Regime jurídico do financiamento de litígios

6 de maio de 2019

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O financiamento de litígios (alternative legal financing ou third-party litigation funding) é uma espécie de contrato em que os custos inerentes a um litígio são financiados por terceiro alheio ao caso. Esses podem ser fundos, entidades financeiras e comerciais ou pessoas físicas.

Regra geral, caso o financiado (sujeito processual) venha a se sagrar vencedor, o financiador tem o direito de ganhar parte do benefício econômico1. Caso o financiado venha a ser derrotado, o financiador não ganha nada e, a depender do arranjo contratual, pode ser chamado, inclusive, a absorver perdas de sucumbência pela via do regresso.

É assim, do ponto de vista contratual, uma cessão de direitos creditórios, mas, em tese, não do próprio direito, o qual assim a torna obrigatoriamente onerosa, envolvendo álea.

A temática, entretanto, não se encontra dentro dos limites exclusivos do Direito Privado. Com efeito, a atuação de veículos de financiamento de litígios reclama um regime jurídico que deve passar por três ordens: (i) a questão ética, (ii) sua inserção diante do princípio de acessibilidade à Justiça; (iii) no plano do ordenamento, ante a já existência de regras e normas que lhe são aplicáveis.2

Ab initio, o financiamento de litígios se refere à ética em sua essência, aquela de índole kantiana e pré-normativa, haja visto a relação ação-regra. A questão que se põe sob esta vertente deve passar, assim, pelo teste de legitimidade quanto à possibilidade de um terceiro adquirir o direito de outrem visando o lucro, notadamente no caso de direitos personalíssimos ou irrenunciáveis por lei (v.g. honorários de sucumbência).

Ainda nesse plano, cabe destacar o caso Gawker Media versus Peter Thiel/ Hulk Hogan. Em 2007, o site de notícias Gawker Media teria revelado que o bilionário Peter Thiel, cofundador do PayPal, seria homossexual. Tal acusação teria feito com que Thiel declarasse guerra ao site3, financiando centenas de ações de terceiros contra a empresa4. Em uma dessas demandas (Bolea vs Gawker), a empresa foi compelida a uma condenação de 31 milhões de dólares, o que, na sequência, a levou à recuperação judicial e falência. Consta que no âmbito do processo de liquidação, o próprio Thiel fez uma oferta para aquisição da empresa5.

Não menos relevante, o financiamento de litígios está relacionado às garantias constitucionais de livre acesso ao Judiciário, ampla defesa e contraditório (due process)6. Nesse sentido, o financiamento de litígios estaria a prestigiar a possibilidade de acesso ao Judiciário por pessoas sem capacidade econômica para suportar os custos de um processo. Assim, tanto em relação ao ordenamento posto, quanto em caso de eventual regulação futura, não se poderia impedir ou tornar inexequível o financiamento de litígios enquanto forma de realização de uma garantia constitucional.

De lege ferenda, mas também relevante, o financiamento quiçá permitiria a redução de custos advocatícios pelo estímulo à concorrência, potencialmente no caso de hipossuficientes, nos quais os honorários com taxa de êxito que superam o valor a ser recebido pela parte (>50%), ou são excessivos, ou servem como forma de reembolsar os custos incorridos ao longo do processo pelo próprio patrono. Por assim dizer, jogaria papel complementar às outras formas de intervenção que objetivam a garantia de acesso ao Judiciário7.

Por fim, no âmbito da legislação ordinária e da regulamentação, a questão comporta ponderações que devem ser vistas sob o olhar da interpretação sistemática. É que a depender do negócio jurídico engendrado, o contrato de financiamento de litígio deve ser objeto de aplicação harmônica entre regras de natureza distintas – deontologia, Direito Civil, Direito Processual, sistema monetário, cambial e tributário, entre outros.

Aqui, talvez a mais relevantes seja a questão deontológica atinente ao exercício da advocacia. Uma vez que o patrocinador do fundo de litígio possa influenciar em decisões ou estratégias processuais, pode estar usurpando no todo ou em parte o exercício de atividade que é privativa ao procurador.

Sinérgico ao aspecto deontológico, está o da regulação monetária, cambial e financeira, cuja competência é do Estado. Efetivamente, a materialização constante de financiamento de litígios por uma atividade pode caracterizar atividade financeira, e, dessa forma sujeitar o financiador ao controle de Bancos Centrais, ou do órgão regulador do mercado de capitais (Comissão de Valores Mobiliários/ CVM), uma vez que reste caracterizada a oferta pública de crédito. Entrariam, assim, na zona cinzenta de atividades financeiras ou quase, o que ocorre usualmente (v.g. hedge-funds). Do ponto de vista cambial, a atuação de fundos de não-residentes deve ser vista com cautela, ante as restrições à atuação de entidades estrangeiras e pessoas no exercício da profissão de advogado.

Feitas essas considerações, resta concluir que, apesar dos riscos apresentados, a existência de fundos de litígio é uma realidade que não se pode impedir.

Primeiramente, não temos nem no Brasil ou em qualquer outro ordenamento regra que o proíba. O fato de ser um contrato atípico, tomando de empréstimo elementos genéricos do direito contratual e negocial, se constrói com base na autonomia da vontade.

Ademais, a par do princípio de livre acessibilidade, nosso ordenamento já incorpora princípios e regras que caracterizam um regime jurídico a outorgar limites e possibilidades, e assim razoável grau de segurança jurídica ao financiamento de litígios no Brasil.

Nesse contexto, o CPC brasileiro expressamente determina que as partes sempre devem comportar-se de acordo com a boa-fé, além de prever hipóteses de suspeição e impedimento dos julgadores.8 Ademais, uma sentença objeto de simulação ou colusão pode ser rescindida por intermédio da ação rescisória9.

Voltando à deontologia, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) impõe a necessidade de se agir de acordo com a ética10, prevendo diversas hipóteses de infração disciplinar em seu art. 34. Dentre essas, destaca-se o inciso XVII, que prevê que “prestar concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la” é considerado infração ética.

Poderia se cogitar que no financiamento de litígios há a possibilidade de um terceiro se utilizar de processo visando obter objetivo ilegal. O caso Gawker Media talvez seja exemplo de elisão processual, que se encontra fora do propósito de atuação imparcial das partes. Não obstante, além de tal ser vedado, como preceitua o art. 80, inciso III do nosso CPC, ainda haveria questionamento quanto à efetiva ilegalidade do processo, na medida em que, de fato, havia ilegalidade na postura do Gawker Media ao vazar o vídeo íntimo do lutador Hulk Hogan.

Quanto ao fato de reclamar regulação extensa, a verdade é que já temos em nossa práxis exemplos similares, como a cessão de direitos hereditários ou a negociação de precatórios, que são cessões de direitos muito similares, até mesmo em relação aos riscos das partes envolvidas.

Em síntese, o financiamento de litígios mostra-se conforme ao nosso atual sistema jurídico. Já possuímos princípios, regras e instituições sólidas que podem ser tomados como marcos para esta nova modalidade de cessão de direitos creditórios. Excessos ou desvios devem ser submetidos à análise casuística. O que não se deve, contudo, é impor um nível de regulação excessivo que possa impedir ou tornar inexequível moderno instrumento contratual que é cada vez mais crescente em outras jurisdições.

Notas___________________

1 Sahani, Victoria Shannon, Judging Third-Party Funding, UCLA Law Review no 388 – 2016, pgs. 392 e 393.

2 O financiamento de litígios possui grande aplicação na Europa e nos Estados Unidos, mas ainda é novo no Brasil, o que desafia, em maior ou menor grau, a necessidade de sua regulação. Cf. Veljanovski, Cento, Third Party Litigation Funding in Europe, Journal of Law, Economics and policy, 2012. No Brasil, o mercado de financiamento de litígios ainda é incipiente, sendo mais frequente em processos arbitrais. Todavia, começa a ganhar visibilidade em função da entrada de entidades de gestão e administração de risco (hedge funds e distressed asset funds). 

3 Disponível em https://www.theguardian.com/technology/2016/aug/15/peter-thiel-gawker-bankruptcy-lawsuit-hulk-hogan-sextape. Acesso em 10/11/2018, às 12h05.

4 Disponível em https://www.nytimes.com/2016/11/03/business/media/gawker-hulk-hogan-settlement.html. Acesso em 10/11/2018, às 12h07.

5 Disponível em https://www.theguardian.com/technology/2018/jan/11/peter-thiel-gawker-offer-buy-hulk-hogan-lawsuit. Acesso em 10/11/2018, às 12h04.

6 No Brasil, CF art. 5o caput, XXXV e LV.

7 V.g. Defensoria Pública, CF art. 134, gratuidade de custas judiciais; CPC art. 98 e advocacia pro-bono.

8 Arts. 144 e 145

9 CPC arts. 5o, 79 e 966

10 Lei no 8.906/1994 art. 31