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Reajuste e revisão: Instrumentos de manutenção da prestação de serviços públicos de caráter essencial

30 de junho de 2017

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Uma das questões controversas que circulam no seio da sociedade é a discussão sobre a forma de revisão das tarifas que compõem a parte da remuneração dos prestadores de serviços públicos.

Para quem não está acostumado com o assunto, as formas de revisão dos Contratos Públicos são aleatórias e, normalmente, tidas como contrárias ao interesse da coletividade.

Contudo, ao contrário do que supõe parte da opinião pública, a revisão das tarifas é legalmente prevista, sendo certo que, normalmente, é a Administração Pública que falha na demonstração transparente de como os contratos são reajustados.

Pois bem, é notório no Direito que o fundamento medular de qualquer contrato é o acordo de vontades com objetivo determinado, por meio do qual as partes se comprometem a honrar as obrigações pactuadas.

Sendo a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal pessoas jurídicas de direito público e, assim, qualificados a adquirir direitos e contrair obrigações, não há óbice para que esses entes figurem como sujeito de contratos.

Especificamente com relação ao ente público, “o ajuste firmado entre a administração pública e um particular, regulado basicamente pelo direito público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma forma, traduza interesse público”, concretiza um contrato administrativo. Se, por um lado, esse tipo de pacto não pode ser desnaturado até que se perca sua essência contratual, não deve, por outro, ser livre a ponto de se olvidar de condições especiais que giram em torno da figura do Estado.

De fato, em se tratando de contrato administrativo, a Administração Pública detém o privilégio de, em certo grau, modificar unilateralmente a obrigação contratual. No entanto, essa prerrogativa não pode ser utilizada de maneira arbitrária, mesmo para pretensamente atender o interesse coletivo, de modo a causar prejuízo ao contratado, encontrando limite, principalmente, no campo das cláusulas econômico-financeiras.

Nesta toada, o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal assim dispõe:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(…)

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Além da Constituição Federal, os artigos 9o da Lei Federal de Concessões (no 8.987/1995) e 58, § 1o, da Lei Federal de Licitações (no 8.666/1993), garantem o equilíbrio financeiro do contrato:

Art. 9o A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

***
Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:

I – modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; (…)

§1o: As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.

A doutrina é igualmente tranquila no sentido de que as cláusulas que asseguram a remuneração do contratado não podem ser alteradas de forma unilateral pela Administração Pública:

Já vimos que em todo contrato administrativo coexistem duas ordens de cláusula: as econômicas e as regulamentares do serviço, da obra ou do fornecimento. Aquelas são inalteráveis unilateralmente, porque fixam a remuneração e os direitos do contratado perante a Administração e estabelecem a equação financeira a ser mantida durante toda a execução do contrato; estas – as regulamentares ou de serviço – são alteráveis unilateralmente pela Administração segundo as exigências do interesse público que o contrato visa a atender.(grifo nosso)

Em outras palavras, o ordenamento jurídico pátrio exige que seja mantida a condição efetiva da proposta, sendo certo que a definição da equação econômico-financeira se dá no momento em que se firma o contrato, sendo esta definida como:

a relação entre encargos e vantagens assumidas pelas partes do contrato administrativo, estabelecida por ocasião da contratação, e que deverá ser preservada ao longo da execução do contrato.

Sem a garantia da manutenção da equação financeira do contrato público, pode-se dizer que sequer haveria interesse dos particulares em contratar por longo período de tempo com a Administração Pública. A própria jurisprudência segue nesse sentido, tal como pode ser visto no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial no 215.018 – DF:

(…) Às prerrogativas da Administração, advindas das cláusulas exorbitantes do Direito Privado, contrapõe-se a proteção econômica do contratado, que garante a manutenção do equilíbrio contratual (…). É escusado dizer que ninguém se submeteria ao regime do contrato administrativo se lhe fosse tolhida a possibilidade de auferir justa remuneração pelos encargos que assume ou pagar justo preço pelo serviço que utiliza.

Consequência natural que a falta de segurança na Administração pode causar é, naturalmente, a diminuição do interesse de particulares em contratar com o Poder Público, notadamente porque as empresas privadas têm como finalidade precípua auferir lucro e distribuí-lo perante seus sócios. Cite-se, a título de exemplo, a recente desistência da concessionária que administra o estádio do Maracanã, após mudança unilateral do Contrato de Concessão, impedindo a exploração de receitas acessórias oriundas de empreendimentos comerciais (shoppings), mesmo havendo previsão contratual para tal.

Ou seja, quando pactuam, os contratantes implicitamente almejam reciprocamente que seja respeitado o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, não sendo legítimo frustrar a justa expectativa do contratante privado.

Dessa maneira, mostra-se necessário propiciar às partes a oportunidade de restabelecer o equilíbrio toda vez que ele for quebrado, de maneira que não seja necessário rescindir o contrato, o que, no âmbito dos serviços públicos, poderia ensejar grande prejuízo à própria coletividade.

Existindo fatos variados que podem culminar no desequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, várias também são as formas permitidas em nosso ordenamento jurídico com o objetivo de reequilibrá-lo.

A primeira, e mais essencial forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, é o reajuste da tarifa, que consiste em mera manutenção da contraprestação devida ao particular frente aos efeitos inexoráveis da inflação, geralmente definida no momento da contratação, visando uma proteção para ambas as partes com relação à variação de preços dos insumos que afetam o serviço, seja por perda do valor da moeda, seja por situações específicas do setor.

Dessa forma, o reajuste traduz-se na aplicação de fórmulas paramétricas previamente estabelecidas no contrato e que reflitam a variação dos custos do concessionário, visando, em outras palavras, a manutenção do valor-base inicialmente previsto.

Cabe frisar que, no que tange ao reajuste, não deve haver discussão quanto à possibilidade de sua ocorrência, mas tão somente acerca da adequação dos cálculos relativos à sua aplicação, sob pena de tornar inviável ao Concessionário a prestação de serviço nos moldes do procedimento licitatório.

Assim, o não reajuste anual da tarifa implica em descumprimento de cláusula contratual, previamente estipulada, conhecida e confirmada pelas partes no momento de assinatura do contrato, culminando em presunção absoluta de violação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Sobre o tema, confira-se a doutrina:

O reajuste contratual é instituto que se originou no Direito Comparado, mas que recebeu prestígio enorme no âmbito nacional, com aplicação generalizada muito antes das Leis nos 8.666 e 8.987. Consiste numa modalidade de indexação dos preços contratuais, submetendo-se a variação periódica e automática correspondente à flutuação de índices predeterminados. A variação dos índices produz uma espécie de presunção absoluta de ofensa ao equilíbrio econômico-financeiro e acarreta a alteração dos valores contratuais proporcional à variação dos índices.(…)

Sobre o ponto, os tribunais possuem entendimento consolidado, como é o caso do próprio Superior Tribunal de Justiça:

(…) Assim, considerando que a legislação que trata da matéria não impede a fixação da tarifa com base no número de eixos dos veículos e que essa parece ser a forma mais objetiva de fixá-la, deve prevalecer a sistemática prevista no contrato de concessão, sobretudo porque o art. 9o da Lei 8.987/95 dispõe que “a tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato” […].(REsp 1077298/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 28/04/2009, DJe 03/06/2009)

Caso ilustrativo da importância de tal instituto acontece no Município do Rio de Janeiro, no qual a nova administração, iniciada no ano de 2017, deixou de autorizar o reajuste anual previsto em diversos contratos administrativos, como é caso do pedágio na Linha Amarela e na via Transolímpica (ambos de R$ 6,60 para R$ 7,00), e do valor da passagem referente aos ônibus municipais (de R$ 3,80 para R$ 3,95).

Diante dos efeitos prejudiciais que a não concessão do reajuste causa às empresas concessionárias, a questão tende a ser judicializada, o que, de fato ocorreu nos exemplos acima citado, valendo destacar que no caso da Linha Amarela e Transolímpica já foram concedidas liminares permitindo o reajuste anual, e, no caso dos ônibus municipais, aguarda-se decisão sobre o pedido liminar.

Outro instituto que visa reequilibrar a equação econômico-financeira é o da revisão. Este é um mecanismo direto de alteração do valor da tarifa, visando reestabelecer o equilíbrio econômico-financeiro provocado por diversos eventos ocorridos durante a execução contratual e não previstos inicialmente no contrato administrativo. Desse modo, as revisões referem-se

aos fatos supervenientes e imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis (ex: alteração unilateral do contrato) que desequilibram a equação econômica do contrato.

Ou seja, o instituto da revisão visa adequar as condições contratuais às instabilidades próprias do mercado que influenciam nos custos para prestação do serviço, com objetivo de permitir a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

É importante destacar que a revisão contratual permite que se modifique não apenas o valor da tarifa cobrada de usuários do serviço público, mas também o nível de serviço, o plano de investimento e o prazo do contrato, representando, como se observa facilmente, mecanismo distinto do reajuste ocorrido anualmente, anteriormente mencionado.

A revisão pode se dar de maneira ordinária ou extraordinária. Enquanto a primeira tem por objeto rediscutir, de tempos em tempos, os valores de tarifa a partir dos parâmetros de eficiência esperados tanto pelo concessionário, quanto pelo permissionário, a segunda busca a retomada imediata do equilíbrio de contrato em função de circunstâncias que originem uma onerosidade excessiva.

Exemplo relativo à revisão extraordinária vem ocorrendo com relação aos ônibus municipais do Rio de Janeiro. Em decorrência de diversos custos adicionais não comportados pelo contrato administrativo de concessão, especialmente aqueles relativos à instituição de gratuidades para estudantes do ensino universitário e à implementação de equipamentos de ar-condicionado em toda a frota, o Município do Rio de Janeiro concedeu, nos anos de 2014, 2015 e 2016, implementos tarifários a título de revisão extraordinária.

Tal como ocorreu com relação ao reajuste, o Município do Rio de Janeiro deixou de conceder a revisão extraordinária referente ao corrente ano, o que igualmente culminou na propositura de medida judicial, não tendo sido ainda apreciado o pedido liminar.

Como se observa, a revisão extraordinária mostra-se essencial à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, desde que comprovados os eventos não previstos no contrato de concessão e seus respectivos gastos.

A segunda – mas não menos relevante – forma de revisão, é a chamada ordinária, também conhecida como revisão programada, cuja realização (usualmente de quatro em quatro ou cinco em cinco anos) tem por escopo aferir, com o passar do tempo, os parâmetros de eficiência previstos originariamente no contrato, buscando a retomada periódica do seu equilíbrio.

Destaca-se que as empresas de ônibus também vêm sofrendo os efeitos da não realização, pela municipalidade, dessa modalidade de revisão, visto que o Município de Janeiro deixou de realizar a revisão quadrienal prevista no contrato e que deveria ter ocorrido em 2015.

É inconteste que a revisão – seja periódica ou extraordinária – assume grande relevância na medida em que garante a estabilidade e transparência necessárias ao atendimento das demandas do poder concedente, da concessionária e, principalmente, dos usuários.

Como se pode observar dessas breves consi­derações, os institutos de reajuste da tarifa e revisão do contrato servem para manter o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato e garantem, a um só tempo, a modicidade tarifária (direito subjetivo do usuário de serviço público) e a Taxa Interna de Retorno (TIR) adequada à satisfação dos interesses legítimos dos entes privados, conforme contratado com a administração pública.

Assim, quando o ente estatal deixa de realizar o reajuste e as revisões pactuadas, principalmente por receio de impacto social, deixando de ponderar o interesse público – modicidade tarifária – e o privado – Taxa Interna de Retorno –, coloca-se em risco o próprio princípio da continuidade do serviço público.

Explica-se: o serviço público, pela importância de que se reveste, bem como por se tratar de prestação legalmente imposta ao Estado pela ordem jurídica, deve ser prestado de maneira contínua ao usuário, ou seja, não é passível de interrupção. No entanto, ao privado, que assume a obrigação da prestação de serviços públicos originalmente imposta ao Estado, bem como seus riscos inerentes, uma vez violado o seu interesse de ver ressarcido os custos incorridos na prestação, somados a um razoável retorno financeiro, restará suspender ou mesmo cancelar a prestação do serviço, deixando carente uma parcela significativa da sociedade que deste depende.

Como visto acima, o Município do Rio de Janeiro é exemplo real das consequências da omissão do ente público em reajustar/revisar o valor da tarifa, ao menos com relação ao funcionamento das concessões de pedágios e, especialmente, dos ônibus municipais.

Com relação a este último, em decorrência da diminuição das receitas, é fato notório que diversas empresas consorciadas vêm enfrentando graves dificuldades financeiras, tendo como consequência a demissão de milhares de funcionários e, em alguns casos, a própria paralisação da empresa.

De fato, a omissão do município com relação à adequação do valor da tarifa impacta diretamente na capacidade operacional das empresas, colocando em risco a qualidade do serviço prestado e culminando, até mesmo, em risco de colapso do sistema de transporte coletivo, o que, naturalmente, seria desastroso para a sociedade carioca.

Em casos como esse, pode-se cogitar, inclusive, em responsabilização pessoal do próprio Administrador Público, decorrente das reiteradas omissões, sem qualquer justificativa plausível, que culminam no flagrante desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Nesse prisma, mencione-se tanto o Decreto-Lei no 201 de 1967 – que dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos –, quanto a Lei no 8.429 de 1992 – que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos no exercício de mandato –, trazem bases suficientes a caracterizar a responsabilidade do Administrador em casos em que é inegável a omissão em recompor o equilíbrio econômico financeiro do Contrato Público.

Ante o exposto, resta demonstrado que a sobrevivência de serviços públicos, seja de transporte ou qualquer outra atividade, depende da preservação e do respeito aos contratos administrativos e, em especial, às suas cláusulas econômicas, com o objetivo de manter o seu equilíbrio econômico-financeiro, sob pena de ferir o próprio interesse da sociedade em usufruir adequadamente desses serviços.

Nesse prisma, resta ao Judiciário exercer o importante papel de fiscalizar a legalidade da atuação do Executivo, seja para garantir a continuidade adequada de serviços públicos de caráter essencial, seja para punir as omissões ilegais cometidas pelo Administrador Público.

 

Notas_____________

1 CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo. 27a Edição, Edit. Atlas, 2014, p. 175.

2 MEIRELLES, Hely Lopes, Licitação e Contrato Administrativo, São Paulo, Malheiros, 9a edição, 1990, p. 182.

3 MARÇAL JUSTEN FILHO, Curso de Direito Administrativo, 4a edição em e-book, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2016.

4 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, pág. 211.