considerações iniciais
A discussão sobre qual é o sistema de voto ideal para o País, se o obrigatório ou o facultativo, já foi feita à exaustão, inclusive durante a própria constituinte que aprovou a Carta Magna vigente.

Por esse motivo, não pretendo rediscutir ou repisar os argumentos utilizados pelos defensores das duas teses. Se buscarmos estudar o assunto nas bibliotecas ou nos sites de busca na internet, encontraremos milhares de artigos e debates que retratam todos os tipos de argumentos e fundamentações possíveis para sustentar os pontos de vista sobre a matéria, o que dispensa sua reprodução no limitado espaço deste ensaio.

Veremos a seguir se o sistema eleitoral – voto – enquadra-se no contexto democrático atual ou se há necessidade de se adequar aos princípios e critérios fixados pela Constituição e pelos avanços sociais e políticos conquistados nestes mais de 20 anos de vigência.

Alguns estudiosos do tema, que discutem se o voto deve ser obrigatório ou não, levantam algumas questões, que podem ser resumidas nos seguintes pontos:

• O voto é um dever ou um direito?
• A maioria dos eleitores dispõe de informações suficientes para formar sua convicção?
• O povo é ou não é soberano para decidir sobre qual dos dois sistemas é o mais adequado – plebiscito? “O povo não sabe votar”. Em qual sistema ele não sabe votar?
• Obrigar a votar não é autoritário? A obrigatoriedade seria compatível com o Estado Democrático de Direito?
• O voto obrigatório produz consciência política?
• O voto obrigatório oferece maturidade política ao cidadão ?
• Mesmo com sanções existentes hoje para quem não cumpre com a obrigação de votar temos, de fato, uma significativa representatividade popular nas eleições?
• Os direitos e as garantias individuais do cidadão, consignados como cláusula pétrea no artigo 60, parágrafo 4o, inciso IV, da Carta Magna, estão sendo observados com o voto obrigatório?

O voto obrigatório foi introduzido no Brasil com o Código Eleitoral de 1932 e foi mantido na Carta de 1988 após intensa discussão entre os constituintes. A época era outra. Estávamos no início da redemocratização após 20 anos de ditadura militar. O receio de retrocesso era grande. O pensamento que imperava em todos era o de lutar com a força e as armas possíveis para que a consolidação da democracia no País avançasse. E uma das principais armas para se atingir esse objetivo, à época, era o voto obrigatório.

Todavia, agora o momento político é outro. Temos uma democracia consolidada com avanços inimagináveis até mesmo para os mais otimistas. Alcançamos a marca de seis democráticas eleições diretas e ininterruptas para presidente, sendo que no curso deste período tivemos o primeiro impeachment de um presidente da República, sem que isso causasse qualquer abalo em nosso reinício democrático.

Agora, precisamos avançar mais! Precisamos continuar evoluindo na consolidação democrática que inegavelmente produziu uma maturidade política nos cidadãos brasileiros.

E se não evoluímos ainda o que deveríamos, foi por culpa da resistência conservadora que insiste em não mudar a mentalidade para adaptar-se ao novo mundo. As mudanças sempre trazem profunda resistência. E isso acontece porque, para quem pretende manter o jogo, mudar as regras traz mais incertezas que certezas.

O primeiro ponto encaminha a questão: O voto é um dever ou um direito? Aqueles que sustentam que o voto é um dever entendem que ele é obrigatório. Os que veem o voto como um direito entendem que ele deve ser facultativo, ou seja, que o cidadão deve exercer o sufrágio, se desejar.

A essência do pensamento daqueles que defendem que o voto é um dever está no compromisso do cidadão perante sua coletividade e, consequentemente, com o de escolher os seus representantes políticos. E, corroborando esse pensamento, o doutrinador Sampaio (1981, p.66) chega a afirmar que “o voto tem caráter de função pública”.

Por outro lado, dentre aqueles que defendem que o voto deve ser facultativo, temos a respeitada voz do ex-senador da República Jutahy Magalhães, que afirma, em um de seus muitos pronunciamentos na tribuna do Senado Federal, que “os defensores deste constrangimento legal (que é o voto obrigatório) têm a pretensão de impor a participação política como um modo de estabelecer legitimidade para a democracia representativa”.

Como já afirmei anteriormente, não vou discutir aqui teses de ambos os lados, embora seja necessário referi-las, em sua essência, em proveito da abordagem que proponho.

Os que sustentam a tese de defesa do voto obrigatório utilizam-se, principalmente, dos seguintes argumentos: que o voto é um dever, que a tradição é pelo voto obrigatório, que os benefícios trazidos pelo atual sistema político-eleitoral são maiores que a relativa perda de liberdade de cada cidadão, que o Brasil não está preparado para o voto facultativo (“o povo não sabe votar”), que falta educação política ao eleitor, que o voto obrigatória faz que a maioria da população vote e que o voto obrigatório diminui o risco de venda de voto.

Aqueles outros que defendem o voto facultativo utilizam-se, principalmente, dos seguintes argumentos: que o voto é um direito, que a obrigatoriedade do voto não educa ninguém politicamente, que é inverídica a afirmação de que a maioria dos cidadão participa das votações obrigatórias, que as nações democráticas e evoluídas adotam o voto facultativo e que é inadmissível num Estado Democrático de Direito obrigar o cidadão a exercer sua cidadania.

2. Históricos de reafirmação do voto obrigatório e o atual momento político
O voto obrigatório foi adotado no Brasil há quase 80 anos. A última discussão sobre sua manutenção, ou não, ocorreu há mais de 20 anos, durante a constituinte.

É absolutamente certo que, após este período, o Brasil consolidou a democracia e prestigiou o Estado de Direito, tendo realizado, repita-se, seis eleições diretas para presidente, além de suportar o primeiro impeachment de um presidente, justamente o primeiro eleito diretamente pelo povo, após 20 anos de autoritarismo.

Portanto, podemos afirmar que, apesar desse momento critico vivido, a democracia não sofreu qualquer abalo e se estabeleceu em definitivo nos corações livres dos brasileiros.

No ano passado, o respeitado instituto Datafolha realizou uma pesquisa, visando esclarecer o que os pesquisados pensavam sobre a obrigatoriedade do voto. O resultado foi uma exata divisão nas opiniões: 48% foram a favor do voto obrigatório e 48% foram favoráveis ao voto facultativo.

Outras pesquisas mostram que, se o voto fosse facultativo, quem não compareceria às urnas seria a classe média e não a classe mais carente, como se imaginava. As pesquisas esclarecem qual a distância existente entre a vontade popular e os nossos sistemas e instituições.

As eleições nos ensinam muito. Sabemos, por exemplo, que aproximadamente 40% do eleitorado brasileiro não querem participar do processo eleitoral com esse modelo. Entre abstenções, votos brancos, nulos, justificados e aqueles que pagam os quase R$ 5 de multa pelo não comparecimento às urnas, ficamos próximos dos percentuais de comparecimento do eleitorado nos países onde o voto facultativo é adotado.

Em outras palavras, usando os mecanismos já existentes – justificativas, votos branco e nulos – os brasileiros expressam seu desejo de não participar do importante momento de escolha dos seus representantes.

3. A rediscussão do voto obrigatório e propostas
A nossa expertise em realizar eleições e a nossa tecnologia de última geração são reconhecidas mundialmente, o que já provocou a vinda de inúmeros representantes de vários países para “aprender” conosco sobre a realização de eleições.

Nossa evolução no sistema eleitoral é tão grande que o Tribunal Superior Eleitoral já entrou na era da biometria, ou seja, na leitura das digitais dos eleitores.

Ora, se consolidamos a democracia vivenciando-a por período nunca antes vivido; se detemos tecnologia de última geração na Justiça Eleitoral; se a última discussão acerca do tema foi travada quando da constituinte há mais de 20 anos; se aproximadamente 40% do eleitorado utilizam-se de métodos aceitáveis para não votar, pergunta-se: Por que não discutir com o povo agora, nesta nova perspectiva, sobre o que ele deseja?

Após 80 anos de voto obrigatório, exercidos em grande parte sob o período de ditadura e, nestes últimos 20 anos, sob o período democrático, será que não é a hora de pensarmos em ouvir o soberano povo brasileiro sobre o que ele deseja?

Nossa constituição prevê mecanismos de participação popular direta para aproximar a vontade do cidadão ao que é determinado a ele. Afinal, o poder é do povo e em seu nome é exercido pelos representantes eleitos.

Temos experiência de alguns plebiscitos para saber se a maioria deseja que o voto continue obrigatório ou se deve ser feita uma experiência com o voto facultativo?

O dicionário Aurélio (2010) nos ensina que plebiscito é “o decreto do povo reunido”; “resolução submetida à apreciação do povo”; “voto do povo, por sim ou não, sobre uma proposta que lhe seja apresentada”.

Por que temer o plebiscito?

Há grande vantagens nesse modelo de consulta, porque teses podem ser levadas diretamente ao cidadão, o importante destinatário dos argumentos, que terá oportunidade de dirimir suas dúvidas.

Se a maioria decidir por experimentar um novo modelo, qual será o problema? Qual é o risco para a democracia? Quem tem receio de que o sistema eleitoral venha de encontro ao desejado pelo povo?

Um plebiscito, para saber qual a vontade popular sobre o voto obrigatório e o facultativo é o que se espera.

Contudo, entendo ser necessário realizar o plebiscito em duas etapas. A primeira para se saber qual é a vontade popular sobre a questão. Se a maioria decidir pela manutenção do voto obrigatório, a questão está encerrada. Se a maioria decidir pelo voto facultativo, devemos discutir a fixação de um número de eleições neste modelo – seis ou oito eleições, por exemplo -, deixando consignado que, ao final do número de eleições estabelecido, haverá um novo plebiscito para que o povo novamente avalie a experiência do voto facultativo, validando-o ou não.

Ressalvo, entretanto, o meu posicionamento no sentido de que o número de eleições estabelecido não pode ser pequeno, para evitar o risco de não se conseguir avaliar corretamente o modelo.

Esta fórmula impede conclusões precipitadas, mas também não fecha as portas para uma avaliação e, eventualmente, um retorno ao modelo anterior, se for o caso.

Assim é que se pode construir um modelo ainda mais aperfeiçoado e próximo da vontade popular.

4. Consciência e maturidade política decorrem do voto obrigatório?
É inegável a evolução social e política da população brasileira nestes 80 anos de voto obrigatório. Mas será que essa evolução se deu em razão da obrigatoriedade do voto?

Em momento histórico não tão longínquo, não tínhamos possibilidade de discutir política abertamente nas ruas, nos bares, em qualquer lugar. E não conseguíamos também acompanhar os acontecimentos políticos na sua plenitude, em razão da forte censura governamental junto aos órgãos da imprensa.

Mesmo com todas as adversidades, o povo ousou. E o fez com responsabilidade – sem derramamento de sangue –, reunindo-se nas ruas e praças de todo o País e clamando por liberdade, democracia, igualdade, transparência e muito mais.

Esse povo unido fez ruir um governo que nunca o representou. Esse povo unido realizou, por meio dos seus representantes diretos, a nossa Constituição cidadã. Esse povo unido realizou o primeiro impeachment de um presidente da República. Esse povo unido fez muita coisa em favor da nossa democracia e estabilidade política.

Com tantos avanços decorrentes da atuação política destemida do povo brasileiro, como é possível imaginar que este mesmo povo não tem maturidade política? Podemos até concordar que, no início da nossa redemocratização, o voto obrigatório teve um papel importante, mas, agora, vivenciando um longo período de democracia nunca antes desfrutado, não podemos pensar que o voto obrigatório seja o responsável por esta conscientização política.

5. O futuro chegou
Como já referi, a Justiça Eleitoral entrou na era da biometria. A leitura das digitais do eleitor para a prática de todos os atos relativos ao exercício da sua cidadania no sufrágio representará muito mais que apenas segurança.

Com este sistema, o leitor será completamente identificado, de forma célere, em qualquer ponto do território nacional e até do exterior. Este sistema de última geração é o mesmo adotado pela Polícia Federal nos passaportes.

Com tal avanço tecnológico, já se pode pensar, em um futuro muito próximo, em adotar definitivamente o voto em trânsito em todo o território nacional e não somente para presidente da República.

A leitura digital viabiliza o voto seguro em qualquer lugar do País. Além da segurança, viabiliza, também, que o cidadão não justifique ou pague a irrisória e estimulante multa por ter viajado no dia de votação.

O controle da leitura biométrica permitirá que ampliemos aos cidadãos a sua liberdade e independência para votar. Tanto isso é verdade que o voto em qualquer ponto do território nacional permitirá que os milhões de brasileiros que residem em lugares distintos dos seus domicílios eleitorais exerçam o seu direito de escolher os seus representantes em vez de justificarem a sua impossibilidade de se deslocar.

Uma grande parte da classe média viaja, deixa de votar e simplesmente justifica. Teremos na evolução tecnológica da Justiça Eleitoral um grande aliado na busca da maior participação popular nas eleições.

6. Conclusão
É necessário ouvir os responsáveis pela razão de existir da própria nação, por meio de um plebiscito, assim como é necessário investir nos recursos tecnológicos da Justiça Eleitoral para que tenhamos uma democracia plena, mais cidadã e muito mais livre.

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