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Relógio do manicômio

5 de setembro de 2004

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Esmaltado, liso e preto, ele se movia em pequenos trancos compassados. Não sei bem o porquê, desde logo o ponteiro grande me intrigou. O pequeno, nem tanto. Ambos, cobertos por um vidro transparente, contrastavam com o fundo branco apoiado na parede daquele salão nervoso. Deitei a cabeça para um lado e, mão no queixo, fiquei observando. “Há alguma coisa errada com o ponteiro grande”, pensei. Podia sentir isso no ar. Mesmo assim não conseguia perceber o que era.

Em frente ao relógio, uma poltrona solitária. Sentei e, em seguida, veio o silêncio. Não ouvia mais as ordens espalhafatosas do general, nem os gritos e lamentos daquela gente esquisita. Alguns pareciam falar, outros gritar, mas, como num cinema mudo, o som não era captado pelos meus ouvidos. Em verdade, aquilo fazia parte do meu torpor.

Tinha tomado o medicamento da manhã. Por certo, ainda estava sob seus efeitos. Minutos depois, o barulho foi falando mais alto e a vida voltando ao normal. Passei, enfim, a sentir-me bem. Apenas a cabeça doía um pouco. Foi quando voltei a  pensar nos ponteiros do relógio e, de novo, comecei a observá-los. Agora nada via de anormal neles. O médico tinha razão: sob efeito do medicamento, eu costumava cismar com certas coisas sem qualquer motivo plausível.

– Só faltava essa: o remédio me fazer mal tão próximo de minha alta – resmunguei.

Logo depois, ao fim de longo monólogo interior, tive de ponderar: “Que bobagem! Cismar com os ponteiros!”

Pensava assim, quando olhei de relance e percebi o ponteiro grande deslocar-se no sentido anti-horário. Era apenas impressão. Só podia ser, concluí. Agitado, sem pestanejar, fixei os olhos no relógio e, para minha surpresa, confirmei a ocorrência do improvável, imponderável, inacreditável: os ponteiros andavam para trás! O grande, apressado; o pequeno, moroso.

Estaria eu ainda sob o efeito do medicamento? Não, não podia estar: ouvia agora a barulheira do salão, os gritos do general mandando o pessoal ficar em fila, a cantora de ópera com sua voz desafinada, enfim, toda aquela algazarra. No dia anterior o doutor havia dito que me daria alta dentro de uma semana. Portanto, era boa minha saúde mental. O que estaria acontecendo? Claro, os ponteiros não podiam estar girando no sentido anti-horário.

Fechei os olhos para não ver aquilo. Estava no lugar errado, tinha certeza disso. O médico dissera que, a rigor, minha internação não seria necessária. Meu caso era simples. Ficaria internado por pouco tempo. Apenas para melhor combater o estresse. Mas, em verdade, o contato com aquelas pessoas me fazia mal. Precisava sair dali.

De repente, cogitei a hipótese de que alguém pudesse estar manobrando o relógio por trás da parede. Talvez fosse qualquer espécie de teste novo. Pensando bem, do outro lado era a sala dos enfermeiros. É isso, refleti. Daquela sala, um deles devia estar controlando os ponteiros de alguma maneira. Com certeza queriam ver quem percebia ou não o fato, observar nossa reação diante de coisa assim tão estranha. É claro, o general louco nada notou de errado com o relógio, muito menos a cantora desafinada, mas eu não era igual a eles e logo percebi.

Precisava ter certeza de que aquilo era mesmo um teste. Então fui ao canto do salão de onde se podia ver a sala dos enfermeiros. Vi um deles, Jurandir, de quem gostava muito, conversando com Dr. Furtado, médico responsável por minha alta. Jurandir era grandalhão e mantinha a mão apoiada na mesma parede onde estava fixado, do outro lado, o relógio. Procurei observar a altura daqueles dedos em relação ao marcador de tempo. Era mais ou menos a mesma. Além disso, notei que ambos conversavam sorridentes e, vez por outra, vinham até a entrada do salão, olhavam para o relógio na parede e voltavam rindo. Sem dúvida, era um teste.

Achava Jurandir o melhor dos enfermeiros. Grande e forte, muito atencioso comigo, percebia que eu não era igual aos outros e dizia isso de maneira clara. Conversávamos durante horas, trocávamos idéias e até confidências. Tinha confiança nele.

– Chegou a hora do banho de sol, professor. Vamos lá? – falou Jurandir com simpatia.

Fingi que não havia escutado e continuei a olhar para os ponteiros.

– Por que você olha tanto para o relógio, professor? – indagou-me sorrindo.

– Você sabe muito bem, Jurandir – respondi secamente.

– Eu não sei de nada, homem.

– Dr. Furtado deve estar lá na sala dos enfermeiros agora, não deve? – perguntei-lhe convicto.

– Sim, deve estar. Por que me pergunta?

– Ora, Jurandir, porque alguém precisa estar mexendo no relógio para fazer o teste.

O enfermeiro veio se chegando, colocou o braço no meu ombro e perguntou:

– Mexendo no relógio? Teste? Meu querido, que história é essa? – disse ele com sorriso maroto.

– Não se faça de bobo, Jurandir. O que vocês fizeram? Por que os ponteiros estão andando em sentido contrário?

O enfermeiro olhou demoradamente para o relógio afixado na parede, e, logo depois teve de concordar comigo. Era mesmo um teste.

– Graças a Deus!!! – exclamei comovido. – Pensei que estivesse ficando louco.

Foi assim que passei no teste mais importante de minha vida e provei estar em pleno gozo de minhas faculdades mentais.

Só não compreendi até hoje por que ainda não me deram alta.